Insegurança e medo de uma categoria sem direitos
Nota sobre as pesquisas Ifood e Uber
Recentemente, pesquisas patrocinadas por empresas do ramo de serviços por aplicativo foram divulgadas e seus resultados têm sido debatidos publicamente. A primeira, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e publicada em abril de 2023, com patrocínio da associação patronal de tais empresas, Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), com metodologia quantitativa, buscou traçar um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores. A mais recente, realizada pelo Datafolha com patrocínio do Ifood e da Uber, também quantitativa, abordou o tema de direitos, benefícios e modelos de trabalho. Ambas as pesquisas inserem-se numa conjuntura na qual a discussão sobre regulamentação do trabalho por aplicativo ganha força não apenas no Brasil, como também no mundo todo.
Neste artigo, pretendemos fazer alguns apontamentos metodológicos sobre ambos os estudos, defendendo a necessidade de realizar pesquisas que busquem realmente aprofundar a discussão e compreender as demandas dos entregadores e motoristas, para além dos interesses de grupos de pressão e de advocacy.
Recentemente, o grupo Direito do Trabalho no Século XXI, vinculado à pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou nota técnica que apontou “graves inconsistências metodológicas” no estudo Amobitec/Cebrap. Segundo eles, uma reanálise dos dados divulgados confronta o que o release do centro de estudos e a associação patronal tentaram emplacar: que, ao trabalhar 40 horas semanais, os motorista e entregadores poderiam ter, respectivamente, rendimentos líquidos na ordem dos 2900 reais a 4700 reais e 1980 reais e 3039 reais. Segundo os pesquisadores da UFRJ, o cálculo considera as horas em atendimento e ignora o tempo de espera entre uma corrida e outra, uma entrega e outra — chamado “tempo à disposição”. Se considerado o “tempo à disposição” nas 40 horas semanais, o rendimento mensal reduziria significativamente. Esta contagem do tempo proposto pela Amobitec/CEBRAP induz o leitor a surperestimar a renda de um trabalhador por aplicativo.
No caso da pesquisa Ifood/Uber/Datafolha, publicada esta semana de maio de 2023, podemos apontar inconsistências semelhantes – não no cálculo de resultados e frequências, mas na maneira como o instituto formulou e apresentou as perguntas para os entrevistados e entrevistadas.
A pesquisa traz que 75% dos entregadores e motoristas preferem manter o modelo atual de contratação, contra 14% que dizem preferir “ter vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT”. Além disso, segundo a DataFolha, 91% prefeririam um modelo de contratação A em contraposição a um modelo B.
E como fizeram isso? Submeteram o entrevistador a escolha de dois “modelos” com ofertas de benefícios e direitos. Cabia a ele escolher aquele que lhe parecia mais vantajoso.
O problema é que a pesquisa opta por questões binárias formuladas de uma maneira bem marcada, dando ao modelo de contratação “autônomo” um tom mais otimista; e ao modelo “CLT” um tom mais crítico, como se reproduz a seguir:
‘Modelo A”:
- Liberdade e autonomia para eu decidir o horário em que vou trabalhar a qualquer momento de minha escolha.
- Que eu possa recusar as viagens/ os pedidos de entrega a qualquer momento, sem multa.
- Que eu possa trabalhar com múltiplos aplicativos do meu interesse, inclusive do mesmo segmento.
- Alguns benefícios e proteção social, sem que isso restrinja oportunidades de trabalho.
- Ganhos proporcionais ao trabalho realizado, da forma como é hoje”.
O modelo oposto, o “modelo B”, garantiria:
- Que a empresa determine os horários e locais em que vou trabalhar.
- Que a empresa tenha controle do seu planejamento de viagens e entregas, exigindo que ele seja executado, sob risco de multa ou até demissão.
- À empresa poder para exigir que eu trabalhe apenas com um aplicativo.
- Todos os direitos trabalhistas, ainda que isso implique diminuição das oportunidades de trabalho e da renda gerada a partir das plataformas.
- U salário mínimo (R$ 1.320), por mês, para uma jornada de trabalho de 40h semanais, com direito a repouso remunerado, férias remuneradas e 13o salário.”
Em um contexto em que o tema da regulamentação do trabalho por aplicativo está cada vez mais em debate, não houve qualquer esforço em captar quais as vantagens e desvantagens de cada modelo, e qual seria a possibilidade de combiná-las em um modelo próprio para o trabalho por plataforma. Não foi incluso nenhum ônus às alternativas defendidas pelas plataformas, ou listada qualquer desvantagem deste.
Quase todas as alternativas do ‘modelo B’ estão permeadas por ônus e por valores negativos, comprometendo qualquer imparcialidade da pergunta em questionar o melhor modelo.
O mesmo ocorre quando são apresentadas opções relacionadas a direitos e benefícios: a alternativa que se aproxima do modelo defendido pelas plataformas é colocada da seguinte forma: “É preciso garantir certos direitos e benefícios aos trabalhadores de aplicativos, desde que não interfiram na flexibilidade (ou seja, desde que se possa continuar trabalhando quando, como e com qual plataforma quiser, sem necessidade de agendamento obrigatório e comunicação com as plataformas)“; O modelo oposto, assim: “É necessário garantir todos os direitos trabalhistas aos trabalhadores de aplicativo, mesmo que isso signifique menor flexibilidade (ou seja, o motorista/entregador não poderia mais decidir quando e onde trabalhar, a quantidade de horas trabalhadas, bem como não poderia mais rejeitar solicitações de viagens / entregas a seu critério, sob pena de demissão ou sanções)”.
O único espaço para mensurar demandas dos entrevistados encontra-se numa pergunta sobre demandas de médio e longo prazo – nesta pergunta, os entregadores e motoristas
afirmam que os maiores medos concentram-se em temas como “manutenção/quebra do veículo/moto” (55%), o “ficar sem renda em caso de sofrer acidente” (46%), “de ser descadastrado da plataforma” (43%), “perder a renda em caso de doença” (36%) ou de “falecimento, deixando a família desamparada”(31%).
Nota-se uma insegurança e medo muito grandes, de uma categoria quase totalmente desamparada de direitos. Nenhum desses medos e ônus são abordados na mensuração do apoio ao modelo atual – o risco de ser descadastrado existe e não é mencionado, por exemplo. Mas no modelo CLT é colocado o risco de demissão.
A FPA entende a importância de compreender as alterações na dinâmica no mundo do trabalho. Tanto que, no âmbito do Centro de Análise da Sociedade Brasileira – em parceria com outras fundações partidárias -, está preparando uma grande pesquisa (quali e quantitativa) sobre as “novas” condições de trabalho e cultura política. Um time de pesquisadores está contribuindo conosco para que a pesquisa produzida não caia em erros metodológicos que podem induzir a uma análise equivocada sobre as condições de trabalho e a realidade da classe.