Pela imprensa, somos informados de que a entourage do presidente eleito e diplomado discute se Luiz Inácio Lula da Silva deve fazer o percurso até o Palácio do Planalto, para tomar posse em 1° de janeiro, em carro aberto ou em carro fechado e blindado. John Kennedy sabe a resposta, seria bom consultá-lo se ainda fosse possível. Alguns parece que não entenderam que não há diferença entre os “discursos de ódio”, alimentados pela lógica miliciana do bolsonarismo, e os atos de ódio.

Como escreveu Judith Butler, em um livro intitulado Excitable speech (Fala excitável), de 1997, não por acaso traduzido para o português, em 2021, com o título Discurso de ódio, a fala é em si uma ação em movimento com caráter performativo, o que torna sua enunciação um ato capaz até de matar. O terrorista de Brasília pôs em prática os comentários incitadores da violência de tipos como Rodrigo Constantino, Augusto Nunes, Paulo Figueiredo e quetais, que ouvia na emissora oficial do golpismo, a Jovem Pan. Para não referir outros agentes do caos, nas ondas bolsonaristas de rádio.

A exemplo do criminoso e seus comparsas, que queriam explodir um caminhão-tanque com 65 mil litros de querosene para aviação, no aeroporto de Brasília, os patriotários em ebulição possuem arsenais de armas e uma subjetividade transtornada o suficiente, pelo genocida inominável, para repetir o gesto hediondo de terror. Participantes do acampamento defronte ao QG do Exército, no Distrito Federal, chegaram a procurar um snipper para fazer um curso de tiro de precisão. A idiotia, alimentada pelo convívio doentio em uma realidade paralela, produz loucos às dúzias. Melhor não pagar para ver. O primeiro dever de um político ungido nas urnas é manter-se vivo para os eleitores.

Ao final do próximo mandato, Lula poderá desfilar em carro aberto ao se despedir do povo que o elegeu. É o tempo necessário para dissipar a loucura produzida pelo conluio midiático-judicial que, quatro anos atrás, impediu a candidatura do melhor presidente da República, na história do Brasil. Por agora, é sua obrigação viver para cumprir o mandato chancelado pela soberania popular.

É a cidadania que precisa desfilar pelas ruas no dia da posse do maior mandatário do país, como uma forma de exorcizar os demônios cultuados no último quadriênio, cujo objetivo anunciado pelo próprio Jair Bolsonaro em reunião com representantes da extrema-direita, nos Estados Unidos, logo após assumir, nunca foi propiciar melhores condições de vida para os brasileiros. Ao contrário, era destruir todos os resquícios de políticas que conduziam ao Estado de Bem-Estar Social. Foi a única “verdade” no mandato-canalha de destruição protagonizado pelo pária, sem precisar trabalhar.

O mal produzido pelo “rachadinha” é ainda incomensurável. A equipe de transição não conseguiu trazer à tona sequer 10% dos crimes cometidos pela famiglia e os apaniguados (não dá para chamar de ministros), no poder. À medida que a opinião pública tomar conhecimento das falcatruas, o que é de direito pela lei de transparência sobre as atividades dos agentes do Estado, o ódio destilado em doses cavalares nos porões da presidência escorrerá pelo ralo. Até lá, qualquer cuidado é pouco. Por sorte, feito aquela canção, “o tempo não para”. Portanto, podemos continuar a ter esperança.

Antes de desconstruir o inimigo, é necessário construir o inimigo: não com fake news, senão à luz do sol expondo os misteriosos segredos que guardava por cem anos. “Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Se o inimigo não existe, é preciso inventá-lo”, escreve Umberto Eco. O neofascismo inventou a ameaça do comunismo, para entorpecer a inteligência do séquito de zumbis, que flerta com a barbárie. Nós, não temos que inventar nada. Basta-nos descrever a realidade legada pelo exterminador do futuro, que o presente empurrou para o passado, sem retorno. Vida longa para o presidente Lula. Hurra!

Luis Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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