As manifestações de 2013 tiveram início com a demanda contra o aumento das passagens dos ônibus, nas grandes capitais. Em São Paulo, o Movimento Passe Livre (MPL) se opôs ao reajuste de R$ 3,00 para R$ 3,20, que logo deu lugar ao slogan “Não é pelos vinte centavos”. O inominável da República, com o argumento neoliberal de que a economia tem leis próprias, responsabiliza a Petrobras sob controle do Executivo, e se faz de sonso para a colonialista paridade internacional de preços, criada pelo golpista Michel Temer e mantida pelo dissimulado sucessor, saído dos porões. A gente era feliz e não tinha consciência?

A cobertura da mídia corporativa fez um jogral com a oposição, ao apresentar as manifestações como uma reação ao governo Dilma Rousseff, que haveria investido de forma exorbitante e desproporcional nas monumentais construções esportivas da Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016), com vistas às plateias privilegiadas. Em contrapartida, teria alocado quantias modestas para distribuir ao pobretariado, além de ignorar temas considerados prioritários de infraestrutura para a educação, saúde e transporte de interesse das massas. A pecha colou, e a aprovação da presidenta que era alta (57%) desceu a ladeira (para 30%) do patriarcado.

A governante foi descrita como preocupada, mais com a imagem do país no exterior, do que com o povo. A pauta dos manipulados protestos parasitados pela “nova direita” se deslocou, das passagens, para a acusação de propinas com a suspeição de superfaturamento nas obras. O governo, atônito com a velocidade das denúncias, virou alvo de escândalos pré-fabricados no Jornal Nacional (JN). “A atenção da mídia proporcionou o palco para os manifestantes apresentarem as queixas a um público de âmbito mundial”, anotou o sociólogo da Universidade de Nova York, James Jasper, no prefácio à edição brasileira do livro Protest: A Cultural Introduction to Social Moviments (2014).

Questões morais empolgaram a irrupção “apartidária” que tomou as avenidas, com multidões iradas. Mobilizações gigantescas, com extração na classe média, galvanizaram os participantes para ataques frontais ao Partido dos Trabalhadores (PT). Espalhava-se o antipetismo. Na abertura da Copa do Mundo, a mandatária foi vaiada e xingada em coro por milhares de espectadores, em termos chulos, ao recepcionar delegações estrangeiras no estádio Maracanã. Uma cena misógina.

Era a tempestade no paraíso, que celebrava o pleno emprego. Os salários estavam valorizados. As aposentadorias, vinculadas aos reajustes anuais do mínimo sempre acima da inflação. Havia critérios para o acesso ao Bolsa Família, que garantiam a frequência de crianças e adolescentes nas escolas e exorcizavam o êxodo dos alunos. Os concorridos cursos técnicos e empreendedoristas bombavam. Diaristas, com carteira assinada, tinham filhos formados nas universidades. Gente humilde fazia cruzeiros no Atlântico. A quietude da sociedade se explicava pela melhoria das condições de vida, fruto das políticas públicas governamentais implementadas, no período.

Para James Jasper (op. cit.), os partícipes dos movimentos sociais são: “Pessoas que abrem mão do conforto material, da estabilidade financeira, do tempo com a família, de uma vida normal em favor de projetos morais e táticas arriscadas que parecem ter muito pouca chance de sucesso. Quem são essas pessoas, que com frequência proporcionam benefícios à nossa sociedade enquanto retêm relativamente pouco para si?” A interrogação traduz o espanto com o espírito cívico que sacudia a apatia social. Metodologicamente recendia a perspectiva liberal, centrada nos indivíduos, “para decodificar significados, sentimentos culturais e pontos de vista dos participantes nos protestos”, inclinando-se para a inevitável psicologização e sentimentalização das atividades dos militantes.

Na terra brasilis, a classe média desfilava uma opção subordinada de classe. A foto do casal com camisas verde-amarelas, que conduzia um cão da raça spitz pela coleira, acompanhado da babá uniformizada para empurrar o carrinho de bebê, per se, elucida a pergunta sobre a essência dos levantes de 2013, 2015 e 2016. O desconforto não era com o sistema, mas com uma colocação inferior às expectativas na hierarquia de mando. O Instituto DataFolha (SP) e o Instituto Index (RS) trouxeram estatísticas similares: 40% recebia mais de dez salários mínimos e 47% motivou-se para os eventos pela luta anticorrupção. Destampava-se o modus operandi de financiamento das campanhas políticas, para chocar quem desconhecia a recorrente lógica materialista do poder.

Nos EUA, o movimento Occupy Wall Street (OWS, 2011) dividia a humanidade com o rótulo “We Are The 99%”, que opôs o universo de prejudicados com a debacle de 2008, causada pelas políticas de desregulamentação, a 1% dos beneficiários sistêmicos. Diante da narrativa triunfalista dos apologistas do livre mercado e do Estado mínimo, o acampamento dos insuirretos trouxe a público a realidade da parcela de batalhadores que vive em situação de pobreza (menos de US$ 5,50 dólares por dia), o equivalente a quase 50% da população mundial (quase 4 bilhões de pessoas). Afora a indignação, a característica que delineou a manifestação foi a devoção à democracia participativa, com posições deliberadas junto aos eventuais circunstantes. Cidadãos de variada procedência socioeconômica, sem uma nítida identidade ideopolítica, apontavam as desigualdades vigentes.

O OWS, assim como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o seu equivalente urbano, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), são expressões simultâneas de subalternizados em pontos geográficos distantes. Já o neofascismo é o emblema de setores com extração na pequena burguesia e inspiração no hiperindividualismo pós-moderno. Para o historiador britânico E. P. Thompson, em A Formação da Classe Operária Inglesa (1987): “A classe é definida enquanto os indivíduos vivem sua própria história e, ao final, esta é a sua única definição”. A luta contra os grilhões é coletiva, o avatar (“descida do céu à terra”) da consciência de classe é individual.

O elã emocional dos protestos “mescla a raiva ao ultraje moral”, conclui J. Jasper, com uma platitude. Informação que não revela o sentido dos movimentos, por abstrair a cosmovisão socioideológica que ampara os objetivos. Que os homens e mulheres cantam quando se divertem ou mesmo quando vão à guerra, é um truísmo. E daí? Na Espanha (1936) ou no Brasil (2022), importa se marcham nas fileiras da barbárie ou da civilização, em nome da dominação ou da emancipação.

A democracia tradicional está fundada na ideia de representação. Não obstante, dezenas de milhares de sugestões recebidas no programa antineofascista e antineoliberal, da “Frente Juntos pelo Brasil”, sinalizam o desejo de uma democracia participativa para que a cidadania ativa possa intervir no direcionamento do Estado, como sujeito da política em vez de objeto das finanças. A vitória que se delineia, em outubro, agiliza o parto da consciência nos conflitos do porvir com as muitas contribuições que cimentam, socialmente, os esforços para viabilizar a soberania nacional-popular.

Como escreveu Karl Marx, na terceira das Teses sobre Feuerbach (1845), “o próprio educador precisa ser educado”. A receptividade às proposições oriundas de fora dão prova da humildade e da maturidade dos protagonistas partidários, na corrida contra o obscurantismo e o negacionismo, ao se permitirem oxigenar no movimento real. Os partidos progressistas não são depositários da verdade absoluta. Não habitam redomas imunes à práxis da sociedade civil. Há espaço para todas e todos no campo de batalha. As manifestações, agora, abrem um novo capítulo para o povo brasileiro.

A palavra de ordem é: “Organizar, Conscientizar e Combater”. O Brasil e a América Latina que queremos acena para a superação do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo) que, hoje, sustentam o capitalismo com suas perversas flexibilizações trabalhistas e brutais precarizações. O futuro está em jogo, em outubro. O capeta deixou claro, na sabatina em que os âncoras globais não questionaram o triunfalismo da política econômica em curso, realizada no Jornal Nacional (22/08), que não está disposto a sair do trono presidencial – “se as eleições não forem limpas” (sic).

Quem sabe não espera acontecer o segundo turno. E se prepara, desde agora, para garantir a posse do presidente Lula da Silva, e a prisão do terrorista oficial responsável pela barbárie social e política. A democracia e a participação cidadã estão batendo à porta da história: bem-vindas.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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