Nota pública: Erradicar o trabalho análogo ao de escravo
Os Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas da Fundação Perseu Abramo (NAPPs) abaixo indicados vêm a público manifestar sua absoluta indignação com a situação a que foram submetidos trabalhadores na coleta de uva no município de Bento Gonçalves, bem como sua repulsa com as manifestações associando tal situação ao Programa Bolsa Família.
É inadmissível que homens e mulheres em todo o país estejam, neste momento, assim como estiveram os trabalhadores resgatados no estado do Rio Grande do Sul, trabalhando em jornadas exaustivas, em servidão por dívidas forjadas, vítimas de todo o tipo de violências, em ambientes degradantes de higiene, segurança, alimentação, fornecimento de água e em trabalho forçado. Pessoas enganadas por agenciadores de mão e obra e traficadas para o trabalho.
Esse crime, previsto no art. 149 do Código Penal, precisa ser extirpado.
O resgate de mais de 200 trabalhadores em Bento Gonçalves demonstra que o trabalho análogo ao de escravo – e se diga análogo para diferenciação e em respeito às vítimas da escravidão negra, colonial e imperial – está criminosamente inserido em atividades econômicas modernas, sendo utilizado para acumulação de capital nesta etapa neoliberal globalizada do capitalismo.
Não se trata de atividade marginal, resquício anacrônico de um passado distante.
Empresas com utilização de tecnologia de ponta em várias etapas da produção se lançam à busca incessante da redução de custos. O fornecimento de mão de obra barata por empresas de terceirização que a isso se prestam é instrumento da degradação do trabalho humano. E além dos efeitos financeiros desempenham o papel de anteparo à imagem dos beneficiários deste trabalho.
A autorização da Lei 13.429/17 para a terceirização irrestrita e em qualquer tipo de atividade facilita todo tipo de abuso.
É necessária a responsabilização de toda a cadeia produtiva. É ainda necessário que tais empresas sejam penalizadas com constrangimento de linhas de crédito ou qualquer outro benefício público. Urge a regulamentação do artigo 243 da Constituição Federal visando a expropriação de propriedades urbanas e rurais que utilizam o trabalho análogo ao de escravo.
Informações veiculadas indicam que mais de um terço dos resgatados no estado do Rio Grande do Sul em 2022 são jovens de 18 a 24 anos1. Esse é um dos agravantes da situação, pois os aliciadores se valem da maior vulnerabilidade dos jovens que estão em busca de inserção no mercado de trabalho, com poucos recursos para recusar propostas de trabalho precário. Além de contarem com maior taxa de desemprego, os mais jovens ainda contam menos com redes de proteção e pressão social por trabalho decente. Tem sido recorrente a utilização de jovens em trabalhos que exigem jornadas extensivas, sem qualquer caráter formativo, comprometedores de uma vida laboral com progressão e aperfeiçoamento. Trata-se de uso intensivo de força de trabalho tida por descartável, impondo desgastes à saúde que podem afetar toda sua vida presente e futura e negando o direito ao trabalho decente e de inclusão cidadã digna. Repudiamos a ideia de que para quem está começando, qualquer trabalho é bom.
A ação de resgate desses trabalhadores em situação de escravização contemporânea, a maior no estado do Rio Grande do Sul, foi realizada de forma exemplar por grupo móvel, composto por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, Policia Federal e Policia Rodoviária Federal, com participação do Ministério Público do Trabalho, atendeu as diretrizes do 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, de 2008. Trata-se de política pública de direitos humanos, que vem sendo construída e desenvolvida desde 1995, e resgatou nesse período mais de 60 mil pessoas. Em que pese ter sido enfraquecida nos últimos anos, a ação do estado brasileiro no combate ao trabalho análogo ao de escravo é reconhecida como modelo internacional. É de ser também reconhecida a importância da ação imediata e articulada do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, da Secretaria de Justiça do estado da Bahia e do Sistema Único de Assistência (SUAS), bem como a cooperação entre os entes federados para o acolhimento e reinserção laboral digna dos trabalhadores resgatados. Da mesma forma, a importância do poder judiciário na responsabilização dos culpados.
Repudiamos veementemente afirmações que naturalizam o trabalho forçado e degradante sob a justificativa de falta de mão de obra, associada ao recebimento de benefícios assistenciais. Os impactos positivos do Programa Bolsa Família são atestados por inúmeros estudos. O que aquelas afirmações revelam é a dimensão da recusa do cumprimento da legislação trabalhista e de direitos humanos, a face desnudada da barbárie dirigida contra trabalhadores brasileiros pobres e majoritariamente negros.
Repudiamos igualmente as declarações racistas e xenofóbicas contra os trabalhadores resgatados e reafirmamos o compromisso com uma sociedade fraterna e livre de desigualdades e de toda forma de discriminação.
Integrantes do NAPP Trabalho
Integrantes do NAPP Juventude
Integrantes do NAPP Desenvolvimento Social
Integrantes do NAPP Igualdade Racial
Integrantes do NAPP Segurança Pública
1 www.g1.globo.com RS, por Pedro Trindade. Em dois meses, RS supera em 33% número de resgatados em situação semelhante à escravidão em 2022.25.02.2023. Acesso em 1.03.2023.