O principal desafio da democracia brasileira é tornar-se democracia em plenitude. Embora essa seja uma questão anterior ao próprio bolsonarismo, é evidente que o atual governo precisa ser removido, como condição essencial para o país retomar o processo democrático. E este se fará tão somente com a inserção do povo negro e sua agenda no núcleo central das decisões políticas, econômicas, sociais e culturais do país. Não mais como uma questão paralela ou residual.

“Não há nada de paralelo aqui. A história do povo negro é a própria história do povo brasileiro”, resumiu a pedagoga e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Nilma Lino Gomes, uma das participantes da nona mesa dos Seminários Cultura e Democracia, realizada na manhã do dia 19 de novembro, com o título Cultura, Democracia e Igualdade Racial.

Um dos pontos de convergência entre os debatedores e debatedoras é que as comunidades negras das periferias urbanas, rurais e quilombolas já produzem experiências de vida coletiva que são referências para construir democracia ampla. O que é preciso é a permanente valorização dessas ações e a sua inclusão nos mecanismos institucionais que regem o país, de duas formas complementares: a adoção de tais experiências como matrizes da política em suas diferentes expressões e o atendimento às reivindicações que elas vocalizam.

A garantia da cultura como direito humano e constitucional, como lembrou a cantora e compositora Preta Ferreira, ativista do movimento de moradia e moderadora do debate, é um dos caminhos. “O Estado é formado de cultura, não formador de cultura”, afirmou Preta. “A gente vive num país onde existe a cultura da exclusão, a cultura da separação de classes, que diz quem pode ou quem não pode ter acesso à cultura. É a elitização de um direito constitucional. Há oligarquias culturais. Excluem as pessoas pobres, pretas e indígenas. E se apropriam também da cultura delas. Sempre que o Brasil está em perigo, como agora, destrói-se a cultura. Porque a cultura liberta, traz ao nosso povo a conscientização”, completou. “E nós, na escassez e na inexistência, proporcionamos isso à sociedade”.

O jornalista e sociólogo Muniz Sodré, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), propôs uma reflexão sobre a palavra igualdade, constante do título da mesa de debates. “O exercício da igualdade é sempre da ordem das consequências. E nunca da ordem do que busca um fim. Causalidade e consequência, e não finalidade. O que se trata de buscar e o que se trata de se conquistar são as consequências. Ou seja, a igualdade, enquanto regime coletivo de existência, depende de uma política de emancipação para se tornar real”, disse ele, tomando como referência o filósofo francês Alain Badiou.

“A democracia não se deduz automaticamente da república. Na falta de uma política emancipatória, o jogo acaba deixando a descoberto que uns sujeitos são mais livres do que outros. Ou seja, não existe democracia moderna se existem cidadãos de segunda classe. E na guerra que o Estado muitas vezes trava contra a própria cidadania, ele tira a máscara de protetor das liberdades democráticas e se exibe apenas como o dono de uma declaração republicana de igualdade”, completou Muniz Sodré.

Tal declaração, no campo das intenções apenas, dá suporte a uma exclusão do negro, “como se ele fosse uma falha na uniformidade étnica originária. Foi isso que nos Estados Unidos cimentou a hegemonia, a coesão cívica interna, de colonos brancos. O negro como um inimigo eterno da uniformidade paranoica”, destacou o professor. “Uma democracia, baseada na mera declaração de igualdade palavrória, é perversa. Nesse modelo republicano de exportação, o racismo é central”. Para ele, a igualdade de fato se dá no embate em termos políticos e culturais. No Brasil, embate contra a combinação de autoritarismo com cultura escravista. “E o campo de luta hoje no Brasil é o campo cultural. É preciso saber se o pensamento progressista vai descer do salto alto histórico que tem, com capacidade de escuta das vozes do ressentimento, que ecoam no fosso da divisão entre elites intelectuais e as massas semialfabetizadas”.

Tamires Sampaio, advogada e escritora, lembrou que a estrutura racista presente nas relações sociais, promulgada por intermédio da cultura, produz uma naturalização da violência, notadamente aquela contra os negros, as mulheres e os indígenas. Após o período oficial do escravismo, essa violência se manifestou, entre outras formas, na criminalização das religiões africanas, na capoeira, no samba e agora no rap e do hip hop.

“São expressões periféricas, são expressões negras, que possuem um potencial muito grande de despertar consciência. E isso é perigoso. As letras do rap, as letras do funk, do samba, carregam em si uma força ancestral de transformação social. Eu lembro que a ideologia faz a própria população periférica, explorada, naturalizar a violência contra si”. Parte significativa desse processo de naturalização se funda nos mecanismos de repressão judicial. Como exemplo, Tamires citou o contraste entre o espanto causado pelas mortes pela Covid-19 e o genocídio negro que ocorre diariamente. Enquanto a mídia exibiu durante a pandemia a contagem de mortos, nos demais momentos ignora fatos como o assassinato de uma pessoa negra a cada 26 minutos no Brasil, ou de uma mulher a cada duas horas.

Arquiteto e dirigente da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo iniciou sua fala prestando homenagem ao poeta Oliveira Silveira, que há exatos 50 anos, numa atividade realizada no clube Marcílio Dias, em Porto Alegre, lançou o desafio de instituir o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. “Foi ele quem deu o pontapé inicial para que a gente deixasse de celebrar a princesa Isabel como redentora. Viva Zumbi dos Palmares”, exclamou Zulu.

Em seguida, o arquiteto e militante destacou avanços ocorridos recentemente, nos governos do ex-presidente Lula. Zulu afirmou acreditar que é importante ressaltar essas conquistas, até como forma de continuar lutando. A necessidade se impõe pela permanente atuação de “racistas de plantão” em diversos postos-chave, como na mídia, a suscitar polêmicas com o intuito de desqualificar a luta negra. “Temos de incorporar de maneira visceral essa luta na política”, disse.

Para o especialista em ciências da informação Dennis de Oliveira, professor da USP, o modelo de democracia em vigor tem como base o racismo, “o arquétipo do cidadão de bem como o homem branco”. Esse mito fundador vai permear as ideias republicanas. “Ideias como aquela de que o brasileiro não sabe votar, que os negros não podem exercer seus próprios governos por não compartilharem o mesmo repertório cultural tido como padrão”. E assim, “em 33 anos de vigência de nossa democracia, há uma chacina do Jacarezinho, por exemplo, que seria inaceitável em qualquer democracia, mas no Brasil é naturalizada”, disse. O racismo, crê Dennis, é a base da chamada democracia intermitente, marcada pela ruptura institucional reiterada.

São três os pilares desse racismo, que afeta todos os brasileiros. A concentração de renda e patrimônio, é um deles, marcada, por exemplo, pela celeridade da Justiça em conceder mandados de reintegração de posse em contraposição à lentidão ou negação na hora de desapropriar terras improdutivas. A tributação do consumo, que iguala uma trabalhadora doméstica a um dono de banco na hora de pagar impostos, outro. Completa-se o trio com a concepção restrita de cidadania, que se expressa de várias maneiras, como quando jornalistas da grande mídia, ao abordarem temas como bolsa família ou auxílio emergencial, darem maior importância a possíveis efeitos fiscais do que à vida das pessoas. Outras facetas dessa concepção restrita de cidadania se encontram nas prisões ilegais, nas invasões domiciliares sem mandado judicial e nos toques de recolher, comuns nas periferias.

Como pano de fundo de todo esse processo, ao mesmo tempo causa e efeito, a “neurose cultural”, que faz com que muitos se sintam incomodados de pertencer a esse país com influência cultural negra, ou restringir isso a caixinhas, apropriando-se dessas influências, sem reconhecer a autoria e sem permitir a participação política de seus agentes. Para o professor, a saída para uma política emancipatória do Brasil, de soberania, passa por aquilo que a pensadora Lélia Gonzales chamou de “amefricanidade”.

Nilma Gomes, ex-ministra das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, abriu sua intervenção destacando ações do movimento negro que estão acontecendo agora, em pleno autoritarismo bolsonarista. Para ela, além de uma intensa mobilização, há uma ampliação e consolidação das alianças entre as diferentes organizações do movimento, resultando em maior peso e influência. “Digo isso porque as pessoas costumam me perguntar ‘o que o movimento negro está fazendo?’. Ele continua forte e passa por mudança, há uma expansão das articulações e maior incidência das pessoas não-negras. Isso dá um outro tom à cultura”, afirmou. “Temos sempre de nos lançar à ação, como aliás sempre fizemos. Se assim não fosse, nós não estaríamos aqui nesse seminário. Nosso desafio é deixarmos de ser exceção à regra”.

Nilma, por fim, disse compartilhar da avaliação de que a democracia brasileira jamais se consolidou na plenitude. “Mas não devemos desacreditar a democracia, e sim lutar por outra. Eu costumo dizer que qualquer democracia é melhor que o fascismo. E a democracia que queremos terá a cultura negra não apenas como adjetivação, mas como força vital. Uma democracia radical: anticapitalista, antirracista, antipatriarcal. Utopia como sonho possível”.

Os Seminários

Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir os debates desta sexta-feira, clique aqui.

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