Para a socióloga e ex-ministra da Secretaria de Política para as Mulheres, o afastamento de Dilma Rousseff trouxe grandes prejuízos para o país e a sociedade. Ela comemora a decisão do TRF1 e constata que agora há uma nova oportunidade para a Nação com Lula. “Estamos vendo o jardim da sociedade florescendo. É uma primavera de agora, uma nova primavera depois do golpe”, diz

Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo da ex-presidenta Dilma Roussef é só um dos pontos altos no histórico de consciência cidadã ativa e feminista. Recentemente eleita presidenta do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, a socióloga, pesquisadora e professora recebeu a reportagem da Focus Brasil para falar deste novo momento na FPA e dos rumos da política brasileira. 

“Trabalhar na Fundação Perseu Abramo na resistência ao bolsonarismo, ao fundamentalismo, à política do ódio, no momento em que ela foi presidida pelo Aloizio Mercadante e o Conselho Curador pela ex-presidenta Dilma e Fernando Haddad nos exigiu uma militância, uma produção como nunca teve”, aponta Eleonora. 

Ela diz que agora é um novo presente, que pede novas perspectivas de gestão, na busca do diálogo ativo com pessoas de fora. “Temos ideia de buscar as ministras e os ministros para dialogar sobre as suas políticas. É uma questão muito importante convidar pessoas que não estejam no Conselho, mas que são do Partido dos Trabalhadores e possam dar sua contribuição”, diz. 

Militante política desde os anos 60, Eleonora é graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora titular de saúde coletiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Concluiu mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba em 1983, com doutorado em Ciência Política pela USP, pós-doutorado em Saúde e Trabalho das Mulheres pela Universidade de Milão (1994–1995) e livre-docência em Saúde Coletiva pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. 

Toda essa expertise guia a militância da ex-ministra e contribuição na construção de políticas públicas e defesa dos direitos das mulheres brasileiras. Sua atuação de resistência em momentos difíceis da democracia brasileira, como os golpes de 1964 e o de 2016 refletem em seu trabalho. Para Eleonora, é impossível seguir sem ter em mente a destruição deixada pelo governo anterior. “Estamos ainda escavando sepulturas para tirar mortos, sepulturas das mortes de políticas sociais, de direitos. Mortes da juventude negra, de morte, do medo da morte, do feminicídio, do aumento do genocídio da população negra jovem, do aumento do ódio, da misoginia, do racismo, da transfobia”, destaca. “A ultradireita não admite conviver com esses direitos das pessoas”. 

A nova presidenta do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, no entanto, vê o momento com alegria e esperança, um renascer da democracia e do Estado brasileiro como guardião da sociedade. “Ainda são apenas sete meses do primeiro ano. É muito pouco e já se fez muito”, afirma. “Nós semeamos na resistência e estamos colhendo agora com o governo Lula todas as sementes da liberdade que nós plantamos na resistência. Estamos colhendo. E eu tenho certeza que o jardim da sociedade está florescendo. Para mim é um privilégio histórico viver novamente um terceiro mandato do presidente Lula”. A seguir, os principais trechos de sua entrevista.

Focus Brasil — Como a senhora está vendo os planos para a Fundação Perseu Abramo neste momento com Lula na Presidência?

Eleonora Menicucci — Para mim é, foi e é uma honra muito grande ter sido eleita como presidenta do Conselho Curador. É preciso ficar claro que o conselho não é meramente uma entidade figurativa. É o Conselho que analisa, avalia, aprova ou desaprova todas as decisões tomadas pela diretoria da fundação. A novidade nessa minha gestão que venho impondo é que o conselho tenha que ter, e deve ter, mais algumas atividades além dessas já estabelecidas. Primeiro, em todas as reuniões, agora teremos alguém que faça uma análise. Já tivemos o Marcelo Manzano que fez uma análise de conjuntura, mas também vamos buscar interlocutores por áreas temáticas. Temos ideia de buscar as ministras e os ministros [do governo federal] para conversar conosco, dialogar sobre as suas atuações, suas políticas. E há uma alternativa, que não é excludente das duas primeiras, de convidarmos os setoriais [da FPA] para falar e as secretarias. Para mim, é uma questão muito importante também é convidar pessoas que não estejam no conselho, mas que são do Partido dos Trabalhadores e que possam dar sua contribuição sobre a sua expertise.

— Como tem sido o trabalho e como a senhora estruturou essa nova gestão?

— Estamos trabalhando muito e junto. São duas frentes. Primeiro, junto com a formação, nós estamos ativamente na Nova Primavera, com a Vivian Farias, que é a vice-presidente da FPA. Na Marcha das Margaridas deste ano, tivemos uma mesa da Nova Primavera, onde estávamos presentes, eu, a Vivi como coordenadora e a Anne, da Secretaria Nacional de Mulheres, com várias outras companheiras — e foi bem interessante, muito bonita, muito bacana. 

A outra frente da formação, consiste no trabalho junto com a Escola de Formação, com Maria do Rosário, para trabalharmos juntos. A terceira é o projeto que nós estamos iniciando agora com o NOP para fazer uma série de publicações sobre o tema do feminismo. Como o feminismo entrou no PT? Isso para mim é sopa no mel, como se diz: fui fundadora do PT, combina com minha militância feminista dentro do PT — eu participei todas as secretarias de mulheres do PT. 

Para esse projeto, agrupamos algumas mulheres, creio que em torno de 20, que foram importantes na fundação do PT e são feministas. Faremos uma primeira reunião na semana que vem para traçarmos as diretrizes desse projeto que nós pretendemos lançar em 2024. Então, como vocês podem perceber, tem muita coisa. Agora, sobre esse momento, o que mudou é que trabalhar na Fundação Perseu Abramo na resistência ao bolsonarismo, ao fundamentalismo, à política do ódio, no momento em que a fundação foi presidida pelo Aloizio Mercadante e o Conselho Curador pela ex-presidenta Dilma e pelo Fernando Haddad, em tempos diferentes, nos exigiu uma militância, uma produção como nunca teve. E conseguimos avançar demais. Agora, estamos noutro momento. Ufa! Respirando e sonhando, realizando e tampando todos os buracos deixados pelo governo e pelo Golpe de 2016. E aqui eu quero fazer uma homenagem, fazer uma “femenagem” à nossa querida presidenta Dilma Rousseff, por ter tido confirmado pelo TRF que foi golpe em 2016, ao arquivamento de todas as denúncias de ‘pedaladas fiscais’. Mostrou quem é ela, que mulher ética que ela é, que representante de mulheres no poder que nós tivemos. Quero aqui deixar bem registrado isso.

— Mais uma vez a Dilma tem a inocência confirmada. Especialmente para vocês, mulheres que fizeram parte do governo dela, esse golpe deve ter ficado preso na garganta, porque é um prejuízo irrecuperável. O que a senhora sente quando essa inocência é declarada, depois de tanta injustiça num golpe que vocês alertaram e lutaram tanto para que não acontecesse? 

— Eu me sinto absolutamente libertada enquanto mulher. E acho que o movimento de mulheres também, as mulheres brasileiras que votaram na Dilma e, de uma forma ou de outra, aquelas que não votaram e se arrependeram. Porque nós libertamos a democracia com esse arquivamento que referendou a nossa palavra de lá atras que era golpe. Isso é muito importante e eu, como mulher, ex-ministra de Política para as Mulheres nos dois mandatos da presidenta Dilma Rousseff – eu, inclusive não gosto de chamá-la de Dilma em público, como ex-ministra que ficou com ela até o último dia e ficou na resistência, eu gosto de referendar cada vez mais que ela foi a primeira mulher eleita e reeleita no Brasil e, depois, golpeada. Portanto, é a presidenta… nós fomos golpeadas três vezes: a primeira vez, no golpe de 1964, assistimos ao golpe, vivemos o golpe, lutamos contra o golpe, ficamos na clandestinidade, fomos presas… Depois teve o golpe da retirada da presidenta Dilma, da forma como ela foi brutalmente retirada do poder, a retirada da faixa de presidenta. E o terceiro, com a prisão do presidente Lula. Então vivemos três golpes e espero não ter de falar de mais nenhum. E as consequências do golpe contra a presidenta Dilma deram no Bolsonaro, no cavernícola.

— Como é que a senhora está vendo este começo do governo Lula 3? Estou perguntando isso por que a gente já está a 2/3 do primeiro ano. Como é que você vê a conjuntura e o governo Lula na conjuntura política?

— Acho que o governo Lula está indo bem. Nós temos feito várias conversas, várias discussões no grupo de conjuntura nacional e internacional, temos várias reflexões. A primeira é que o presidente Lula — e todos nós que estamos com ele, dentro ou fora do governo —, mas sobretudo ele, entende que estamos ainda escavando sepulturas para tirar mortos e escavando sepulturas de mortes políticas sociais, de direitos e, evidentemente, de mortes da juventude negra, de morte, do medo da morte, do feminicídio, do aumento do genocídio da população negra jovem, do aumento da do ódio, da misoginia, do racismo, da transfobia…  

E por que aumentou? Porque nos governos do presidente Lula e da presidenta Dilma, esses sujeitos de direito vieram à tona e a ultradireita não admite conviver com esses direitos das pessoas que, entre aspas, são diferentes. Acho que isso já é um ganho do governo. Segundo, e eu tenho aqui para mim uma esperança baseada na luta, que a relação com esse Congresso é a mesma que se deu no governo Dilma e no segundo mandato do Lula. Ou seja, é um Congresso reacionário, fundamentalista e tudo o mais que sabemos. E nós não podemos esquecer que nós ganhamos muito pouco. Essa relação com o Congresso é de embate mesmo, e tem que ter acordo, porque a política é feita disso mesmo. Nós não estamos implantando o socialismo…. 

Eu gosto muito de contar uma história que, quando fui como ministra para aprovar com o Eduardo Cunha, a Lei do Feminicídio, ele só aprovou quando eu e a minha equipe, as mulheres que estavam lá e as deputadas, concordamos em tirar a palavra gênero e exigiu que fosse substituído por sexo. Nós acabamos cedendo, então eu entendo essa dificuldade. São processos da negociação. Claro que eu gostaria que já tivesse avançado mais, mas ainda são apenas sete meses do primeiro ano. É muito pouco e já se fez muito. 

Olha a repercussão, olha o que ele tem feito de política externa, agora com os BRICS na África do Sul e em Angola. Olha o PAC 3, olha o Ministério das Mulheres, que está implantando construindo 27 Casas da Mulher Brasileira pelo país. Não é pouca coisa. E isso num cenário desfavorável: a política da América Latina está indo muito para a direita, com raríssimas exceções. Esse tal de Milei [Javier Milei, candidato da extrema-direita à Presidência da Argentina] é um novo Bolsonaro. Temos que ter muita clareza política para saber que caminho nós vamos seguir até 2026, para não aparecer um Milei aqui. Credo!

— O PT é um partido que foi fundado também por mulheres. Toda a sua história, a militância feminina e sindicalista de profissionais liberais e feministas teve presente no PT. Pergunto: por que a gente [mulheres petistas] ainda tem tanta dificuldade de ocupar espaço, de discutir o governo? 

— Eu parto do pressuposto seguinte: eu estou no PT há 40 anos. E já avançou muito. E temos uma presidenta mulher no partido e tivemos uma presidenta da República mulher, duas grandes presidentes. Porém, evidentemente, somos o único partido que tem paridade. Mas o PT não é uma ilha fora da sociedade. Eu brigo lá dentro, discuto, mas o PT é um partido que nasce no patriarcado, com as mulheres lutando contra o patriarcado e a cultura patriarcal. E não está fora dos nossos companheiros homens e de algumas mulheres também. Para quebrar essa lógica patriarcal é muito difícil. E eu acho que nós temos que lutar cada vez mais contra isso. 

Paridade, por exemplo: não vale só estar no estatuto, tem que cumprir a paridade. Agora eu também falo; estamos agora discutindo como aumentar os serviços de aborto legal. Do aborto legal, faço questão de frisar. Nós brigamos por isso, o PT defende, a Gleisi [Hoffmann, presidenta do PT] não tem problema em defender, mas a sociedade brasileira é uma sociedade absolutamente retrógrada e fundamentalista nesse campo. E nós temos dentro do PT grupos também assim. 

Então é por isso que eu acho que a luta contra o patriarcado é uma luta também dentro do PT. Tem que continuar ir rompendo porque é classe, gênero, raça. Aí agora tem etnia, temos população indígena, tem os territórios, tem a população LGBTQIA+ e nós vamos avançando, mas é evidente que é muito devagar. Eu não espero morrer antes de ter isso tudo, pelo menos essas pautas de direitos. O feminicídio de mulheres negras é bárbaro sim, cruel a pandemia para todas nós, mulheres, mas foi ainda pior para as mulheres pretas e pobres. Classe e raça no Brasil é colado e aí e colocamos que também é colado classe, gênero e raça. Como é que pode um partido do tamanho do nosso não olhar nas suas entranhas para isso? Eu acho que as secretarias das mulheres, a secretaria LGBTQIA+, a secretaria da Igualdade Racial, o setorial de Direitos Humanos… Todos esses segmentos têm feito um trabalho exemplar. De um tempo para cá, que se iniciou uma conversa transversal com os temas considerados mais nobres, que é educação, saúde, cultura. Mas falta a economia incorporar isso também. Eu acho que eu aprendi ao longo da minha vida o que significa paciência histórica. É brigar, lutar, avançar no diálogo para conseguir incorporar essas pautas na realidade, não só nos estatutos. Tem um pedaço aí desta da luta contra o patriarcado, que é uma mudança cultural muito profunda. 

— A senhora deu uma entrevista no ano passado dizendo tudo o que foi construído na secretaria de Políticas para as Mulheres, no governo Dilma, foi praticamente destruído pela gestão anterior. Qual o alcance desse prejuízo? O que deve ser a prioridade agora nas políticas das mulheres?

— Já está sendo foi, porque a ministra Cida [Gonçalves] tem colocado isso como prioridade, a violência contra as mulheres aumentou e isso foi incentivado diretamente por ele, que assumiu esses quatro anos o ódio que tem das mulheres. Era prioritário nos atacar, acabar com as mulheres. Então, aumentou o feminicídio em 56,2%. É muito. No governo dele, as mulheres não tiveram lugar: tinha a inominável Damares e a Tereza Cristina, da Agricultura, mas que essas eram acima de qualquer coisa, bolsonaristas, fundamentalistas e de extrema direita. Ele acabou com a Secretaria de Políticas das Mulheres, de Política de Igualdade Racial e da Juventude e colocou tudo num balaio só: Ministério da Família. E não é qualquer família, mas sim a família monogâmica, heterossexual, compulsória, fecundante. Não se aceitava as famílias que não fossem homem e mulher. Houve um ataque às mulheres e que foram expressos naquelas duas meninas estupradas e que não conseguiram realizar o aborto legal em Santa Catarina e em Vitória. Vocês se lembram disso? Era uma menina de 11 anos. A violência contra as mulheres é a porta de entrada para o feminicídio.

— Quando se olha o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, além do feminicídio, ocorreram no Brasil em 2022, até dezembro, 78 mil estupros. É uma chaga nacional…

— Um recorde dos recordes, o máximo que o Brasil já tinha chegado nessa ignomínia era de 45 mil, com Bolsonaro foi a 78 mil. É a violência das violências…. Isso é prova do fato de que  eles transformam as mulheres em inimigas. Infelizmente, essa violência não tem cor, não tem classe e gênero. Só tem gênero. Essa questão de gênero é a misoginia levada pelo Estado. Se nós não entendemos isso, a categoria de gênero não vai nos ajudar a compreender esse buraco que foi a outra gestão. Quando ele destrói as políticas sociais, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, está atingindo as mulheres e as mulheres pobres.  Ora, 48% das famílias são chefiadas por mulheres. Então as políticas sociais afetam diretamente as mulheres. E a questão do ódio à população negra, o que aumentou… O extermínio da população negra foi inimaginável. E a outra grande questão foi negacionismo da ciência. Eu sou professora de universidade, houve um negacionismo da ciência, especialmente na saúde, que é minha área, negacionismo das doenças. O sarampo, que nós já havíamos zerado, volta com toda força. Na pandemia, mais de 40% dos 700 mil mortos e mortas na pandemia são de responsabilidade dele [Jair Bolsonaro]. Ele carrega sangue no corpo dele e na história e no nome, por causa do negacionismo de não aceitar as vacinas, de indicar remédio que não valia nada, que não tinha credencial nenhuma para que não tinha validade científica nenhuma para coronavírus. 

— A destruição das políticas educacionais de ciência afeta mais a quem?  

— Aos pobres, mulheres e negros. Vivemos quatro anos de terra arrasada e de extermínio. Eu o chamo de genocida há muito tempo. O primeiro texto que eu escrevi depois do golpe é sobre isso: o golpe foi misógino, fundamentalista, internacional, capitalista, parlamentar e judiciário. Então, ao longo desses anos, fui escrevendo sobre cada uma delas. Que significavam esses conceitos. E com o ar de liberdade que estamos respirando agora permite que os medos se organizem e permite que os movimentos também reclamem, demandem. E isso faz parte da democracia. Hoje, no MASP está tendo uma manifestação enorme do movimento negro em rede, reverência aos grandes personagens da nossa história, mortos antes e depois. Até então. Hoje ocupa as ruas. Você tem permissão libertária para ocupar as ruas.

— Sua especialidade é em saúde coletiva. Tivemos três anos terríveis de pandemia e vivemos um trauma social. O Brasil ainda estava sob as ordens de um genocida e negacionista, ou seja, tivemos um “adicional de insalubridade”. Como é que a gente vai se curar desse trauma da pandemia? 

— Eu trabalho a saúde e a doença como sendo um processo social, não vejo a doença só na perspectiva do biológico, embora ela o seja. Mas eu a vejo também como um problema social. E esse trauma, que é um trauma social — o Bourdieu [Pierre Bourdier, filósofo francês falecido em 2002] — já fala muito nisso, Fanon [Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo] no livro “Os condenados da Terra”… Vivemos as 700 mil mortes absolutamente de forma irregular, sabe? Ocorreram as mortes, ficamos confinados, isso é um trauma que a pandemia pode nos trazer, nos deixou de legado muito mais cuidado social com a transmissão das doenças, muito mais respeito ao coletivo e ao outro ou a outra, porque a máscara é um sinal de respeito. Quando você está tossindo ou resfriada, por que não sai de máscara? Esse é o legado social. 

O outro legado social muito grande é a importância da educação, porque a educação foi destruída, usada na época da dor, do inominável. Mas na época da pandemia, as crianças foram as mais afetadas sem aula nessa perspectiva do social e, por consequência disso, as mulheres. O confinamento trouxe tripla tarefa para as mulheres que já cuidavam de casa, das crianças e dos idosos. É aí que surge planetariamente o conceito de política de cuidados. Isso é um legado histórico enorme, porque o cuidado deixou de ser naturalizado. É isso que as mulheres feministas fizeram, sobretudo nós, da área da saúde. A desnaturalização do cuidado como sendo de responsabilidade única da mulher e passando para uma política do cuidado, que é responsabilidade do Estado, da sociedade e da família e da mulher. E nos mostrou também a falta de creches, a falta de escola e o acesso da população idosa a equipamentos de acolhimento. Não essas casas que a família joga, os idosos que não tem depósito. Seu legado muito grande, na minha perspectiva, deixou um legado muito violento da perda social do novo. E acho que este governo do presidente Lula está tentando e está conseguindo retomar hoje, com a aprovação da política do salário-mínimo como política de Estado,

— Você é da geração jovem em 1964, viveu o trauma do golpe, mas também, paradoxalmente, no momento posterior, um período de efervescência política e cultural do Brasil até 1968. Como aquilo que aconteceu nos anos 1960 ainda reverbera no imaginário político e cultural?

— Foi um privilégio, sobretudo porque eu sou da geração que foi à luta, que esteve em todos os momentos, no mesmo tempo que estava nos festivais, estava na luta, tudo a gente fazia um espaço de luta cultural muito grande. Você vê Milton Nascimento, Elis Regina e Rita Lee, Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Chico Buarque… O Zé Kéti. Como não falar de Zé Kéti, da Zezé Motta… Foi um período muito importante, reverbera até hoje e, naquele momento, reverberou na resistência. Quero deixar inclusive um tributo aqui a todos os artistas, homens e mulheres, seja do palco, da voz, do canto, da dança… Tiveram um papel fundamental, um lugar de destaque absoluto, foram nossos porta vozes. Agora tem Margareth Menezes no Ministério da Cultura, com a força que ela traz da mulher negra, do canto negro, do canto nordestino, do canto baiano… É muito forte isso. O Brasil é uma reverberação através  através da música, através da cultura. Infelizmente perdemos alguns: a Gal Costa, Rita Lee, o Erasmo Carlos, o Aldir Blanc… Vivemos um deserto, mas semeamos na resistência e estamos colhendo agora com Lula todas as sementes da liberdade que plantamos na resistência. Estamos colhendo. E eu tenho certeza que o jardim da sociedade está florescendo. É uma primavera de agora, uma nova primavera depois do golpe. Eu quero até terminar dizendo que eu tenho muito orgulho de ter 79 anos, com muita luta, muita determinação, muita energia e a oportunidade que a vida me deu de ser mulher ativa nesse momento de resgate histórico da liberdade no nosso país. Para mim é um privilégio histórico viver novamente um terceiro mandato do presidente Lula.

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