CLT chega a 80 anos ‘vulnerável’: redução de direitos em nome da ‘modernização’
Oito décadas após sua criação, conjunto de normas que garante dignidade aos trabalhadores é atacado por sucessivas “reformas” que só querem garantir lucros dos setores patronais
Uma das normas mais conhecidas e longevas do Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completa 80 anos nesta segunda-feira (1º). Ela garante aos trabalhadores uma série de direitos, como jornada diária máxima de oito horas, descanso semanal remunerado, férias, pagamento de hora extra, compensação por atuação em ambiente salubre, aviso prévio, licença-maternidade e paternidade, 13º salário, proteção contra demissão sem justa causa e seguro-desemprego.
A CLT (Decreto-Lei 5.452) foi um dos primeiros instrumentos de inclusão social do Brasil. Por essa razão, costuma ser qualificada como patrimônio do trabalhador e passaporte da cidadania.
A norma foi assinada por Getúlio Vargas em 1º de maio de 1943. Diferentemente do que informam diversos textos, o anúncio da CLT não foi feito em São Januário, campo do Vasco da Gama, na época o maior estádio de futebol do Rio de Janeiro, que costumava ser palco das festas do Dia do Trabalhador.
Foi da sacada do palácio do Ministério do Trabalho, no centro da antiga capital, que o presidente anunciou a novidade, num discurso dirigido à multidão que participava das comemorações organizadas pelo governo.
Como era o tempo do Estado Novo (1937-1945), a norma que instituiu a CLT não foi discutida pelo Senado nem pela Câmara, que permaneceram fechados durante o período autoritário varguista. O decreto-lei partiu do Poder Executivo.
A posterior adição de direitos à legislação trabalhista, ao contrário, passaria sempre pelo Parlamento. O 13º salário, por exemplo, veio em 1962. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), em 1967.
Primeiros passos
De acordo com historiadores, quando apresentou a CLT, Getúlio Vargas tinha três objetivos principais em mente. O primeiro era atrair mão de obra do campo para a cidade e, assim, abastecer e fortalecer as incipientes fábricas. O Brasil era majoritariamente rural. O governo Vargas, em suas diferentes fases, se caracterizou por apostar na indústria como combustível do desenvolvimento nacional.
O segundo objetivo era evitar a “luta de classes” – expressão aplicada à então realidade do país por Lindolfo Collor, um dos ministros do Trabalho de Getúlio Vargas. A criação de regras para o mercado de trabalho reduziria a exploração e, consequentemente, a insatisfação do operariado com os patrões e o governo, afastando o risco de rebeliões populares e instabilidade política e econômica.
O terceiro era sufocar o comunismo. A CLT, em seus primórdios, limitava o número de sindicatos e os subordinava ao Ministério do Trabalho, que proibia as greves e a disseminação de ideias tidas como subversivas.
Vulnerabilidade como nunca
A CLT surpreendeu por resistir à mudança dos tempos. No início quase exclusiva para os operários da indústria, aumentou seu alcance com o passar do tempo até englobar todo tipo de trabalhador.
O maior sinal de que não é datada ou ultrapassada foi emitido em 1988, quando diversas das proteções trabalhistas inscritas na CLT passaram a fazer parte da Constituição, ganhando o status de direitos sociais.
A bonança dos trabalhadores no campo das leis, porém, logo mudaria. Especialistas ouvidos pela Agência Senado avaliam que, hoje, a octogenária CLT vive o pior momento de sua história, com vários retrocessos.
O novo cenário se deve não só aos fenômenos da “uberização” (o trabalho por meio de aplicativos) e da “pejotização” (em que o trabalhador atua não como pessoa física, com carteira de trabalho assinada, mas como pessoa jurídica) e ao crescente número de brasileiros que sobrevivem fazendo “bicos”, mas também à ampla reforma trabalhista levada a cabo em 2017, pelo governo Michel Temer.
Afirma o doutor em direito trabalhista Renato Bignami, um dos diretores do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait): “Nos últimos 80 anos, os brasileiros nunca estiveram tão vulneráveis à exploração no trabalho quanto agora. Nas discussões da reforma trabalhista, falou-se muito que o Brasil estava desconectado do restante do mundo e que era necessário modernizar as leis do trabalho. Foi um argumento falacioso. O que se fez, na verdade, foi precarizar a situação do trabalhador para aumentar o lucro do empregador.”
Os enganos da “reforma”
A reforma trabalhista (Lei 13.467) estabeleceu que os acordos coletivos agora têm liberdade para prever condições de serviço que antes eram inaceitáveis por lei em relação a pontos como jornada de trabalho, banco de horas, intervalo de alimentação e até grau de insalubridade do ambiente.
Outra mudança foi a criação da figura do trabalho intermitente. Isso significa que o trabalhador pode ficar permanentemente à disposição do patrão para serviços que só aparecerão ocasionalmente. Especialistas consideram precário esse tipo de trabalho porque o empregado não recebe salário nos períodos em que não trabalha, à espera de ser chamado.
A reforma trabalhista ainda determinou que a reparação por dano extrapatrimonial (dano moral) agora seja proporcional à remuneração do trabalhador. Quanto mais baixo for o salário, menor será a indenização a ser desembolsada pelo patrão condenado. Para os estudiosos do direito trabalhista, trata-se de uma regra que fere a isonomia, por estabelecer um valor variável para a dignidade a depender da posição socioeconômica do ofendido.
A contribuição sindical obrigatória foi extinta. Hoje está na mão de cada trabalhador decidir se pagará ou não o tributo. Isso afetou as finanças dos sindicatos, dificultando seu funcionamento e sua capacidade de defender os interesses das respectivas categorias profissionais.
Bignami, do Sinait, lembra que, ao lado da necessidade de modernizar a legislação, outro argumento utilizado para sustentar a reforma trabalhista de 2017 foi a urgência de se criarem postos de trabalho, dado o contexto de crise e desemprego. Afirmou-se que a CLT previa direitos demais, o que encareceria a contratação de mão de obra e desencorajaria a atuação dos empresários.
“Esse foi mais um dos argumentos descaradamente falaciosos. A função das leis trabalhistas não é criar postos de trabalho” ele refuta. “Emprego é criado quando o governo cuida adequadamente da economia do país e estimula atividade produtiva. A função das leis trabalhistas é, na realidade, proteger o ser humano da exploração no trabalho, garantindo que ele tenha bem-estar e qualidade de vida e que a sociedade como um todo progrida.”
Promessas não cumpridas
O juiz trabalhista Luiz Antonio Colussi, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), concorda. Ele diz que a reforma trabalhista, ao contrário da promessa, não diminuiu o desemprego do Brasil. E acrescenta que a CLT não tem impacto significativo no Custo Brasil, já que inúmeras empresas do país seguem à risca a legislação sem que por isso deixem de contabilizar lucros. “Essa história de que as empresas não suportariam o custo dos direitos trabalhistas é velha. Na época em que se propôs o 13º salário, nos anos 1960, os empresários se opuseram duramente à medida alegando que era dinheiro demais a ser pago e que acabariam indo à falência. Obviamente, a previsão catastrofista não ser confirmou. Pelo contrário, os empresários passaram a lucrar mais, já que o salário extra na mão do trabalhador no fim do ano estimulou o consumo, o comércio e a indústria.”
Ainda em 2017, poucos meses antes da reforma trabalhista, foi aprovada a Lei da Terceirização (Lei 13.429), que permite que todas as atividades de uma empresa sejam terceirizadas — não só as atividades acessórias (como alimentação e transporte dos funcionários, limpeza, segurança), mas também a atividade principal.
Na terceirização, os trabalhadores pertencem ao quadro das empresas contratadas, diminuindo o custo da empresa contratante e o compromisso dela com os funcionários e abrindo espaço para aumento de jornada, maior recorrência de acidentes de trabalho (pelo excesso de trabalho), diminuição de salário, enfraquecimento sindical e dificuldade de responsabilização judicial.
Colussi, da Anamatra, entende que a legislação é essencial e que as relações trabalhistas não podem ser deixadas para a livre negociação entre empregadores e empregados:
“A relação contratual é desequilibrada. Os empregados são mais fracos. É só lembrar que na última eleição, em 2022, houve inúmeros casos de assédio eleitoral, com patrões constrangendo os funcionários a votar no seu candidato, na sua ideologia. A força do capital é maior inclusive para pressionar o poder público nas questões legislativas. Além disso, a regulação do trabalho é fundamental até mesmo por causa da cultura escravista que ainda não abandonamos. Se, tendo a CLT, encontramos com frequência casos de trabalho análogo à escravidão, imaginemos qual seria a situação se não tivéssemos a CLT.
Ataques em série à CLT
Ele afirma que os ataques à CLT não se limitaram à reforma trabalhista e à Lei da Terceirização. O juiz lembra que o governo Jair Bolsonaro também tentou suprimir direitos trabalhistas. Em 2019, incluiu-se na Medida Provisória da Liberdade Econômica (MP 881) a liberação do trabalho aos domingos sem pagamento em dobro, mas esse ponto foi vetado pelo Senado.
Outra medida provisória assinada em 2020, no início da pandemia, previu a dispensa de exames demissionais e o parcelamento de débitos trabalhistas em cinco anos (MP 927). Os senadores decidiram não votá-la, e a MP deixou de valer.
A advogada Gabriela Neves Delgado, professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro Direito Fundamental ao Trabalho Digno (LTr Editora), critica o fato de a reforma trabalhista ter sido apresentada pelo governo Temer e votada pelo Congresso às pressas, sem um debate público qualificado nem a participação de grupos importantes interessados na questão:
“A flexibilização dos direitos trabalhistas ocorreu num momento de crise. Em cenários de austeridade e de desemprego estrutural, com queda do número de trabalhadores sindicalizados, os sindicatos em geral acabam perdendo força e tendendo a desempenhar mais um papel de tentar salvar os direitos postos do que de reivindicar direitos novos. Nesses cenários, as mobilizações coletivas tendem a enfrentar mais dificuldades.”
Luta sem fim pela dignidade
Delgado, contudo, avalia que as mudanças de 2017 não representam uma derrota definitiva para quem depende do trabalho assalariado para viver.
De acordo com ela, as leis, quaisquer que sejam, precisam sempre ser interpretadas à luz da Constituição. Como a Carta de 1988 garante proteção explícita aos direitos trabalhistas, os retrocessos recentes podem ser revertidos por meio da doutrina elaborada pelos juristas e da jurisprudência fixada pelos tribunais.
“O direito é, por natureza, um espaço de luta constante. No direito do trabalho, essa luta é especialmente acirrada. Quando uma lei é aprovada, isso não significa que nada mais possa ser feito. Pelo contrário, existe muito espaço para que nós, os intérpretes da lei, atuemos. A nossa missão é não permitir que a CLT deixe de ser um instrumento bem-sucedido de proteção do trabalhador, de inclusão econômica e social e de cidadania.”
A advogada diz que a melhoria das condições de vida dos trabalhadores tem o poder de beneficiar toda a sociedade: “Trabalho digno significa menos pobreza. Quando a pobreza diminui, a economia se dinamiza, arrecadação tributária sobe, o nível geral de escolaridade aumenta, a violência diminui, a paz social cresce e o avanço civilizatório vem. Com trabalho digno, a sociedade se torna um lugar melhor para todo mundo.”
O senador Paulo Paim (PT-RS) votou contra a reforma trabalhista em 2017. Como foi vencido, decidiu encampar um anteprojeto que foi levado ao Senado no ano seguinte por entidades ligadas aos direitos trabalhistas, como o Sinait e a Anamatra, prevendo a criação do Estatuto do Trabalho.
A sugestão legislativa (SUG 12/2018) prevê a recuperação de diversas proteções perdidas e a criação de outras tantas, adaptadas ao mundo do trabalho remoto e do trabalho por aplicativos. O tema está em análise na Comissão de Direitos Humanos (CDH), que vem organizando audiências públicas com especialistas.
“A nossa premissa básica é que as leis não podem apenas beneficiar o lado do empregador” afirma Paim. “O empregado precisa ter dignidade no trabalho. É inadmissível, por exemplo, que um motorista de aplicativo sofra um acidente no trabalho e se lesione e que a empresa não assuma nenhuma responsabilidade por isso.”
Novos ventos
Paim se diz otimista. Ele avalia que o momento atual é mais propício do que os últimos anos para o debate, a construção coletiva de leis e a garantia de direitos sociais.
“O que queremos é, ao contrário da reforma trabalhista aprovada em 2017, discutir os direitos com calma e construí-los de baixo para cima, ouvindo todos e sem imposições vindas do alto. A ideia é que o Estatuto do Trabalho seja uma nova CLT.”
Ao contrário do que prega a historiografia mais difundida, a proteção do trabalhador não foi uma invenção de Getúlio Vargas, que assumiu o poder em 1930.
As primeiras leis trabalhistas do Brasil surgiram nas décadas de 1910 e 1920, na Primeira República, depois que operários de diferentes categorias fizeram greves para pressionar o empresariado e o poder público por direitos hoje corriqueiros, como o descanso no fim de semana. A mais célebre delas foi a grande greve de 1917, que paralisou a cidade de São Paulo.
O que a CLT de Vargas fez foi compilar esses primeiros direitos trabalhistas e também criar outras garantias que havia tempo eram pedidas.
O juiz Luiz Antonio Colussi, da Anamatra, entende que essa história, iniciada muito antes de Getúlio Vargas e da CLT, deve servir de inspiração para os trabalhadores de hoje:
“As garantias dadas ao trabalhador vieram à custa de muita luta e de sangue derramado. Elas não caíram do céu. Os brasileiros têm que entender que, se desejam conseguir novos direitos ou pelo menos não perder os atuais, precisam se informar, se mobilizar, protestar e fazer pressão política. Os trabalhadores são, sim, agentes históricos capazes de mudar a realidade.”
Reportagem de Ricardo Westin para a Agência Senado – Redação RBA Fábio M Michel