Democracia social

A democracia está ligada à ideia de liberdade. Significa que o governo do povo, para o povo, não pode ser substituído por nenhuma autoridade. A relação governantes / governados não interrompe o exercício da liberdade por parte do poder soberano. Neste sentido, as medidas impositivas sobre o Orçamento da União devem passar pelo crivo da população, com total transparência republicana.

Não à toa, o pré-candidato Lula da Silva propõe a substituição do escandaloso esquema das emendas parlamentares sigilosas, apadrinhadas pelo Palácio do Planalto, por mecanismos da democracia participativa. “Vamos ter que encontrar um jeito de fazer”, disse o ex-mandatário, que lidera as pesquisas de intenção de voto para o pleito de 2022. Em outras palavras, não basta apenas colocar os pobres no Orçamento, é preciso inserir os pobres na Política para sobrepujar o modelo excludente, que joga a cidadania num deliberado ostracismo entre as eleições. É hora de mirar em uma democracia social. Atender as exigências por direitos é estender a todos o estatuto humano.

Nunca a participação popular foi aventada com tanta veemência, em interação com instituições da República, às vésperas de uma campanha presidencial. Frente ao reiterado ataque neofascista contra os pilares da Carta Magna de 1988, as forças progressistas reagem com sabedoria ao demandar mais democracia, mais inclusão política e também social. As abissais desigualdades vigentes debilitam a prática da liberdade, dado que impingem o desemprego e a fome para setores e regiões vulneráveis. No pasarán, apesar de evocar um chavão, ressalta bem a resiliência militante do clamor lulista.

Algumas modalidades de experimentação democrática já foram implementadas em governos do PT, lê-se no documento Democracia Participativa: Nova Relação do Estado com a Sociedade (2003-2010), publicado pela Secretaria-Geral da Presidência da República. “Todas as grandes decisões estruturais ou conjunturais do Governo Lula foram objeto de interlocução com a sociedade civil”, observa Luiz Soares Dulci na apresentação do registro histórico, cujo interesse transcende as fronteiras brasileiras. Inúmeras políticas públicas brotaram de discussões travadas em Conselhos, Conferências, Ouvidorias, Mesas de Diálogos, Fóruns e Audiências. Devem se espalhar pelo tecido social para fazer da democracia um modo de vida compartilhado, mais que um projeto de gerência.

Trata-se de retomar e intensificar a participação cidadã em diferentes áreas (educação, saúde, meio ambiente, mobilidade urbana, etc) para que a gestão administrativa não se curve às pressões, em favor da tecnocratização das deliberações na órbita estatal. Daí não decorre uma abrupta supressão da representação, mas a metabolização de uma democracia, de fato, massiva. A democracia precisa se reinventar, para sobreviver aos desafios de nosso tempo. Sem cair no canto de sereia de que a era da digitalização soterrou de vez a presencialidade. O auxílio da internet não elimina compromissos.

A utopia das classes hegemônicas sempre foi colocar um ponto terminal na política, para apropriar-se da determinação sobre os rumos do país. A democracia nunca foi uma dádiva distribuída “de cima para baixo”, foi antes uma conquista “de baixo para cima” à custa de suor e sangue. Espártaco (109 a.C. – 71 a.C.), sob o Império Romano, foi o símbolo primacial da resistência à exploração e à opressão na história ocidental, ao liderar a grande Revolta dos Escravos. Insurgência que evoca o que Georges Burdeau chama de “liberdade-participação”, em La Démocratie (Seuil), para designar os laços que unem os termos do binômio na árdua luta pela emancipação. Participar é coletivizar.

Experiência do OP

Porto Alegre foi uma referência com repercussão internacional, graças à experiência exitosa do Orçamento Participativo (OP), que converteu a capital gaúcha na orgulhosa sede das primeiras edições do Fórum Social Mundial (FSM), na virada do milênio. A derrota do PT e aliados para a Prefeitura, depois de quatro mandatos consecutivos (Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont, Genro / Verle), entre 1988 e 2004, deu início ao desmonte do processo de cogestão. A estrela se apagava.

A receita, que servia de parâmetro ao OP, deixou de corresponder à totalidade da arrecadação. O intencional descaso com a prestação de contas das obras gerou ceticismo sobre o método. Governos retrógrados contribuíram para a extinção do experimento elogiado, inclusive, pelo Banco Mundial. Era a volta das políticas clientelistas da age-old policy, o amargo retorno à antiga tradição velhaca.

“Hoje, manter as assembleias regionais e as temáticas, ou o próprio Conselho do OP, sem ter acesso aos orçamentos reais, sem os critérios prévios de distribuição dos recursos para que cada região ou tema saiba o que priorizar e tenha a garantia que será realizado e acompanhado pelos Cadernos de Obras e Serviços – é mero simulacro de democracia participativa. Pior, com o mau exemplo federal, os municípios e estados estão instituindo a figura das emendas parlamentares, que transformam qualquer Orçamento numa colcha de retalhos sem planejamento, sem democracia, para puro clientelismo. Um verdadeiro desastre administrativo. Voltamos a ser uma cidade onde Executivo e Legislativo dispensam e até negam a participação popular”, lamenta indignado o ex-prefeito Pont (Brasil de Fato / Rio Grande do Sul, 25/03/2022). Da política partícipe às impolíticas do príncipe.

A liberdade política não é um fim em si mesmo, mas o meio capaz de garantir a autonomia dos governados, que se traduz na disposição de si, na livre escolha do que fazer e na responsabilidade pelos atos protagonizados. A autonomização é o fundamento da liberdade-participação. A democracia, como sistema de governo, se desenvolve a partir da independentização dos indivíduos em relação ao poder heterônomo de vontades exteriores (figuradamente, do pai, do padre e do patrão). Lutero e a Reforma Protestante, com a prensa de Gutenberg, assinalam o nascimento da liberdade individual – trampolim para a liberdade política, logo, à democracia na Idade Moderna.

O curioso é que, na atualidade, a liberdade individual tornou-se um valor ameaçado, com a pasteurização da visão do real pelos veículos de comunicação, sobretudo nos países com uma forte concentração da propriedade cruzada de mídias. O efeito manada demonstra que a liberdade individual virou um fetiche, manipulado por líderes autoritários com pendores totalitários (Hungria, Polônia, Índia, Brasil). As correntes políticas e religiosas, que mais enaltecem a independência pessoal, são as que mais desrespeitam os indivíduos. Idiotizando, uniformizando para a marcha da barbárie, esvaziando de pensamento os bolsominions à semelhança do burocrata que banaliza o mal, na descrição de Hannah Arendt. Ou do pastor satânico que orou para o ator Paulo Gustavo morrer.

No “capitalismo de vigilância”, com robôs e algoritmos para coordenar as tendências do mercado e as consciências, a liberdade individual num crescendo se desmancha no ar. De pilar da cultura no liberalismo clássico, transformou-se em um instrumento de combate aos paradigmas de construção da coletividade. Isso ficou evidente durante a pandemia no comportamento dos negacionistas que, em nome do “sagrado direito”, se recusavam cumprir as recomendações sanitárias da ciência. Mais: condenavam o Supremo Tribunal Federal (STF), por endossar o cumprimento das regulamentações.

Com os pés no barro

Fora do âmbito da liberdade-participação para estimular redes inclusivas de procedimentos, com o objetivo de fortalecer a democracia participativa e aperfeiçoar o exercício efetivo da democracia representativa, a liberdade individual é um rótulo para justificar o trabalho de solapa em ensaios com vistas a uma civilização antirracista, antissexista e anticapitalista. Neste contexto, configura uma prerrogativa estéril que serve somente para confirmar o isolacionismo, que exclui do rol da dignidade as maiorias, no intervalo entre as datas festivas dedicadas às manifestações de civismo. A democracia participativa pode preencher o vazio de direitos e ressignificar a rasa cotidianidade.

No terreno das carências materiais básicas, da falta de equipamentos urbanos, da reatualização da carga escravagista ainda viva na insensibilidade das elites autóctones, a democracia social mostra-se uma condição para a transição do “reino da necessidade” até o “reino da liberdade”, na célebre metáfora marxiana. Coisa que a democracia política, per se, não resolve com o repertório de conceitos e teorias acadêmicas sobre presidencialismo de coalizão, governabilidade, concertação, sociedade aberta. O conservadorismo se contenta com a democracia político-representativa.

Cabe aos “anjos tortos”, de Drummond, enfrentar os desafios da democracia social. Para tal enfrentamento, a participação popular é imprescindível. Só com os pés no barro, se alivia o sofrimento das periferias. Outrora, a Teologia da Libertação não se importava em sujar os sapatênis. A Teologia da Prosperidade suja-os. A burocratização afastou a militância dos locais de moradia.

Os Direitos do Homem e do Cidadão, desde a Declaração de 1789, são faculdades invioláveis inerentes aos indivíduos. Não estimulavam a participação, na origem. Conduziam a uma abstenção da ação, em razão da representação e da proteção jurídica. Para diversos cientistas políticos anglo-saxões, a democracia não necessita mais do que 30% de eleitores que compareçam às urnas. O paradoxo da democracia estaria em que “como forma de vida política e social, é o reino do excesso, que significa a ruína do governo democrático e, portanto, deve ser reprimido por ele”. Jacques Rancière, em O Ódio à Democracia (Boitempo) ironiza a falaciosa quadratura do círculo.

Não é a apatia dos cidadãos, senão o excesso de engajamento que acarreta riscos ao regime idealizado nas “elites do atraso”. Tolera-se vícios da democracia representativa, enquanto se coíbe virtudes da democracia participativa por seu potencial subversivo para o establishment. Incentiva-se a formatação de uma democracia delegativa, com representantes que isentem os contribuintes das diatribes públicas. O empuxe para a “privatização da existência” é o que o filósofo greco-francês Castoriadis (que esteve em assembleias do OP, em PoA) considera ser a essência da “alienação”.

Adam Przeworski, em Crises da Democracia (Zahar), a propósito, escreve: “O populismo participativo tem suas raízes em Rousseau, que acreditava que o povo deveria governar a si mesmo. O programa do populismo participativo consiste em reformas institucionais destinadas a dar mais potência à voz do povo. Contudo, por mais justa que seja a insatisfação com as instituições, o fato é que ser governado implica decisões que não apoiamos. Na realidade, ‘o povo’, como uma entidade no singular, não existe; o que existe são pessoas, no plural, com interesses, valores e padrões diferentes. Além disso, será mesmo verdade que as pessoas querem governar elas próprias?”. A citação é longa, mas ilustrativa da mentalidade liberal. “Interesses, valores e padrões” remetem às individualidades, não às classes sociais que se dissipam inteiramente no curso da argumentação.

Empoderar a cidadania

Para descobrir se a gente quer ou não participar, há que se forjar as ferramentas que propiciem uma intervenção direta em assuntos relevantes para alinhavar o desenvolvimento do corpo social. O Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos revela que, quando se institui acessos concretos à participação popular e critérios consensuados para a repartição dos recursos existentes, a população acorre aos milhares outorgando-se o papel de sujeito político das deliberações e, em consequência, da fiscalização para a execução do aprovado coletivamente. Olha aí o “centralismo democrático”.

Ademais, apontam os estudiosos, a democracia participativa corresponde a uma espécie de corretivo para os profundos desgastes que acometem as representatividades partidárias (“todas iguais, não me representam”). Crise agravada na Europa central com a guinada neoliberal de partidos, do amplo leque da mui aturdida social-democracia. Um fenômeno político que sugeriu o ocaso de diferenças ideológicas entre a esquerda e a direita. No vácuo, a extrema-direita vem pisando no acelerador.

A Revolução que inaugurou a modernidade enfatizava os direitos individuais. As Constituições, salvo exceções, acompanharam a evolução das ideias ao afirmar direitos sociais coletivos. O direito ao trabalho, o direito à remuneração digna, o direito ao lazer e o direito à seguridade social são hoje elementos de uma legislação positiva. Para seguidores do laissez-faire, tipo Hayek e Mises, prova de rendição do status quo aos apelos socialistas. Para socialistas, testemunho de que a organização e a mobilização despertam o “direito a ter direitos” nas classes subalternizadas. Um reconhecimento que ultrapassa as barreiras naturalizadas por governantes antipovo. Por contraste, se entrevê os retrocessos que nos vitimaram no impedimento de uma governança legítima, com o golpe de 2016.

Sem dúvida, será penosa a reconstrução do Brasil. A pulsão destrutiva liberada com a ascensão da dupla lesa-pátria, Michel Temer e Jair Bolsonaro, desorganizou a política, a sociedade e o Estado comprometendo o futuro da nação. Lula terá bastante trabalho no próximo quadriênio. Achará o Congresso com uma composição liderada pelo Centrão e, os progressistas, com uma bancada em desvantagem. A democracia participativa, com o empoderamento da cidadania atuante (sindicatos, associações, movimentos sociais, partidos da base governamental), é questão estratégica amanhã.

Vale a pena prosseguir, palmo a palmo, na direção de um horizonte emancipado de todas as versões de dominação. A democracia social visa a igualdade possível entre os indivíduos, que os esforços de libertação edificam com a solidariedade de muitos. Nas quantas batalhas do porvir, no cipoal das lembranças da longa caminhada, já se ouve a vibrante saudação imortalizada no conto, por Górki.

“Na vida cheia de animosidade surda e reprimida, nos corações empeçonhados por infinitas ofensas, na consciência obstruída pelas ofuscantes mentiras dos fortes, naquela vida difícil e triste, cheia de amargura, de humilhações, vinha pousar uma palavra simples e luminosa: – Camarada!”

 

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.