O Renascimento de Marx: Marcello Musto visita FPA
Na última quarta-feira, 20 de setembro, a Fundação Perseu Abramo recebeu a visita de Marcello Musto, organizador do O Renascimento de Marx – Principais conceitos e novas interpretações, lançamento de 2022 da editora da FPA em conjunto com Autonomia Literária e Jacobin Brasil. O lançamento da versão digital será realizado em breve.
Durante a visita, Marcello Musto conversou com o diretor responsável pela editora, Carlos Henrique Árabe, o coordenador editorial, Rogério Chaves e também convidados como Joaquim Soriano e Juarez Guimarães, que inclusive assina a apresentação (que publicamos a seguir) do livro.
Marcello Musto é professor de Sociologia na York University, em Toronto. Em português é autor de O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos; Repensar Marx e marxismos: guia para novas leituras e Karl Marx, biografia intelectual e política 1857-1883. Sua obra já foi traduzida mundialmente em 25 idiomas.
Leia a seguir a apresentação do livro O Renascimento de Marx
Rumo a um Marx livre
Juarez Guimarães1
A obra coletiva O Renascimento de Marx – Conceitos-chave e novas interpretações, editada por Marcello Musto, é certamente o livro mais importante publicado do Brasil nas últimas décadas, no sentido de propor uma plataforma de encontro e de reencontro com a atualidade da obra de Karl Marx. Mais de dois séculos após o nascimento de Marx, 175 anos após a publicação do Manifesto Comunista e 156 após a edição do I volume de O Capital, temos, enfim, em mãos uma série de 22 ensaios que, na sua unidade plural, reivindica e documenta uma leitura nova do sentido coerente, em construção e inacabado da práxis de Marx. Trata-se do tempo aberto de um clássico cuja temporalidade está inscrita na própria gênese moderna e desenvolvimento da crítica ao capitalismo.
O campo da história do marxismo já havia passado por um esforço monumental de reflexão através da série de 12 livros, editada por Eric J. Hobsbawn, que se iniciava com O marxismo no tempo de Marx e se concluía com o Marxismo hoje, em dois volumes (publicados no Brasil entre 1983 e 1989, pela Editora Paz e Terra, com tradução de Carlos Nelson Coutinho e outros). Este campo de reflexões, que se valeu muito da intelectualidade eurocomunista e seus diálogos em um sentido amplo, marcava um distanciamento crítico do marxismo dogmático do PCURSS e se abria a uma tentativa de documentação, reflexão e busca de sentido em um tempo de aberta crise da cultura marxista. Mais recentemente, o livro Critical companion to contemporary marxism (Chicago, Illinois: Haymarket Books, 2009), editado por Jacques Bidet e Stathis Kouvelakis, em seus 40 capítulos, procurava cartografar as heranças e projeções do marxismo nas décadas recentes, a partir das suas diferentes subculturas e temáticas de análise. Se constatava a inteligência viva do marxismo após o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em total desmentido aos diagnósticos liberais e neoliberais de um fim desta tradição, já se elaborava sem um paradigma central de referência e, como apontava André Tosel, em um “milhar de marxismos”. É por meio da dispersão, quase estilhaçamento, que a consciência crítica do marxismo em relação ao capitalismo contemporâneo, como se documentou aí, se manifestava.
A novidade proposta por O Renascimento de Marx – mais do que um retorno temático, temporal ou enviesado por um ou outro cânone de marxismo à obra de Marx –, é pensá-la em sua integridade de sentido através da pesquisa em torno de conceitos-chaves que estruturam o seu campo teórico em construção e em movimento. Reunir, assemblear, rejuntar o que está disperso através da força viva de imantação da obra de Marx parece uma excelente e apropriada estratégia para uma cultura em crise de paradigmas. O paradigma ´do marxismo do século XXI é a obra viva de Marx, pensada reflexivamente em seu núcleo conceitual, em sua unidade de sentido e em sua projeção aberta.
Há certamente muitos ganhos em se voltar a ler Marx como se propõe neste livro. Uma obra que, desde o início, se inscreveu nas temporalidades longas do capitalismo no século XIX, para frente e para trás, permanece referencial e incontornável em sua capacidade de contribuir para um diagnóstico crítico da crise de civilização do capitalismo no século XXI. Após a crise internacional de 2008, durante e em torno do bicentenário do nascimento de Marx, frente à crise sistêmica da hegemonia norte-americana e a agudização de fenômenos típicos da barbárie capitalista (como a crise ecológica e social), a crítica de Marx ao capitalismo tem se tornado sintomaticamente um mote com frequência evocado. A inteligência à esquerda precisa, mais do que nunca, ganhar capacidade pública e coletiva de pensar histórica e globalmente a crise do capitalismo. Foi precisamente este o esforço de Marx que continua.
Há, em segundo lugar, ao se ler Marx, um ganho na moralidade crítica e na própria estrutura da indignação diante das manifestações extremas e onipresentes do ethos mercantil no cotidiano de nosso país e no mundo. Se Marx, desde jovem, foi crítico às manifestações apenas moralizadoras e superficiais diante das injustiças do capitalismo, se procurou desde o seu diálogo com Hegel inscrever essa crítica nas próprias realidades imanentes do capitalismo, é preciso tomar a sério a sua radical incompatibilidade ética com o modo de viver das sociedades burguesas. Contra toda naturalização da vida mercantil em um tempo saturado de sua celebração, ler Marx é participar de um incontornável “indignai-vos!” que está na base dos grandes momentos históricos de revolução e emancipação.
Ler Marx é também e sobretudo respirar, com alegria jubilosa, os ares do que ali se aspira: uma alternativa à civilização do capitalismo. Anota-se com muita frequência os juízos de Marx, não confirmados em sua vida, de revoluções iminentes. Ao final de sua vida, como se documenta, procurava brechas para o início da revolução, à contracorrente de teses deterministas e evolucionistas da história, ao Leste, na Rússia czarista. Mais importante do que o erro ou a circunstância é o fundamento da aspiração: o capitalismo, entendido como um movimento contraditório que organiza sem cessar a sua reprodução e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua superação, é histórico e, portanto, pode ter fim. Sem essa aspiração, não se pode mais respirar.
A inteligência deste retorno a Marx responde, enfim, à própria necessidade de reconstrução de uma narrativa da crise do marxismo. A análise e a retórica da traição, mobilizada pelos fundadores da III Internacional após a debacle nacionalista da II Internacional, responde apenas e muito parcialmente à exigência de uma visão crítica sobre os impasses genéticos do Partido Social-Democrata Alemão, que era o seu centro. Entre a II Internacional e a obra de Marx, como se documentou inclusive na História do marxismo, editada por Hobsbawn, há movimentos de vulgarização, dogmatização doutrinária e perda de centro programático (como, aliás, documentados na Crítica ao Programa de Gotha e na Crítica ao Programa de Erfurt). Na verdade, o impasse se estabelecera como tensão criativa irresolvida na própria práxis de Marx e Engels.
Marcello Musto, em Repensar Marx e os marxismos (São Paulo: Boitempo, 2022), após vários exercícios eruditos de marxologia e de incursões em momentos decisivos das polêmicas interpretativas do marxismo no século XX, propõe em seu capítulo 10 “A odisseia da publicação dos escritos de Marx e as novas descobertas da MEGA 2” o retorno ao pensamento “ problemático e polimorfo” de Marx, para além dos marxismos. Reivindica um “outro Marx”, não exatamente um “Marx desconhecido”, mas o Marx que se dá a pensar a partir da edição completa em curso de suas obras. Em que elas têm modificado as leituras já historicamente realizadas da obra de Marx?
Um evento maior da cultura do marxismo
A publicação crítica integral em curso das obras de Marx e Engels é, sem dúvida, o maior evento da história da cultura do marxismo. O projeto inicial, MEGA 1, liderado por Riazanov entre os anos vinte e trinta do século XX, foi interrompido por intervenção direta do PCURSS, sob o domínio de Stalin. Dos 42 volumes previstos, 12 foram editados (em 13 tomos), tendo sido o próprio Riazanov afastado, julgado e assassinado. Entre 1975 e 1989, por iniciativa do Partido Comunista da Alemanha e do PCURSS, foi retomado o projeto MEGA 2, com a edição de 40 volumes, interrompido de novo pela queda dos regimes da URSS e da própria Alemanha oriental. De 1998 até agora, desta vez com sede no Internationale Marx-Engels-Stiftung (IMES), em Amsterdan, foram publicados mais 30 novos volumes. No total, programa-se publicar 114 volumes. No Brasil, este esforço de editar ou reeditar pela primeira vez, de forma crítica e traduções mais cuidadas, as obras de Marx vem sendo cumprido de forma memorável principalmente pelas editoras Boitempo e Expressão Popular.
Os volumes mais recentes da MEGA 2 incluem novas versões de rascunhos de escritos importantes de Marx (como A ideologia alemã), todos os manuscritos preparatórios de O Capital, a correspondência completa de Marx e Engels, além de cerca de 200 cadernos de excertos e estudos de Marx.
O livro coletivo O Renascimento de Marx ancora-se centralmente nos trabalhos da MEGA 2, ou seja, em um material que em sua completude só foi dado a conhecer recentemente. Ora, para um autor como Marx que, teve apenas uma parte bastante minoritária da sua obra editada em vida, esse novo conhecimento integral dos rascunhos e estudos renova ampla e profundamente, em questões decisivas, o entendimento sobre o seu pensamento.
Em particular, os 200 cadernos de estudos e excertos permitem adentrar o laboratório de Marx: a identificação de suas leituras, o seu comentário crítico, o aproveitamento das anotações nos textos definitivos. Já a publicação integral dos manuscritos preparatórios de O Capital, que vão de 1857 a 1875, possibilita acompanhar passo a passo a escritura de Marx da obra magna inacabada, bem como entender como Engels arbitrou as várias possibilidades de edição dos volumes II e III. A nova edição de A ideologia alemã modifica substantivamente a visão de um livro considerado pelos marxistas básico para fundamentar o entendimento do chamado “materialismo histórico”.
De um ponto de vista metodológico, o acesso novo a este material crítico e integral abarca três questões centrais. O primeiro é a unidade de sentido antiliberal e anticapitalista que move desde o início a inteligência de Marx, em seu diálogo construtivo com Engels. Há uma formação conceitual em processo, alargamento do campo de conhecimento histórico e de época, de campos científicos de conhecimento, mudanças de ênfase, inclusive revisões importantes, mas um sentido de autoemancipação dos trabalhadores e oprimidos inscrito nas próprias contradições do capitalismo vai se afirmando e se adensando até o fim, como nos propõe Michael Löwy. Não há propriamente rupturas, de valores ou epistemológicas, nem mera continuidade como se a inteligência crítica estivesse desde o início já formada. Isto é decisivo: uma visão integrada e integrativa da obra de Marx é fundamental para a reconstrução da própria unidade do marxismo.
Uma segunda questão de método, decisiva, refere-se ao entendimento da obra de Marx como uma filosofia da práxis antiliberal e anticapitalista. Sabe-se melhor hoje, como a sua inserção no seio da cultura jovem hegeliana de esquerda foi importante para a sua primeira formação crítica. O quão importante foi sua leitura dos autores socialistas que o antecederam em suas imaginações e experimentos anticapitalistas. Como as culturas socialistas francesas – já em processo desde os anos trinta do século XIX – formaram o primeiro socialismo de Marx. O quanto aprendeu com o cartismo e os movimentos de trabalhadores na Inglaterra e, em particular, com as revoluções de 1848 e com a experiência da Comuna de Paris, em 1871. Agora sabemos mais como os movimentos pela independência da Polônia e da Irlanda, da luta democrática na Espanha, da luta antiescravista nos EUA, das revoltas na China e na Índia foram decisivas para a sua própria compreensão do capitalismo. A longa série de seu trabalho jornalístico no New York Daily Tribune lhe forneceu um material fundamental de reflexão sobre o processo de globalização do capitalismo em suas dinâmicas coloniais. Não há, pois, como isolar o corpus teórico central da obra de Marx da sua inserção na luta dos trabalhadores e oprimidos de seu tempo.
A terceira grande questão de método que se impõe à leitura de Marx é o inacabamento de sua obra, não em sua área de expansão ou aplicação, mas em seu centro conceitual, mesmo em sua crítica da economia política. Esse inacabamento pode ser banalmente interpretado como uma contingência, isto é, como uma interrupção posta pelos fatos. Seria melhor, no entanto, compreendê-lo como uma espécie de antídoto no centro da teoria à dogmatização, à simplificação do que é complexo, ao fechamento em sistema, ao desconhecimento das singularidades, à resolução a priori de processos históricos em aberto. E relacioná-lo à própria dinâmica metamórfica do capitalismo e à práxis viva das lutas contra a opressão e exploração em sua variedade e potência social e geográfica.
Neste sentido, foi muito inteligente a proposta de edição do livro: vincular uma leitura não dogmática da obra de Marx aos desafios contemporâneos – que são novos, mas seguramente continuidade do passado do capitalismo que se repõe. Cada capítulo do livro, então, relê Marx e propõe novas agendas de reflexão e de programatização do marxismo. O que faz a ventura desta obra, isto é, reivindicar-se da tradição socialista democrática no que ela é – passado que se atualiza – e no que tem de um futuro anunciado pelas lutas do passado.
Ao final de cada capítulo que percorre um conceito fundamental de Marx, os autores propõem uma bibliografia atualizada dos avanços e releituras marxistas sobre o tema. Em seu conjunto, essas bibliografias formam uma nova e fecunda biblioteca marxista, aberta aos marxistas brasileiros que nestas décadas neoliberais, com raras exceções, viram as principais editoras e circuitos universitários do país fecharem-se à edição e ao estudo de Marx. Há hoje uma profunda e impressionante defasagem entre a literatura internacional e a brasileira sobre Marx, o que é preciso cobrir nos próximos anos.
A seguir, procura-se expressar as cinco grandes contribuições deste livro em diálogo com os desafios presentes de toda uma geração que faz da crítica, e da luta pela transformação do capitalismo o sentido de suas vidas.
Superação definitiva do Diamat
A primeira e maior contribuição deste livro é aprofundar e documentar uma leitura e interpretação da obra de Marx em autonomia e incontornável oposição ao chamado Diamat, a sistematização do marxismo que se cristalizou sob a vigência de Josef Stalin na URSS e que se tornou o paradigma de maior e mais extensiva influência na cultura do marxismo no século XX. O renascimento de Marx no século XXI já se dá livre do epistemicídio estalinista. Isto é fundamental porque não se pode construir uma cultura do socialismo democrático a partir de um marxismo que se criou orgânico e expressivo a Estados autocráticos. Se o Diamat já perdeu o fundamental do seu poder de polarizar e deformar, ele ainda exerce um peso morto sobre o marxismo na medida em que um paradigma só é efetivamente superado se um outro alternativo é construído.
Nesta que foi a leitura mais instrumental da obra de Marx, que só pode se realizar em regime de dogmatização, de partido único e severa limitação ao livre debate, o Diamat fez sete operações de ruptura com a obra de Marx: o centramento e descontextualização da noção de “ditadura do proletariado”, entendido como um regime autocrático de partido único e de planificação estatal burocraticamente centralizada; a autocompreensão do marxismo como uma espécie de uma magna e autoproclamada ciência geral, aplicada às sociedades e ciências da natureza, verdadeira incorporação do dogmatismo como método; uma concepção rigidamente determinista e evolucionista da história, como uma sucessão de modos de produção; uma anatemização dos direitos humanos como burgueses através de uma linguagem classista, em negação ou secundarização do feminismo e antirracismo; a territorialização e uma ruptura com o internacionalismo através da previsão de uma construção possível do “socialismo em um só país”; a adoção de uma cultura centrada no produtivismo em ruptura com a crítica ecológica da predação orgânica aos modos de reprodução do capitalismo; enfim, a ruptura com os fundamentos humanistas onipresentes na obra de Marx, que o identificam como atualizador radical desta tradição na história, como o interpretou Antonio Gramsci.
Não se trata aqui de reproduzir como as ricas e documentadas releituras da obra de Marx ao longo dos 22 capítulos do livro reconfiguram conceitualmente cada uma destas dimensões. Mas evidenciar como a centralidade de um conceito antiliberal de liberdade e da revolução como autoemancipação na obra de Marx organiza e dá coerência a este marxismo vivo, desdogmatizado, que faz do rigor da pesquisa contextual e do pluralismo potência de conhecimento, antideterminista e aberta na história. Centrada em um conceito de liberdade avesso a toda desigualdade estrutural de classe, gênero ou raça, a obra de Marx é radicalmente democrática e antimercantil, internacionalista de raiz e em perspectiva. E programaticamente orientada para a superação de uma sociedade que preda a natureza pela supremacia do valor (de troca) em relação ao valor de uso, da mercantilização dos bens naturais e que impõe dinâmicas tecnológicas predatórias a serviço da máxima reprodução do valor.
Um belo exemplo apenas: Isabelle Garo, autora de momentos referenciais da pesquisa sobre o diálogo de Marx com Hegel, escreve em seu capítulo sobre a “estranha estética” de Marx, não desenvolvida extensivamente mas inspirada em um claro sentido humanista clássico, na ideia de como o cultivo das sensibilidades artísticas individuais, reprimido e coisificado na vigência do capitalismo, serve a uma crítica ativa da alienação em um mundo que se quer emancipado da lei do valor. Nada mais oposto a qualquer ideia de uma uniformização e estandartização das personalidades em uma dinâmica coletivista que obstrui as liberdades individuais. E conclui sobre o livre pensar através de Marx: “a força inventiva é mais fiel à abordagem dele do que a repetição da letra de seu trabalho”.
Alternativas à sistematização engelsiana
Um segundo valor de O Renascimento de Marx é, em seu pluralismo de leituras documentadas, encaminhar interpretações da obra de Karl Marx que são profundamente alternativas à sua primeira sistematização proposta por Friedrich Engels. Não se trata de desconhecer a imensa contribuição de Engels à própria obra de Marx e de fundação do campo marxista, mas simplesmente de recusar criticamente o estreitamento e a simplificação da concepção de ciência na qual ele orientou a leitura do legado da obra de Marx. Já na geração de marxismos da II Internacional, essa sistematização de Engels se revelou incapaz de unificar o campo do marxismo, sendo seguida por várias tentativas excludentes entre si de fundamentação filosófica do marxismo como se deu nas obras de Karl Kautsky, Gueórgui Plekhanov, no austro-marxismo com Max Adler e Otto Bauer e no empreendimento revisionista liderado por Edouard Bernstein.
Na sistematização de Engels, as leis dialéticas que regem a natureza são as mesmas que dirigem o movimento da sociedade. O marxismo como ciência do “materialismo histórico” levaria a uma desnecessidade da filosofia ou uma redução do seu papel a uma dimensão de método, entendido como materialista e dialético. O marxismo foi apresentado como um monismo materialista e o conhecimento como um reflexo do real. Engels propunha uma visão determinista e unilinear da evolução da história. A liberdade era entendida como “consciência da necessidade” do movimento da história, sendo o socialismo compreendido como “reino da liberdade” em oposição ao “reino da necessidade”, ou seja, o controle consciente e sistemático da natureza e da própria sociedade humana desenvolvido em seu mais alto grau.
Nesta sistematização, ocupa lugar central uma concepção determinista da história, que dissemina para todo o campo conceitual do marxismo uma série de antinomias e impasses. Em cartas a Joseph Bloch (21/9/1890), a Conrad Schmidt (27/10/1890) e Heinz Starkemburg (25/1/1894), Engels relativizou esse determinismo em seis ponderações: a determinação do econômico seria em última instância, isto é, mediada por outros fatores; estes outros fatores – políticos, legais, culturais e ideológicos – exerceriam igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinando de modo preponderante suas formas; haveria uma reação recíproca, embora de menor peso determinante, da política sobre a economia; haveria uma independência relativa das instâncias políticas e ideológicas em relação ao econômico, em particular a influência da economia sobre “o desenvolvimento da matéria intelectual existente” se faria indiretamente na medida em que são “os reflexos políticos, jurídicos e morais que exercem a maior ação direta sobre a filosofia”; enfim, o determinismo econômico seria mais visível, para além das circunstâncias e dos acasos imediatos, nos períodos de longo prazo2. Essas ponderações de Engels seriam insistentemente retomadas na cultura marxista do século XX, conformando um campo teórico possível de variações interpretativas do materialismo histórico, embora reveladoras, em uma leitura mais rigorosa, das inconsistências lógicas contidas no sistema formulado. São essas concepções deterministas da história que vicejaram e se tornaram dominantes, em diferentes versões e paradigmas, objeto de uma sólida e documentada refutação nas releituras de Marx propostas em O Renascimento de Marx.
Principalmente nos capítulos sobre os conceitos de “Revolução”, “Capital e temporalidade”, “Nacionalismo e etnicidade”, “Colonialismo”, “Globalização”, “Guerra e relações internacionais”, se documenta que à medida em que Marx complexifica a sua crítica do capitalismo do século XIX, aprofunda o seu conhecimento de história e toma conhecimento sistemático sobre a singularidade das formações sociais, abandona qualquer noção linear de desenvolvimento da humanidade e delimita temporalmente e espacialmente para a Europa Ocidental a sua análise da formação do capitalismo. Vai se abrindo à possibilidade das revoluções socialistas não expressarem mecanicamente o grau de desenvolvimento das forças produtivas e se combinarem com lutas anticoloniais e agrárias. Ao invés de determinismo, há uma noção de pluralismo das origens, de rotas variadas e um campo aberto de combinações com as tendências de globalização do capitalismo.
A indeterminação da história vai ao centro da própria crítica da economia política, o capitalismo pensado como uma estrutura dinâmica contraditória, em relação desigual com o sistema de Estados nacionais. Se há inequivocamente passagens textuais deterministas na obra de Marx, de sentido variável nas várias épocas de seu trabalho, elas se apresentam no máximo como tensões que jamais alcançam um estatuto teórico coerentemente determinista e são sempre contrarrestadas por aberturas de sentido.
Neste campo teórico em que opera a inteligência crítica de Marx, há decerto condicionamento da política pelos fundamentos econômicos pensados na relação singular do capitalismo, mas não determinação ou mera reflexividade, para nomear a metáfora usual da base e superestrutura, mesmo mediada. Ao diverso de um determinismo e de uma pura indeterminação, há tendencialidades operantes discerníveis na dinâmica do capitalismo inscritas em seu movimento contraditório. A emancipação é entendida praxiologicamente como possibilidade real mas não como fatalidade, a depender de uma combinação de condições objetivas e subjetivas nas quais a contingência tem um amplo campo.
Enfim, o que nos indica O Renascimento de Marx é um campo estruturado de conceitos críticos, fundamentais mas não de todo concluídos, abertos à história, voltados para pensar o movimento do capitalismo em suas contradições e suas possibilidades abertas a uma práxis coletiva de emancipação. E é exatamente por não ser determinista da história, por não oferecer nenhuma receita dogmática de futuro, por ser expressão da criação e da luta pela liberdade, por ser aberto inclusive à tentativa e ao erro, que esse campo estruturado de conceitos é incontornavelmente contemporâneo.
Temas decisivos
É próprio de um pensamento clássico, que pensa as longas temporalidades da formação da Modernidade capitalista e seus aléns, abrir-se ao futuro e às atualizações. O Renascimento de Marx relê o conjunto de sua obra, perscrutando o que há nela de diagnóstico e de potencialmente crítico dos impasses da civilização do capital no século XXI. A seguir, elencamos quatro temas decisivos.
O primeiro deles é a superação possível e necessária dos desencontros entre a obra de Marx e os fundamentos da emancipação das mulheres. Como afirma Heather Brown, autora de Marx on gender and the family – A critical Study (Haymarket Books, 2012), no capítulo sobre “Igualdade de gênero”, muitas das sínteses entre marxismo e feminismo ao longo do século XX incorreram nos erros do essencialismo, etnocentrismo e uma aceitação acrítica do determinismo econômico. Mas seria possível documentar que a leitura da obra de Marx indica que “suas categorias e análises levam na direção de uma crítica sistemática do patriarcado como ele próprio se manifesta no capitalismo”. A historicização da família e a programatização da superação de sua dimensão patriarcal, a identificação inclusive de formas clânicas em sociedades primitivas, não necessariamente estruturadas perenemente de forma patriarcal, a denúncia da opressão das mulheres para além das dimensões classistas nas sociedades capitalistas, os estudos sobre as mulheres trabalhadoras e sua participação nas lutas pelo socialismo documentam que a teoria de Marx não separa o anticapitalismo do feminismo. Pelo contrário, combina-os. Assim é que, por exemplo, o “Programa Eleitoral dos Trabalhadores Socialistas”, de 1880, escrito por Jules Guesde, Paul Lafargue e Karl Marx, abre-se com o considerando “que a emancipação da classe produtiva é a emancipação de todos os seres humanos, sem distinção de sexo e raça”. No item 1 do programa político, reivindica-se a supressão do Código Napoleônico de 1804, conhecido por seu forte patriarcalismo, de todos os artigos “que estabeleçam a inferioridade do operário em relação ao patrão e da mulher em relação ao homem”.
Por sua vez, o capítulo “Ecologia” de John Bellamy Foster, autor de A ecologia de Marx – Materialismo e natureza (Civilização Brasileira, 2005), de forma didática, consolida a interpretação de que longe de ser um produtivista radical, cego às dimensões predatórias do capitalismo, e alternativamente a um desprezo por esta questão, Marx fornece em sua obra três grandes contribuições ao entendimento da crise ecológica contemporânea. Em primeiro lugar, a teoria ecológica da forma-valor, com base na distinção entre riqueza (que inclui a natureza e o trabalho) e valor (baseada apenas no trabalho). Ou seja, como a natureza “não estava incluída no cálculo do valor capitalista, mas era tratada como uma dádiva gratuita ao capital, era impossível não perceber a tendência destrutiva do capital de superar todos os limites naturais em seu impulso interminável de acumulação”. A segunda contribuição fundamental, resultante dos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo no campo, seria a “teoria da ruptura metabólica”, a partir da qual o capital promove sistematicamente o rompimento do ciclo metabólico da Terra, minando as condições impostas pela natureza do próprio desenvolvimento humano. No volume I de O capital, de forma sintética, ele escreveu: “A produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de toda a riqueza: a terra e o trabalho”. A terceira contribuição seria a identificação das duas espécies de crises ecológicas, aquelas causadas pelo aumento da escassez de produtos naturais e as crises mais propriamente de sustentabilidade. Assim, conclui o autor, para Marx, “a acumulação do capital pode se manter por meio de crises ambientais”.
Um terceiro tema decisivo, expressivo das releituras da obra de Marx, é o do colonialismo e da importância da luta nacional. Os capítulos “Colonialismo”, de Sandro Mezzadra e Ranabir Samaddar, “Migração”, de Pietro Basso, e “Nacionalismo e etnicidade”, de Kevin Anderson, autor de Marx nas margens: Nacionalismos, etnias e sociedades não ocidentais (Boitempo, 2019), evidenciam como Marx e Engels passaram a combinar, em vários contextos, a luta classista e a luta de libertação nacional. Os dois autores de O manifesto comunista teriam evoluído de uma posição que encarava a globalização do capitalismo como uma etapa, apesar de tudo, necessária à universalidade do ethos revolucionário socialista para, a partir de 1857, com as revoltas na Índia e na China, adotarem uma posição fortemente crítica à barbárie colonial e ao apoio decidido às lutas de libertação nacional. A própria fundação da I Internacional se deu em um contexto de campanhas de apoio às lutas da independência da Polônia e da Irlanda, prosseguindo com a mobilização em apoio do Norte contra o Sul, pelo fim da escravidão nos Estados Unidos (EUA).
Aqui também a análise de como o capitalismo, em sua expansão, explorava as desigualdades de raça, gênero, nação e origem geográfica, serve à identificação destes vários sujeitos da luta anticapitalista e à necessidade de combinar essas diferentes dimensões da luta de classes. Assim Marx, trabalhando com a dimensão intrinsecamente colonial do capitalismo, deu grande centralidade ao tema da escravidão atlântica, às relações dos trabalhadores irlandeses mais explorados com a dinâmica de conjunto das classes trabalhadoras inglesas, às formas servis de exploração nas colônias e de degradação das classes camponesas. Embora, como afirmam Sandro Mezzadra e Ranabir Samaddar, tenham negligenciado o extermínio dos índios em curso nos EUA no século XIX.
Interessantíssimas, por fim, as reflexões do grande historiador do mundo do trabalho Marcel van der Linden, sobre a dificuldade de Marx em delimitar os conceitos de proletariado e lumpemproletariado, além de superestimar as tendências de época, na extensão e na velocidade, do processo de proletarização produzido pelo capitalismo. O seu capítulo combina-se com um tratamento mais classicizante e contemporâneo de como o fundamento do trabalho comparece na crítica da economia política de Marx, por Ricardo Antunes. Marcel van der Linden reivindica um campo conceitual do proletariado que mais inclua do que exclua, em duas possibilidades: aquela proposta pelos autores Jairus Banaji e Rakesh Bandhari de “considerar todas as formas orientadas para o mercado como variações do trabalho posicionado para o capital”; a outra, a de considerar proletariado toda a força de trabalho coagida a ser mercadorizada e vendida ou alugada. Ambos os conceitos carregam a noção de exploração e mercadorização, unificando aqueles e aquelas que têm interesse na superação do capitalismo. É óbvio que esse conceito traz grandes implicações para a superação de qualquer visão eurocêntrica, sendo mais conforme às realidades históricas e contemporâneas da maior parte da população mundial que não se enquadrou ou se enquadra em um conceito estrito de proletariado, ao mesmo tempo que não deixa de incluir a clássica noção de trabalho assalariado.
Nas décadas recentes, a obra de Marx veio a ser fortemente criticada pelo seu classismo excludente da centralidade das lutas feministas e antirracistas, pelo seu eurocentrismo, pela sua subordinação a um conceito de razão e técnica produtivista e antiecológica, enfim, por programatizar um destino unitário e universal para a humanidade, passando por cima de suas diferenças étnicas, de gênero, de cultura, de nacionalidade. A releitura crítica da obra de Marx indica um caminho inverso ao trilhado de separar analiticamente diferentes opressões e impasses contemporâneos da dinâmica geral do capitalismo. Ao invés, trata-se pensar estas opressões em relação com a dinâmica de reprodução do capitalismo global, desigual e combinado, em suas diversas e unificadas dimensões. E, assim, fazer convergir os diferentes processos de luta contra as opressões e explorações, em um conceito ampliado de proletariado, em um sentido anticapitalista.
Marx e a unidade do socialismo democrático
Uma quarta contribuição histórica do livro é a de indicar um caminho possível de unidade das tradições do socialismo democrático. Já o belo título, O Renascimento de Marx, com sua ressonância humanista, contém tripla dimensão: a de ser uma resposta à proclamação neoliberal da morte de Marx, identificado como inimigo da liberdade; a de retirá-lo do aprisionamento às fórmulas dogmáticas, liberando-o para as necessárias atualizações neste século XXI; a de centralizar-se em um campo de conceitos historicamente aberto a uma unidade teórica de sentido.
Quando se fala de tradições do socialismo democrático, fundado na práxis política de Marx e Engels, a partir de sua condição orgânica aos movimentos políticos dos trabalhadores da época, diferencia-se tradição de um sentido estrito, circunstanciado e organizado de partido e se aproxima da noção formulada por Marx de “um partido no sentido histórico eminente”, como relembra Peter Hudis, no capítulo sobre “Organização política”. Trata-se da tradição de uma crítica revolucionária do capitalismo que formula a sua superação através de um processo democrático de autoemancipação e que se expressou nas alas esquerdas dos partidos da II Internacional, nas correntes marxistas historicamente críticas ao marxismo estalinizado da URSS no período seguinte e que, embora minoritárias, continuam a inspirar correntes políticas, intelectuais e movimentos sociais anticapitalistas contemporâneos.
Essas tradições do socialismo democrático procuraram resistir ao campo teórico fragmentado do marxismo da II Internacional, marcado por codificações estritamente deterministas da obra de Marx, à grave cisão e ruptura de seu fundamento ético-político de liberdade com a ascensão do paradigma do Diamat e, nas décadas recentes, a uma verdadeira dispersão dos marxismos diante da ascensão do neoliberalismo e da ausência de uma experiência de emancipação anticapitalista que servisse de terreno a um processo de convergência.
Um conceito chave desta tradição do socialismo democrático é o da revolução democrática, que se quer mais potencialmente transformadora exatamente por se apoiar em potências abertas e desenvolvidas de autoemancipação. Este conceito de revolução propõe pensar um campo histórico de transição do capitalismo ao socialismo através de uma ruptura com a ordem liberal e um aprofundamento das dimensões democráticas de um novo Estado. Na linha mesma de Marx em A guerra civil na França, aprofundando e atualizando o debate, Ernest Mandel nos anos 1970, no documento “Democracia socialista e ditadura do proletariado”, inovou ao defender para o período de transição ao socialismo, além da extensão das formas de auto-organização e autogoverno, a liberdade de expressão e de organização aos partidos que não se opusessem com violência à nova legalidade democraticamente constituída, o direito de greve e de autonomia sindical, a livre criação artística, o direito ao devido processo legal e a universalização dos direitos humanos que superassem também a opressão das mulheres, das populações etnicamente discriminadas, dos jovens, dos gays.
Ao se falar de uma “unidade teórica de sentido” procura-se diferenciar esse diagnóstico da obra inacabada de Marx de um campo de conceitos sem estrutura ou direção definido ou, ao inverso, de uma teoria sistematicamente formalizada, já plenamente integrada em seus conceitos fundamentais. Por isto, é fundamental entender a obra de Marx como uma teoria da emancipação, cujo centro é a liberdade. O norte da sua crítica é a incompatibilidade entre a democracia liberal e o capitalismo com o valor da liberdade. A cultura da chamada “guerra fria” e o neoliberalismo massificaram a noção da incompatibilidade de Marx com os fundamentos da liberdade. O Renascimento de Marx permite, ao invés, acusar a incompatibilidade do capitalismo neoliberal com o valor da liberdade, entendida como autogoverno e fundamentada na superação das desigualdades estruturais de classe, raça e gênero.
Como desenvolve a grande teórica política do marxismo contemporâneo, já falecida, Ellen Melksins Wood, no capítulo “Democracia”, a obra de Marx na crítica da democracia liberal vai além de sua limitação estrutural advinda da desigualdade de classes e a compreende em sua relação mediada mas estruturante da dominação do capital. Como insistem vários autores, entre eles o próprio Marcello Musto no capítulo “Comunismo”, os escritos políticos de Marx sobre o socialismo vão além das demandas econômicas distributivistas e propõem a superação do próprio modo de produção capitalista. Assim também o humanismo presente desde o início na obra de Marx autoriza uma concepção de liberdade socialista que aponta para um máximo campo de individuação da liberdade em uma civilização com o mínimo de coerção e constrangimentos, historicamente possível através de uma reorganização democrática radical dos fundamentos do Estado e de uma socialização pública da economia.
Tal unidade teórica de sentido vale para pensar o conceito de Marx sobre o Estado capitalista. Bob Jessop, o grande teórico herdeiro e continuador das reflexões de Poulantzas, no capítulo sobre “Estado”, cita os estudos juvenis iniciais de Marx, documentados nos Cadernos de Kreusnach, sobre a história dos Estados e o desenvolvimento social na França, Itália, Inglaterra, Polônia, Alemanha, Suécia e Estados Unidos, além de anotações sobre a revolução francesa e sobre os clássicos modernos da teoria política. Em 1844, após sua crítica à Filosofia do direito de Hegel, Marx esboçou um “projeto de plano para um trabalho sobre o Estado moderno” em onze capítulos.
Nos planos da redação inacabada de O capital, houve sempre a indicação de um momento de tratamento conceitual do Estado como fundamento da reprodução do capitalismo. Já o livro I tratou extensivamente de como os Estados espanhol, português, holandês, francês e, em particular o inglês, agiram no sentido de encurtar a transição feudal para o modo de produção capitalista. Essas análises mostraram como o Estado agiu para estruturar o mercado mundial, com a potência líder Inglaterra dominada pela burguesia de seu país. Mas um tratamento teórico do Estado capitalista não foi desenvolvido.
A ausência de um tratamento conceitual concentrado sobre o Estado em Marx levou a que marxistas, em um esforço doutrinário artificial de pensá-la como obra sistemática concluída do ponto de vista teórico, pensassem a política e o próprio Estado como uma instância superestrutural, derivada ou determinada pela economia, mesmo com mediações. Em uma linguagem na verdade mais próxima da economia política liberal, que concebia a gênese espontânea da ordem capitalista e o seu funcionamento de acordo com leis próprias, marxismos pretenderam conformar o marxismo a uma ordem científica de conceitos em oposição às linguagens da filosofia política.
O caminho proposto por Gramsci nos Cadernos do cárcere foi exatamente em direção oposta. Em diálogo com a obra de Marx, denunciar o economicismo e determinismo, propondo uma refundação da filosofia marxista entendida como uma filosofia da práxis de emancipação do capitalismo. E através de conceitos de unificação da política e economia e cultura – Estado integral, bloco histórico, intelectual orgânico e hegemonia – projetar um campo unitário de conceitos do marxismo, atando a crítica da economia, da política e dos valores liberais a um novo programa histórico de civilização alternativo ao capitalismo.
Se a obra de Marx foi construída desde os anos 40 do século XIX como uma crítica da ordem liberal vigente, a reconstituição de um campo teórico unitário do socialismo democrático no século XXI, centrado no valor ético-político da liberdade, passa pela crítica e programatização da superação do capitalismo neoliberal. O Marx livre que resulta de O Renascimento de Marx é, pela inteligência crítica que reúne, uma plataforma fundamental para se elaborar um programa político histórico, unitário e contemporâneo, para o socialismo democrático.
O Renascimento de Marx e os marxismos brasileiros
Há vários caminhos para se apontar a importância decisiva deste livro para os marxistas brasileiros e para a construção de uma cultura socialista democrática para as esquerdas brasileiras.
O primeiro deles é o reconhecimento de que as esquerdas brasileiras, em sua história, tiveram um acesso viesado, fragmentado e descontínuo, ou mesmo indireto, com a obra de Marx. A geração de marxistas dos anos 1930 e do pós-guerra do século XX conheceram Marx em geral por meio do paradigma do marxismo russo, estalinizado e dogmatizado. A geração de marxistas que se constituiu no período de resistência à ditadura militar já se formou em uma ambiência de crise aguda de paradigmas de leitura de Marx. A partir dos anos 1980 e, principalmente dos anos 1990, os circuitos marxistas existentes, nas universidades, em editoras, centros de difusão e experiências de formação, foram fortemente desorganizados através da dinâmica neoliberal. Somente no período recente, as edições críticas da chamada Mega 2 foram disponibilizadas. Conhecer criticamente a obra do principal fundador do socialismo democrático ainda é um desafio para as esquerdas brasileiras.
Esse conhecimento descontínuo e fragmentado da obra de Marx, em um quadro de crise das subculturas do marxismo que se formaram na dispersão de paradigmas do século XX, está na base de uma defasagem histórica entre a força política e social das esquerdas brasileiras, em sua expressão eleitoral e em movimentos sociais organizados, e a construção de uma cultura pública do socialismo democrático que, em uma concepção plural, tem certamente no marxismo o seu principal vetor histórico de referência anticapitalista. O que se poderia chamar de uma cultura pragmática, focada em responder desafios políticos urgentes com base em correlações de forças dadas, cresceu, impondo barreiras à formação de um programa histórico socialista frente à pressão neoliberal. Um encontro fecundo entre a obra de Marx em seu esforço de atualização e as esquerdas brasileiras ainda está por se construir.
Um fenômeno resultante desta defasagem entre Marx e as esquerdas brasileiras é a não expressão programática plena dos sentimentos e culturas potencialmente anticapitalistas que vicejam na sociedade brasileira a partir do classismo, das lutas feministas e antirracistas, das lutas dos povos indígenas, dos movimentos LGBTQI+, da educação e da saúde públicas, dos movimentos de ocupações nas cidades e das lutas ecológicas em crescimento. Em geral, essas culturas de direitos histórica e estruturalmente violados pelo capitalismo brasileiros permanecem sem uma convergência programática. O campo de conceitos e a unidade de sentido presente na obra de Marx pode certamente contribuir decisivamente para esta construção.
Uma penúltima contribuição decisiva deste livro seria o de incentivar a unidade histórica das esquerdas brasileiras desde sempre divididas por diferentes paradigmas e interpretações do marxismo. A obra de Marx, em sua unidade de sentido, é um caminho incontornável para a construção desta unidade histórica.
Por fim, o não desenvolvimento de uma cultura socialista democrática no Brasil gerou um baixo padrão internacionalista, mesmo latino-americano, nas esquerdas brasileiras. A conexão com o esforço internacional de reler e atualizar Marx certamente pode alimentar uma consciência internacionalista, tão formadora da práxis de Marx e Engels. O internacionalismo, mais do que uma moralidade solidária às lutas anticapitalistas que se desenvolvem no mundo hoje, é necessário para as próprias esquerdas brasileiras mapearem a sua práxis em meio ao labirinto da crise mundial do capitalismo neste século XXI.
1Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (1976), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1990), doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1997) e pós-doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor e organizador de vários livros, entre eles Dimensões políticas da justiça (2013), Em defesa de uma opinião pública democrática (2014), Risco e futuro da democracia brasileira (2016) e Jornal Nacional – Um projeto de poder (2021).
1 – Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (1976), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1990), doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1997) e pós-doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor e organizador de vários livros, entre eles Dimensões políticas da justiça (2013), Em defesa de uma opinião pública democrática (2014), Risco e futuro da democracia brasileira (2016) e Jornal Nacional – Um projeto de poder (2021).
2Cf. Marx e Engels, Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1963.