Luiz Marques*

John Locke, na Carta sobre a tolerância (1689), trouxe à luz um libelo com vistas à separação do Estado e da Igreja, com base na abstenção deliberada por parte do metafórico Leviatã em promulgar leis inspiradas em preceitos religiosos. O objetivo consistia em não discriminar nenhuma crença em particular e, ao contrário, abrigar todas. Na Enciclopédia ou dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios (1751), orquestrada por Diderot e D’Alembert, entre os 298 verbetes, no de “tolerância” lê-se que “somos limitados pelos erros e paixões, apesar de nossa grande inteligência”. A paciência que precisamos ter com os outros equivale a que ansiamos para com nossas próprias limitações. Sem tolerância “não se veriam senão perturbações e dissensões, na Terra.” Seria o caos.

O registro remonta ao reinado de Luís XV, na França, época em que sociedades secretas tramavam revoluções. Foi redigido ainda no Ancien Régime, com o céu cheio de nuvens densas. “Ninguém tem o direito de dar sua razão como regra, nem de pretender submeter outrem às suas opiniões. Exigir que eu creia a partir de vossos julgamentos seria o mesmo que exigir que eu visse com vossos olhos”, anota o autor do verbete, Romilly. Voltaire assinaria a assertiva que lhe atribuem. “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Acrescente-se, na condição de não suscitar retrocessos civilizacionais – o racismo e o sexismo. Ou fomentar conspirações terroristas que cerceiem as liberdades públicas com a coleira do medo.

Para os iluministas, o importante era demonstrar que a “intolerância” é além de tudo irracional: (a) está em contradição com o apelo à união para defender causas nobres, como o meio ambiente e a paz, hoje; (b) contraria o senso comum que reputa virtuosa a tolerância por permitir o confronto de argumentos para chegar a uma solução e; (c) destrói ideias discordantes pela força, na ditadura, sob tortura, e não pelo raciocínio com demonstrações sobre desvios da lógica formal. Para Marilena Chauí, “a intolerância é um erro nascido do erro”, qual os bombardeios letais de Israel em Gaza.

As boas intenções

John Stuart Mill, em Sobre a liberdade (1859), voltou ao assunto: “Apenas pelo choque ou colisão de opiniões adversas uma porção da verdade tem chance de ser produzida”. O lema utilitarista “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar” devia guiar as ações políticas, o que favoreceria o establishment. Para a burguesia ascendente, a tolerância tinha viés mercantil. Garantir o livre mercado contra restrições do Estado e imposições da fé nos negócios, provas de intolerância. Com o tempo, o utilitarismo deu lugar ao hiperindividualismo. “A sociedade não existe, o que existe são indivíduos e famílias”, na frase de Margaret Thatcher. O Estado perdeu o sentido comunitário.

A felicidade do maior número de pessoas afundou com o neoliberalismo. Na teoria, havia tendência fraca ao igualitarismo; na realidade concreta, incentivo às desigualdades sociais. A Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995), adotada pelos países-membros da Unesco, considera que a tolerância não é indulgência ou indiferença. É o apreço e o respeito à diversidade das culturas, formas de expressão e modos do humano. É a harmonia na diferença. Os yanomami e os palestinos são testemunhas sobreviventes, no estágio atual, distando muitas léguas da carta de boas intenções.

As atitudes intolerantes, instrumentalizadas, conduzem à “biopolítica” dos governos e corporações que – com o panóptico dos drones ou algoritmos – controlam a vida. A guerra é o supra sumo do sectarismo. Não se trata de opor uma moral ao genocídio. A questão é de ordem política, strito sensu. O pressuposto filosófico-comportamental para apaziguar os conflitos reside na conversão da humanidade em ponto de partida e chegada, com a régua dos direitos humanos e da laicidade do Estado. Tais pontos são inconciliáveis com as velhas teocracias e, idem, com as novas autocracias.

Decifrar o enigma

No antigo regime absolutista (França) ou no regime monárquico constitucional (Reino Unido), compreende-se a apologia então da tolerância nas relações sociopolíticas para o desenvolvimento das forças produtivas, do século XVII ao XIX, e a experiência do cerceamento de liberdades no século XX, sob o machartismo ou o stalinismo. No Estado de direito democrático, difícil é justificar as queixas de intolerância do STF (Supremo Tribunal Federal), TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras), Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais), Sistema Nacional de Armas e Superintendências do Trabalho, no século XXI. Subjaz na crítica o negacionismo das regulamentações sobre a iniciativa privada.

Na defensiva, zumbis se fingem vítimas; na ofensiva, alucinados, bradam por intervenção militar. Investigar os motivos da divisão de sentimentos e opiniões é crucial para decifrar o enigma do ódio e do ressentimento. Para isso, segue com uma validade heurística a divisão maquiaveliana entre os “grandes”, que querem dominar, e os “pequenos” que não querem ser oprimidos e dominados. Essa dialética de desejos contraditórios entremeia a nossa existência em sociedade. Vide os bullyings.

No primeiro grupo encontram-se os neofascistas, que Paulo Arantes designa “extrema direita” para distinguir do fascismo de décadas passadas; no segundo grupo juntam-se os democratas e socialistas que tiveram alívio no terceiro sucesso eleitoral, de Lula da Silva, quando progressistas derrotaram o uso do aparelho estatal e do erário. O frustrado golpe exprimiu a soberba dos graúdos (agronegócio, rentismo, lojas do varejo). A pronta resposta da esperança reafirmou os ideais da vitória dos miúdos (trabalhadores urbanos e rurais, povo periférico com parcos salários mínimos). O solo histórico da luta de classes decodifica os cenários escusos da crua dominação totalitária. Vade retro, Satana.

A elite na pantomima

O impeachment de Dilma Rousseff substituiu o programa das urnas por uma legislação a contento das classes parasitas que detêm títulos da dívida pública ou regalias ao modelo remanescente do período colonial (latifúndio, monocultura e exportação de commodities). No lastro, o inelegível atraca no Palácio do Planalto, o país patina no Estado de exceção e mantém o líder nas pesquisas, preso, com a farsa do lawfare, anunciada cedo. Um erro puxou os demais à insensatez. A escória que julga a si mesma “elite” aplaudiu a pantomima. Dada a identidade com os subalternos, “Lula e Dilma foram crucificados não pelo que são, mas pelo que não podem ser”, frisa Reginaldo Moraes.

As reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos públicos, a lei das terceirizações, o Banco Central autonomizado, a precarização do trabalho, os ajustes fiscais, a desindustrialização e as privatizações tiveram apoio da mídia hegemônica, de parlamentares descompromissados com o futuro, do Judiciário e das Forças Armadas. O genocida beneficiou-se do pleito ilegítimo e do antipetismo. No que concerne as riquezas e os excedentes, nas mãos do Estado, doses generosas de benesses alcançaram os inimigos da República: as classes dirigentes autóctones e as megaempresas internacionais. A viralatice lesa-pátria nada negou aos predadores, nem a Eletrobras nem o Pré-Sal.

De que tolerância reclama agora a extrema direita, enrolada em símbolos que enxovalhou? Das fake news robotizadas, nas redes sociais? Do afrouxamento dos controles, para “passar a boiada”? Do endosso da violência contra a soberania popular e as sedes dos poderes republicanos, em Brasília? Do esquecimento de cada prova de corrupção em áreas ministeriais, no quadriênio? Do perdão para o furto de joias sauditas milionárias, em proveito da famiglia arrivista? Tudo isso, mais os 700 mil óbitos, consta na ficha corrida associada à “liberdade individual” dos transgressores que surfaram na enorme onda da acumulação neoliberal, por espoliação. Como no poema de Bertolt Brecht: “O que não se rendeu / Foi abatido. / O que foi abatido / Não se rendeu.” – Marielle, Bruno, presentes.

Descem as cortinas

A condescendência que almejam os biltres é um passaporte para a impunidade. Um insulto cínico à dignidade e à resiliência demonstrada pelo povo trabalhador, nas cidades, campos e florestas. A desavergonhada covardia que saiu do esgoto e ganhou o título desprezível de pária, no planeta, aspira que os sinos dobrem para as perversidades, do serial killer. “Querem me tirar da política”, grunhe o inominável. Óbvio, e encarcerar na jaula; em vez de levar para a ponta da praia, como a canalha civil-militar fazia com verdadeiros patriotas, no passado. – Tolerância, sim. Anistia, não.

* Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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