A dimensão moral da luta de classes
Na emissora de rádio, a jornalista de economia expõe procedimentos para enfrentar a inflação de dois dígitos. Aconselha os ouvintes a se defenderem da alta de preços: a) anotando em uma caderneta o valor gasto com cada produto comprado para efeitos de comparação e; b) riscando do consumo as marcas que tiveram aumento exorbitante, para resguardar o teto do orçamento doméstico. O quadro apresentado se proclama de “utilidade pública”. O sistema econômico e moral em vigor, que organiza a conduta sociomidiática aceita dos indivíduos, transfere ao consumidor a responsabilidade no corte contínuo de despesas com a carestia. Para conter o empobrecimento, tome “educação financeira” (sic).
Sobre a pedagogia aplicada pelas regras do Consenso de Washington, a famosa bíblia do neoliberalismo, silêncio obsequioso. A dinâmica das finanças empurra o povo para o rio fundo da miséria, da fome e dos óbitos evitáveis do negacionismo. Depois, candidamente, pretexta que os afogados “foram avisados a manter a cabeça fora d’água”. O establishment oculta a imoralidade convertida em política, goza com a necropolítica – e lava as mãos sujas.
A perversidade da política econômica
Não à toa, Lula da Silva ao intervir no 9° Congresso da Força Sindical recriminou a “perversidade” da política econômica em curso. Não era figura de retórica. O diagnóstico do ex-presidente – feito com uma arguta “intuição programática” para evocar a expressão de Gramsci – une em um conceito de nítida conotação moral a degradação da sociabilidade graças à perda da qualidade de vida em amplos setores sociais. O convidado de honra do evento não pretendia dar lições sobre como aguentar calado a crescente pauperização, com a água batendo no nariz. Ao contrário, escancarou as razões e nomeou os responsáveis pelo rápido naufrágio da economia que afunda na ameaçadora recessão. Demonstrou uma sincera indignação, aplaudiu a mobilização democrática e pediu que os bravos sindicalistas se candidatem a uma vaga às Assembleias Legislativas e à Câmara de Deputados – para que a representação política no próximo quadriênio seja condizente com a diversidade do país.
O Brasil tem em torno de 14% da população economicamente ativa sem emprego formal, o que equivale a quase 15 milhões de pessoas. É o saldo da impolítica de Bolsonaro / Guedes. O fracasso explica a multidão de placas pedintes hasteadas nos semáforos. Mas o relato não acaba na impactante revelação estatística. Privados de proteção trabalhista, para sobreviver os desempregados mergulham na informalidade. Muitos tornam-se vendedores ambulantes de produtos industrializados, tipo carregadores de bateria e lanternas para as quedas de luz.
Entre os que batalham o suado ganha-pão com grilhões pré-modernos presos ao tornozelo, um contingente significativo engrossa as enormes fileiras dos motoristas de aplicativos e dos motociclistas para entregas a domicílio, em meio ao trânsito em fúria. Em ambos os casos, sem carteira assinada. A indústria, e isso não se restringe às bugigangas que chegam ilegalmente ao mercado, conta com a mão de obra de uma nova classe de escravizados.
Os batalhadores vitimados pela superexploração são desprovidos do “reconhecimento social” que, desde a Reforma Protestante no século XVI, advém em especial da valorização proporcionada pelo trabalho. Modernamente o reconhecimento decorre da formalização do labor pelo enquadramento legal, com salário acordado para a garantia do “princípio da dignidade”. Na falta dos requisitos elencados, injeta-se a insegurança nos subalternizados num jogo de perversão. Dado o contexto, o mal-estar moldado na realidade pela hegemonia anticivilizacional exprime-se nos índices de solidão. Acrescente-se que a ajuda oficial para as famílias empobrecidas é irrisória. “A cesta básica mais barata nas capitais custa o dobro da parcela média do Auxílio Brasil”, segundo o levantamento feito pela revista Piauí.
O capitalismo convive com engrenagens econômicas imorais travestidas como amorais porque, conforme o discurso ideológico legitimador, estariam vinculadas a relações laborais e processos econômicos entendidos na condição de elementos com uma objetividade infensa à vontade geral. Por detrás do falso objetivismo atribuído às misteriosas forças vivas que movimentam a economia, com uma pseudo independência da esfera político-social, subjaz a cínica dissimulação que cobre a indignidade das lides informais na sociedade. Naturaliza-se o status quo com o mantra da meritocracia para apagar o rastilho de rebeldia com a situação.
Participação ativa e engajamento ético
Marx desvendou os mecanismos que impulsionam o acúmulo da riqueza no capitalismo. Trouxe à tona a extração da mais-valia do proletariado após a Primeira Revolução Industrial, com a substituição da manufatura pela maquinofatura, a inserção nas fábricas têxteis das máquinas de fiar, o tear mecânico, a máquina de vapor, e as locomotivas. Em paralelo, lançou uma condenação moral ao sistema com pilar na dialética do capital e do trabalho. A burguesia, explicou, se apropria do fruto laboral coletivo em proveito próprio. “A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos chefes de verdadeiros exércitos industriais”, lê-se no Manifesto de 1848.
Alegoricamente a riqueza era o baú do tesouro que se encontrava nas solenes promessas da industrialização e da urbanização, a modernização contra o arcaísmo na produção e nos costumes. Hoje, porém, fortunas se erguem pela especulação, juros, dividendos, formação de oligopólios e monopólios. Sob o capital financeiro, o cassino especulativo “rendeu de 7% a 9% nas últimas décadas”, enquanto “o PIB mundial cresceu por volta de 2% a 2,5% ao ano”. Um contra-senso que não beneficia a coletividade. “E a ética tem muito a ver com os desafios”, resume Ladislau Dowbor no artigo O Sucesso que Gera Desgraça (Carta Maior).
Baseado em estudos econômicos e históricos, o velho Mouro apontou a constituição de uma “humanidade social” (Tese X sobre Feuerbach), a partir de uma participação ativa e de um engajamento ético para resolver um “problema prático” (Tese II). “A coincidência da modificação de circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora” (Tese III). As onze teses sobre o materialismo feuerbachiano possuem um enredo ético-político orientado por uma ética da ação, ao invés da ética da contemplação passiva. A “ética socialista” que se depreende do legado marxiano opõe-se à resignação e à apatia impingidas pelo aparato da alienação sob o fetichismo da mercadoria: em uma democracia civil ou em uma ditadura militar. A propósito, ver a cinebiografia de Marighella dirigida com sensibilidade por Wagner Moura.
A ética da ação é a chave para que as classes trabalhadoras alcancem a auto-emancipação, com uma aliança “entre a humanidade sofredora que pensa e a humanidade pensante que é oprimida” (Carta de Marx a A. Ruge), o que não se confunde com uma futura indesejável divisão do trabalho. Apenas quer dizer que o socialismo não é um dogma religioso ou uma verdade axiomática, senão uma possibilidade alternativa à barbárie. E que não será resultado de uma conspiração ou de um cesarismo. Sendo, antes, o movimento emancipatório sempre pautado pelo “interesse geral dos trabalhadores”. Fundamento teórico, en passant, para a convergência da esquerda e da centro-esquerda numa Federação Partidária. Passo inicial para a consolidação de uma Frente Popular, para além do sectarismo e da bazófia de partido.
Juntar esforços é construir um ímã de atração para o conjunto de segmentos na sociedade que têm contradições com o paradigma capitalista. Não se muda o que está aí somente com acusações por verdadeiras que sejam, mas organizando o multifacetado universo do trabalho em torno de um programa democrático de transição que imprima os valores de outra ordem social. “Não Basta Dizer Não” (Bertrand Brasil), sublinha Naomi Klein. É necessário experimentar os valores que presentificam o futuro para virar a página do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo), que são os guardiões por excelência do capitalismo.
Os temas morais motivam as revoltas
No quadro de perversidade que ronda a humanidade e o planeta, se desenvolvem as lutas políticas, econômicas, ecológicas, ideológicas e culturais pela igualdade de direitos em trincheiras que vão da equanimidade de gênero à racial e, ainda, à livre opção sexual. Aqui, o importante é destacar alto e bom som a dimensão moral incrustada na luta de classes, com um olhar atento. Vários autores, a exemplo de E. P. Thompson, já alertaram para o fato de que a motivação para revoltas costuma estar associada ao sentimento de que noções morais (a dignidade, o respeito, a honra, o reconhecimento) foram violadas pelos poderosos.
“As investigações de Florestan Fernandes e as minhas próprias relativas aos negros marginalizados e à ‘ralé brasileira’ mostraram que o sentimento cotidiano de ausência de dignidade e a sensação de não ser tratado como ‘gente’ têm papel central na compreensão da experiência subjetiva da humilhação social entre os marginalizados e excluídos”, afirma Jessé Souza, em Como o Racismo Criou o Brasil (Estação Brasil). “Não existe nada neste mundo social a que se possa referir como econômico de modo puro. Só podemos nos referir a algo como econômico como uma instância autônoma quando esquecemos o conjunto de avaliações morais que estão por trás desse rótulo em primeiro lugar”, arremata o sociólogo.
As classes dominantes fazem da moral no campo político um apêndice da corrupção sistêmica, de acordo com a estratégia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e da Foreign Corrupt Practices Act / FCPA (Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior), para enfraquecer as empresas estrangeiras que concorrem com as empresas estadunidenses. A gigante francesa da área energética, Alstom, também não resistiu ao ataque quando virou alvo dos interesses da General Electric / GE (EUA), que a comprou ao término de uma dura campanha de desqualificação pública. Nas disputas geopolíticas e econômicas, a temática moral negativa é explicitada para criar consensos de ocasião. A Lava Jato que o diga. Já para salvaguardar das críticas a ganância do grande capital, a discussão sobre os ingredientes morais envolvidos na concentração da riqueza e do poder é jogada para baixo do tapete.
Os governos progressistas (2003-2016) formataram instrumentos para barrar as imoralidades embutidas nos crimes de corrupção, como a Controladoria-Geral da União, aumentando a transparência e dando acesso público às informações. Tendência antípoda ao que se desenrola na atualidade no Congresso Nacional e no Executivo Federal, com o surrealista “orçamento secreto” que institucionaliza o assalto ao Erário em bilhões de reais, por intermédio das “emendas de relator”. Sem controle de nenhuma espécie. Na obscuridade absoluta, o famigerado “Centrão” fisiológico age qual dono da nação subtraída distribuindo recursos vultosos. Não se sabe para quem ou para quê. Nossa vergonhosa imagem de pária internacional é mera consequência. Os que denunciam a bilionária sacanagem são os mesmos que postulam justiça social e aportes materiais para amenizar a dor da maioria.
A metamorfose do trabalho com as inovações tecnológicas e as dificuldades que atingem o precariado e, agora, a classe média devem passar pelo crivo moral para que a ousadia (sem medo de ser feliz) consiga interpelar a cidadania. Interpelação em uma linguagem acessível, coloquial, com capacidade para elucidar e decodificar o papel do rentismo, dos investidores e dos acionistas de empresas como a Petrobrás, na disparada da gasolina, do diesel e do gás. Tarefa prioritária e indispensável. Idem, no concernente aos títulos da dívida pública do Estado adquiridos pelos bancos. Há que avançar nessa agenda-tabu. Repolitizar a política. Elevar o nível de conhecimento da população, com uma autêntica “educação financeira”. Mobilizando-a na luta contra o neoliberalismo e o antifascismo. Libertas quae sera tamen.
Do jargão tecnicista ao apelo moral
O desemprego, a informalização, a precarização, as terceirizações, o achatamento da renda e a incúria estatal agravada no caótico desgoverno desmodernizador da extrema-direita potencializam a fragmentação da identidade dos trabalhadores. Estes, mal repõem energias para enfrentar o dia seguinte. Na periferia das metrópoles, o abatimento do corpo e do espírito é fagocitado pelo neopentecostalismo, a esperança oferecida aos desesperançados. A chaga econômico-social que se alastra sem parar é uma dolorosa ferida moral. Aquele cara reconheceu-a ao chamá-la pelo nome proibido, que não é austeridade, mas perversidade.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul no Governo Olívio Dutra.
Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.