A ética do neoliberalismo
O neoliberalismo se apoia no “darwinismo social” para legitimar a ideia de seleção natural. As leis da natureza justificam o desmonte da assistência institucional e da proteção trabalhista. O auxílio estatal aos malsucedidos é visto como erro. “Nós, homens civilizados, fazemos o máximo para frear o processo de eliminação. Isso deve ser prejudicial à humanidade”, sintetiza Charles Darwin, em carta. Se a interferência no evolucionismo é ruim, a falta de empatia é uma prova de perversidade.
Abaixo os caprichos partidários e as extravagâncias populistas, prega o livre mercado. Sentimentos díspares podem existir sobre clubes de futebol ou marcas de cerveja, não sobre a direção da nação. A Sociedade de Mont Pèlerin fundada por Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman enfatiza a constância das condutas individuais e coletivas, a partir das convenções que protegem a propriedade privada, o comércio e o capitalismo. As propostas de mudanças na estrutura social não passam de demagogia, no frio naturalismo onde as lides concorrenciais suplantam a ajuda mútua.
Os argumentos avessos à racionalidade hegemônica são reduzidos à categoria de doxa, das redes digitais. O conhecimento seria atributo estrito dos cientistas naturais, que não questionam as causas das iniquidades. Não importa o desemprego, a longa fila nos postos de saúde. Importa o combate ao protagonismo do Estado, porta de entrada ao totalitarismo. Cabe retrucar com um samba-canção de Noel Rosa: “Quem é você que não sabe o que diz / Meu Deus do céu que palpite infeliz”. O amparo do MST aos que sofrem catástrofes ecológicas, deslocando-se para o sinistro, mostra consciência. Movimentos igualitários bloqueiam a transposição do darwinismo para a esfera do humano-social.
O apelo conservador
O divórcio entre as proposições normativas e as questões de fato, baseadas em experiências testadas no concreto, estabelece a distinção entre verdade e falsidade. A aferição mercadológica e comercial resolve a equação sentimental. Críticas com juízos de valor sobre o funcionamento do sistema não se adéquam aos parâmetros da dominação. Não é a generosidade, é o egoísmo que conta. Se olhasse para trás, à semelhança do anjo da história em Walter Benjamin, o establishment veria os destroços deixados pelo progresso. Mas não derramaria uma lágrima pelos derrotados, jogados no abandono.
A performance empresarial da rentabilidade e dos dividendos é introjetada para avaliação, positiva ou negativa, sobre os rumos do Estado, da sociedade ou da vida particular ao transformar cada um em “empreendedor de si mesmo”. Hoje é tanto mercado que adoecemos da mercadoria e morremos da mercantilização, das almas e dos corpos. Caíram em desuso os óbitos por tuberculose, qual o do jovem poeta abolicionista que compôs “O Navio Negreiro”. São outras as doenças do momento.
O conservadorismo alicerça a pulsão de repetição nos hábitos herdados de várias gerações, que não resultam de projetos teóricos externos às vivências empíricas (leia-se o socialismo). O nexo entre o passado e o presente é a competitividade naturalizada na subjetivação das pessoas. A concorrência interindividual é o motor do desenvolvimento. As personas se realizam no convívio em pequenos grupos – famílias e amigos. Como se, no caso dos cidadãos cultivarem as próprias flores, a cidade ganhasse um jardim público no final da corrida. Cornelius Castoriadis denomina de “alienação” a privatização da existência, por regar a planta do antiassociativismo e da apatia na sociabilidade.
Organizar a rebeldia
As assertivas fatalistas sobre a inevitabilidade das crises social e climática ressignificam a malha de classes, em fortes e fracos. Mas não se constituem em leis gerais. A ascensão da extrema direita não remete a acontecimentos homogêneos, de forma idêntica, em geografias diferentes; ao contrário dos experimentos de laboratório, em biologia. A destruição das diretrizes civilizatórias e das condições de vida na Terra ocorre sem a participação dos militares ou dos fundamentalistas religiosos, na Argentina. Em Israel, remete ao sectarismo sionista para bombardeios infinitos na Faixa de Gaza.
Nos Estados Unidos, o nacionalismo (America First) nega as políticas internacionalistas, defende o unilateralismo e instiga a aversão aos emigrantes de países hispanófonos. No Brasil, nacionalistas são figurantes do Rei Momo no bloco dos zumbis, com o samba-enredo do entreguismo patrimonial ao setor privado, a desregulamentação dos órgãos de controle e os ajustes fiscais em detrimento dos direitos da população. A porta-bandeira celebra o Estado neopentecostal e, o passista, com a vistosa fantasia de príncipe saudita e joias cintilantes, faz evoluções de malandro lesa-pátria, que não gosta do batente. No desfile de horrores tragicômicos se destacam o racismo, o femicídio e a homofobia.
A ética incrustada no autoritarismo social das relações de mando (quem pode) e obediência (quem precisa) é o câncer das formações coloniais. Proposições amorais sobre as virtudes da acumulação e da hierarquia manifestam a visão de mundo dos donos do poder. Nela, não constam os ideais da liberdade, igualdade e solidariedade que dão substância para a Idade Contemporânea. Os desejos das elites econômicas ecoam interesses que não contemplam os direitos universais da cidadania. Aos oprimidos e explorados resta organizar a rebeldia e a resiliência para a emancipação popular.
Falta de coerência
Utilizadas para descrever episódios em contextos distintos, a diversidade de noções conceituais (mudança, revolução, democracia, poder político) conduz Isaiah Berlin, em Marcha da história, a concluir que: “A história como a conhecemos não é uma ciência, mas uma arte, no sentido em que a pintura de retratos é a arte pela qual se transmite uma personalidade única e não apenas o que essa compartilha com outros seres humanos em um Raio X”. Os tiranos são eles, e suas circunstâncias.
A civilização é a sobrevivência dos mais aptos. A sobrevivência dos inaptos é a anticivilização. O socialismo é tido por absurdo à medida que propõe tanto o desenvolvimento da civilização, quanto dos não aptos. Para os alfas bilionários do vale-tudo, fiéis subsidiários das Bolsas de Valores, trata-se de contradição. John D. Rockefeller faz a analogia da riqueza com a beleza da roseira que, para florescer, arranca os botões menores para atingir a perfeição. A metáfora alivia a culpa dos ávidos predadores, ao solapar a luta para a taxação de impostos das grandes fortunas. A atual transmissão familiar da propriedade brinda os rentistas, no prosseguimento da sanha vampiresca das finanças.
“É doloroso acompanhar as convoluções de quem se compromete com uma teoria poderosamente retórica, que ergue a competição como princípio da sociedade e acusa de sentimentalismo as objeções éticas ou morais, para defender limitações evidentes ao princípio competitivo”, desabafa Raymond Williams, em Cultura e materialismo. Se sobra hipocrisia nos discursos ideológicos que remetem à meritocracia de fachada dos privilegiados, falta coerência na defesa das regras do jogo.
Felicidade pública
No país, os juros lunáticos do Banco Central, desastrosos para a reindustrialização, ilustram a desfaçatez da ética do neoliberalismo ao acomodar o destino num bunker, a salvo da vontade política democrática. Só a democracia pode dar à economia um sentido para alcançar a bonheur public, a felicidade pública. Apesar das dificuldades, com avanços e recuos, é o que aponta a bússola da governança Lula 3. O sucesso dependerá da capacidade política de mobilização das massas (centrais sindicais, de favelas, de estudantes) para reinventar nosso futuro. Há pressa.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.