Pólis, espaço público
A palavra “política” tem origem grega, vem de pólis, acidade entendida como instituição coletiva fundada em leis e em direitos. Neste sentido, pólis não designa um simples espaço urbano e, sim, um espaço público. Seu correspondente em latim é civitas, de onde provém o vocábulo cidade também como espaço público. Os romanos reservavam o termo urbs (urbe) para o espaço urbano.
Na fase neoliberal do capitalismo, a cidade se torna o palco de uma permanente disputa entre os interesses do capital imobiliário, para quem a urbe é apenas um espaço urbano, e os interesses da população em geral, para quem a pólis / civitas é sobretudo um espaço público, assinala David Harvey, em Cidades rebeldes. Ao revés de se posicionar ao lado do povo, porém, muitos dirigentes municipais se posicionam ao lado dos primeiros, com remendos nas constituições citadinas – os planos diretores e as leis para a ocupação do solo – a fim de atender uma obsessiva demanda por espigões e pela apropriação irracional da res publica, a coisa pública. O meio ambiente é detalhe.
Para legitimar o processo predatório: (a) restringe-se as instâncias deliberativas, aumentando as atribuições do Executivo e retirando a competência dos órgãos de controle para julgar e; (b) limita-se a participação na elaboração das políticas àqueles que “são mais iguais do que os demais”. Ao mesmo tempo, as corporações empresariais priorizam partidos políticos para apoiar financeiramente nas eleições. Os princípios democráticos e republicanos são manipulados por maiorias nas casas legislativas para obedecer a vontade de minorias, na sociedade. Trata-se de uma evidente distorção.
O encarecimento das campanhas eleitorais institui o filtro econômico entre as candidaturas, depois sancionadas nas urnas. Mas, antes da escolha dos candidatos individuais, é feita a seleção de classe para garantir uma representação majoritária ao receituário ideológico das elites do atraso. Assim, as leis e o direito perdem a impessoalidade no conteúdo, mantendo-a só na forma. A governabilidade neoliberal cerceia as ideias e as práticas democráticas, com o auxílio da mídia corporativa. Em meados de 1990, Norberto Bobbio já denunciava a grave ameaça do monopólio ou oligopólio da propriedade dos meios de comunicação que, ao contrário do que costumam autoproclamar, não são os fiadores da democracia. São veículos de sua destruição. Pavimentaram a ascensão do genocida.
Os donos da cidade
A excelente reportagem investigativa do site Sul 21, intitulada Donos da cidade, no capítulo “Porto Alegre prepara Plano Diretor ‘bastante liberal’ sob encomenda de empresários”, é ilustrativa da conversão exponencial do espaço urbano em uma mera mercadoria, sem um compromisso com os valores da cidadania. Quando se tornou sede do Fórum Social Mundial (FSM), Porto Alegre era a referência internacional da pólis em defesa do espaço público, construído com base no Orçamento Participativo (OP). Agora, a metrópole gaúcha está dominada pela ganância de construtoras e pela torcida facciosa da opinião radiofônica, televisiva e impressa que avaliza o prefeito de plantão.
A lógica da convergência de interesses está na mercantilização de tudo e de todos, amparada no laissez-faire, inclusive nos parques para abrigar estacionamentos de carros. A exemplo de outros centros, PoA não é uma exceção no cenário nacional ao abrir caminho para as iniciativas que andam na contramão do progresso sustentável. A cartilha privatista é a mesma em qualquer região, do país. O autoritarismo social vigente em priscas eras nunca foi superado, na trajetória da nação brasileira.
A extrema direita, tanto a que come com os dedos quanto a que usa talheres, subverte até a razão de haver eleições periódicas para que os governados elejam os novos governantes. A presunção de alternância, observa Marilena Chaui, em Sobre a violência, “simboliza o essencial da democracia, ou seja, que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, é sempre um lugar vazio”. No contexto da cultura hiperindividualista, não faltam autoridades para endossar a corrupção conceitual com uma servidão voluntária. Os neoliberais de raiz têm em comum com os neofascistas a vocação para o totalitarismo, com o transbordamento do espaço urbano no público.
Somente a democracia permite a separação nítida entre o público e o privado; equivale a afirmar que, nela, em tese, os mandatários não acham suporte para se identificar com o poder. Em regimes de exceção, imaginários ou não, os detentores de cargos de decisão se colocam no abusivo papel de vendedores do patrimônio estatal em áreas de serviços essenciais, para satisfazer o apetite das “classes parasitas”. Em vez de defender, terceirizam direitos – com parcos deveres – aos amigos da corte, sob o pretexto falacioso de melhor gestão. Os pobres moradores de Brumadinho que o digam.
Direito a ter direitos
Se houvesse uma real cobertura jornalística sobre a prestação dos serviços após as privatizações, a verdade viria à tona com certeza. Como não há, os problemas que eclodem depois (MG, RJ, SP, RS) são minimizados ou elididos. Faz-se silêncio sobre o custo acrescido às empresas pela busca do lucro, o repasse de dividendos a acionistas e o sucateamento das funções. O argumento da eficiência encobre o fundo filosófico da opção pelo privado em detrimento do público, no más. A desalienação acontece no momento em que: “Os enfraquecidos, desalentados, erguem a cabeça e / Deixam de acreditar / Na força de seus opressores”, na descrição poética da emancipação, por Bertolt Brecht.
Tal é o temor dos poderosos. Daí a tentativa permanente de controlar a ampliação dos direitos no campo minado das relações de gênero ou raça, moral e costumes, condições de sexualidade, ensino-aprendizagem, dialética do capital e trabalho ou distribuição dos excedentes públicos. Os cães de guarda dos “de cima” protegem o status quo e os privilégios. Movimentos progressistas incorporam à luta por uma democracia substantiva o “direito a ter direitos”, dentro de uma lógica cumulativa.
Um rápido olhar sobre a história do Brasil mostra que o negacionismo sobre direitos marca, a ferro e fogo, desde o início, a formação de nossa brasilidade. Os zumbis acampados defronte os quartéis, que vandalizaram as sedes físicas dos poderes enrolados no pavilhão verde-amarelo, são contra a universalização de prerrogativas aos “de baixo”. A adesão da classe média ao autoritarismo revela a persistência da gramática da dominação e subordinação, herdada do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo). O aprofundamento das desigualdades flerta com o abismo civilizacional.
Resgatar a dimensão de espaço público do que os antigos denominavam pólis (Atenas) ou civitas (Roma) é a tarefa dos democratas e socialistas, no presente. As tintas que pintam a distopia moderna nas cidades com as cores da conveniência, para o capital imobiliário, bloqueiam a convivialidade na diversidade, a riqueza da humanidade. O espaço urbano estoca o medo, o ressentimento e o ódio que aflora nas esquinas da vida e da internet. O espaço público acolhe a liberdade, a igualdade e a solidariedade. A este, os que falam metonimicamente em nome da coletividade devem cuidados.
Luiz Marques é docente de Ciências Políticas na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.