Martha Medeiros (Zero Hora, caderno Donna), no último final de semana, publicou uma bela crônica intitulada “Uma escolha fácil”. Sem dúvida, uma alusão ao famigerado O Estadão que, nas eleições de 2018, classificou de difícil decisão a opção entre “um professor com experiência em gestão pública” e “um homem que veio do submundo da política, com seu papinho retrô de moralização dos costumes e que usa Deus como cabo eleitoral para manipular a boa-fé de cidadãos mal informados – e os mantém mal informados através da indústria das fake news”.

Por coincidência, na semana que passou, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), formado por juristas renomados de vários quadrantes, reconheceu a parcialidade da Operação Lava Jato, liderada pelo então juiz (sic) Sérgio Moro e pelo então procurador (sic) Deltan Dallagnol, no julgamento de Lula da Silva. A condenação internacional se somou à sentença do Superior Tribunal Federal (STF), que anulou os processos pré-fabricados contra o ex-presidente.

O Brasil não teria sofrido o desmonte, iniciado no golpe judicial-parlamentar-midiático, que afastou das legítimas funções uma “presidenta” (ler Machado de Assis) honesta, sob o argumento pífio das “pedaladas fiscais”, se a imprensa e o aparato do Judiciário (incluso o TRF-4, em Porto Alegre) não tivesse se comportado, ora como avestruzes escondendo a cabeça, ora como abutres comendo a carniça de desafetos ideológicos. Sem noção do estrago institucional que produziam e das consequências para a saúde de nossa jovem democracia.

Com o que “agora somos o país dos milicianos no poder, dos ministérios conduzidos (em sua maioria) por medíocres, da turma desmiolada que despreza a ciência, dos irresponsáveis que foram contra máscara e vacina em plena pandemia”, aponta Medeiros. “De que adianta sermos bons cristãos, se hoje estamos alinhados aos tiranos do mundo?”, pergunta a cronista, que não tem o hábito de tecer considerações políticas.

Em geral, os cristãos sempre classificaram a liberdade como uma simples libertas a coactione (liberdade frente à coação), o que não contempla as diferentes dimensões da liberdade. A propósito, tampouco a liberdade de escolha, o liberum arbítrium (livre arbítrio), contempla. Esta, abre as portas para escolhas que podem recair sobre o bem ou sobre o mal. “Não o bem que quero, mas o mal que não quero faço”, diz São Paulo (Romanos, 7: 15). Tal acontece porque, corrompida pelo pecado original, a liberdade deixa de ser sinônimo de uma realização praticada, necessariamente, para o bem. Sem o auxílio de Deus, a ação se inclina para o mal. Eis o nó da questão teológica.

Aqui, cabe mencionar o comentário de Armindo Trevisan, em Cartas à Minha Neta (AGE), sobre a revolução copernicana de princípios que o Cristianismo trouxe à humanidade. “O pensamento grego subordinava o ser humano ao universo. Este, noutras palavras, era considerado mais importante do que o homem. O pensamento cristão subordinou o universo ao homem”. Assim, a liberdade tornou-se indissociável da responsabilidade, uma vez que deixou de limitar-se apenas à possibilidade de escolher posta pelo livre arbítrio. Passou a sobrecarregar o peso da escolha – daquilo que é certo.

José Ferrater Mora, no verbete “libertad”, do Diccionario de Filosofia (Alianza Editorial), sublinha: “A liberdade não é mera liberdade de indiferença, senão antes liberdade de diferenças ou com vistas às diferenças”. Justo o que faltou às instituições que avalizaram as barbaridades cometidas para alijar Lula do pleito no fatídico ano da ascensão, com a licença de Émile Zola, de La Bête Humaine.

Argumentar a escolha satânica recorrendo ao antipetismo, construído pelos meios de comunicação e, em especial, pela Rede Globo, é se esconder no universo para se eximir da responsabilidade pessoal pela desgraça que vitimou mais de 600 mil corpos na pandemia, destruiu as grandes empresas brasileiras de engenharia, rifou o Pré-Sal, levou o preço dos combustíveis às nuvens e jogou no desemprego e na miséria milhões de batalhadores e batalhadoras, mudando a cena urbana.

Chama a atenção nas pesquisas de intenção de voto para 2022 que, na falência da hipócrita “terceira via” que comunga da política econômica neoliberal em curso, as classes com renda mais alta na sociedade migrem, agora, para a candidatura neofascista. A insensibilidade das “elites” nacionais só se justifica à luz do passado, sempre presentificado, do escravagismo. O mesmo ódio que os proprietários de escravizados devotavam aos trabalhadores forçados, vê-se ainda no topo da pirâmide social em relação ao povo brasileiro. O abolicionista Joaquim Nabuco estava com a razão. Mesmo após o fim da escravidão, a relação de senhor-escravo permanece nas consciências elitistas.

As chamadas “elites do atraso” não possuem nenhuma visão de nação (soberana, altiva), nenhuma preocupação com a geração de empregos e com a distribuição de renda, a partir da ampliação do mercado interno, – seus olhos estão voltados para Miami. Fato que, por si só, fornece indicações sobre seu horizonte intelectual de colonizado. O Sul Global, para a burguesia nativa, é um entreposto comercial. Deve ser assim para todo o sempre. Acreditam em um destino inelutável.

Ledo engano. A luta por direitos dos que vivem de sua força de trabalho já demonstrou que a mudança é viável, quando uma governança de boa vontade, com empatia com o sofrimento do povo, arregaça as mangas para enfrentar os graves problemas que desafiam esse país continental. Para o atual (des)presidente e para os seguidores bolsominions, mudança significa retornar aos tempos da censura e da tortura que marcaram os idos da podre ditadura militar e, para completar a hostilidade à “Constituição cidadã”, cancelar o STF. Não estranha, a democracia não agrada os que são incapazes de aprender com e usufruir da sociabilidade que se nutre da diversidade e da pluralidade.

“Corrigir nosso erro histórico não nos conduzirá direto ao paraíso”, observou Martha, com o uso de um plural majestático. Com efeito, o falso mesias cumpriu a promessa feita, em reunião com as lideranças de extrema-direita nos Estados Unidos, em março de 2019: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”. Depois de tamanha destruição, os esforços de reconstrução serão obra não apenas do próximo presidente, mas do conjunto da população organizada em associações, sindicatos, movimentos sociais igualitários e partidos progressistas. Que, desta vez, o livre arbítrio acerte. Que a esperança vença o medo, forjado em gabinetes que falam o idioma imperialista para ouvidos servis, que se apressaram a traduzir com vergonhosa subserviência. Vade retro, satanás.

 

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.