A privatização do patrimônio público não é apenas vender a preço reduzido riquezas naturais e empresas estratégicas para investidores particulares nacionais ou estrangeiros, transformando o que era de controle nacional em mercadorias com preços mais caros para o público interno. Embora, por si só, essa operação seja permeada, para dizer o mínimo, de insensatez, seus efeitos nocivos não param por aí. Afeta, no plano simbólico, mas também no plano prático, a educação e cultura de um povo, moldando esses dois vetores em um formato de submissão e conformismo.

A ideia de que o serviço público não funciona bem, justificativa empregada repetidamente para convencer o público da necessidade de privatização, estende-se paulatinamente para o processo educacional e para a produção cultural. E o uso político da religião, nos termos conservadores observados no avanço das igrejas neopentecostais, acaba por homologar, com aparência transcendente, todo esse processo de acomodação.

A rebeldia e o espírito crítico, moribundos, transformam-se em observação passiva. A ação concreta para mudar a realidade para melhor, impulsionada pela consciência crítica, dá lugar ao impulso consumidor, quando possível de ser atendido, ou à frustração paralisante, quando inalcançável. O espaço público vai sendo eliminado, e com ele a ideia de ação coletiva como a matriz da realidade. A lógica do indivíduo só, a quem caberia toda a responsabilidade sobre o sucesso ou o fracasso, ícones ideológicos do neoliberalismo, penetra em todas as esferas da vida.

A saída do labirinto é resistir a essas formas de cultura, e dois caminhos indispensáveis para tanto são a retomada e o fortalecimento da educação pública inclusiva e crítica e a valorização da cultura popular, na opinião dos convidados e convidadas da sexta rodada de debates dos Seminários Cultura e Democracia, ocorrida na manhã de 16 de novembro, terça-feira, na mesa intitulada “Cultura, Educação, Religião e Política – Desafios da Periferia”. Os seminários são uma iniciativa do Instituto Cultura e Democracia e das fundações Perseu Abramo e Friedrich Ebert.

A partir desses diagnósticos, os desafios são vários. No caso da educação, privatizar quase nunca é sinônimo de venda de um prédio ou de um equipamento público, mas de esvaziamento de seu papel, de negação de seu modelo transformador. A mais fascista das reformas educacionais, conforme destacou a professora Deise Rosalio, doutora em Educação e docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), teve como condão aprofundar o fosso existente entre o que seria uma escola de ricos e uma escola de pobres. Ela se referia às chamadas reformas Gentile, da Itália dos anos 1920-30.

O ponto de partida dessas mudanças conservadoras é adotar um conteúdo pedagógico que contempla uma gama de conhecimentos prévios restritos a um só grupo social – o chamado capital cultural. Aí já se faz a exclusão. No cenário neoliberal, esse conteúdo, onde instalado como modelo, volta-se prioritariamente à preparação de mão-de-obra para o mercado, renegando conhecimentos ligados à reflexão.

“É uma formação voltada para o empreendedorismo e para a formação de resiliência às mazelas do capitalismo. Isso vai moldando a vida prática. É uma formação para moldar o comportamento, não para o conhecimento”, criticou a professora. Para ela, entidades que compõem o movimento Todos Pela Educação, como o Itaú Social e a Fundação Lemann, representam uma reforma educacional nos moldes fascistas, entendidos como aprofundamento do fosso social e da sujeição a padrões supostamente imutáveis.

“Muito se fala que a educação não funciona nesse país. A questão é como funciona e para quem funciona”, argumentou a professora. Os problemas são muito mais políticos que didáticos. Escolas lotadas, más condições de trabalho, refletindo as desigualdades sociais. O baixo financiamento da educação é um problema. Nem escolas privadas pequenas, aquelas de bairro, conseguem funcionar com tão pouco dinheiro”, disse ela, apontando, entre os resultados, as más condições de trabalho dos educadores. “Se os seus educadores são subjugados, como formar pessoas críticas, sujeitos críticos”, questionou.

Parte da máquina ideológica do capitalismo, turbinada pelo estágio contemporâneo do ultra neoliberalismo, todo esse processo educacional e cultural vai formando aquele que o cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini chamou de “homem médio”, alertou Gesualdo Maffia, professor de Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Cultural Ítalo-brasileiro.

“Esse homem novo, para Pasolini, é um ignorante porque não entende as reflexões profundas, a poesia; é um criminoso perigoso porque conformista, fica em sua tranquilidade esperando que o Estado organize sozinho a vida”, disse Maffia, recordando a fala final do personagem interpretado por Orson Welles no filme “La Ricota”, dirigido e escrito por Pasolini em 1963.

O professor Maffia vai além e diz que esse homem médio, ligado profundamente ao consumo e à espera que outros cuidem dos processos sociais, representa “um hedonismo que é uma nova forma de fascismo, que vai se espalhando muito rapidamente. Pode ser até um sujeito simpático, mas que não consegue entender e aceitar a diversidade. Tem uma falsa tolerância, a que recorre quando isso é conveniente”, disse. “É esse tipo de cultura que temos de enfrentar todos os dias”.

O hedonismo fascista, ao não compreender e aceitar a diversidade, é esteio para o racismo e todas as formas de preconceito, e as injustiças sociais dele recorrentes. E, com racismo e preconceito, simplesmente não existe democracia, cravou a socióloga e professora Vilma Reis, representante da Coletiva Mahin Organização de Mulheres Negras. “A luta pela democracia está diretamente ligada ao combate ao racismo”, disse. Nas periferias brasileiras, latino-americanas e de todo mundo, afirmou Vilma, levantam-se vozes contra essa opressão.

“A cada sarau autogestionado de nossas juventudes periféricas, na fala de Lula no parlamento europeu, na coragem para derrubar borbas gatos, em cada uma dessas atitudes de desobediência ao poder patriarcal e contra a manutenção dos privilégios de uma branquitude, as periferias se levantam, para dizer ao poder público que se ausenta, ‘nós estamos aqui nos anunciando como abolicionistas’” disse. “A questão racial não é uma tarefa apenas de negros e negras. É importante neste momento estarmos convidando as pessoas brancas a se envolverem nesse trabalho. Não dá mais para virar a cara”.

Na abertura dos debates, a moderadora Jaqueline Lima Santos, doutora em Antropologia Social, já havia destacado o forte movimento cultural que existe nas periferias do Brasil, que une entretenimento e sociabilidade a formas de resistência política. Ao mesmo tempo, também como formas de sociabilidade, avançam nos territórios as igrejas evangélicas neopentecostais e seu ideário conservador, disse.

“A gente tem um grande campo de disputa do imaginário social, que tem a ver com perspectiva de formação. Há encontros e desencontros de conflitos. Eu falo a partir da perspectiva do diálogo com coletivos da periferia do todo o país, eu estou falando de cultura e religião” afirmou Jaqueline, que faz parte do projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo.

“Nós chegamos ao longo dos anos 1980 e 90 com forte presença de coletivos e núcleos de base nas periferias, formando importantes lideranças. Nos anos 2000 começam a surgir os coletivos de cultura, em torno e expressões culturais de grupos historicamente discriminados, para trazer elementos de entretenimento e encontro, mas muito mais que isso: fazer parte de uma comunidade. A cultura é elemento de arregimentação política das periferias. Aquelas rodas de encontro têm muita coisa, vão coletando elementos da sua história, formas de vida, e se transformam em elemento de articulação política. As igrejas também constroem espaços de sociabilidade, mas trazendo cada vez mais um viés conservador para as periferias. Quando os conflitos têm a ver com o reconhecimento da humanidade das pessoas, aí surge a disputa. Esse tema é fundamental para a gente entender o futuro do diálogo para formação de nossa sociedade”, disse Jaqueline.

Na produção cultural periférica residem novas perspectivas. Antonio Gramsci pensava assim, destacou Ana Lole, doutora em Serviço Social e professora da PUC-Rio. “Para Gramsci a cultura era elemento essencial para a organização das classes subalternas, como elemento de emancipação política, o elo de ligação entre as pessoas que se encontram nas mesmas condições e buscam construir uma nova hegemonia”, disse. “Uma nova cultura, capaz de questionar os valores e as práticas impostas, principalmente as impostas pela ‘alta cultura’”.

Essa nova cultura pressupõe entender a si mesmo como quem formula seu próprio mundo, e não mais aceitar passivamente os ditames dos senhores. O professor Gesualdo já havia frisado que a cultura, na concepção de Gramsci, serve para encorajar quem a recebe e produz. Ana Lole disse ainda que a cultura deve ser traduzida em prática concreta. “A ação precisa da reflexão, da teoria. E a teoria precisa da ação. A gente não pode estar descolado da realidade”, completou. “Essa ideia se aproxima muito do conceito de conscientização de Paulo Freire”.

Também integrante da cultura, a religião pode rumar em outra direção. No caso de parte do movimento neopentecostal brasileiro, lembrou Giovanni Semeraro, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Política e Educação (NuFIPE), da Universidade Federal Fluminense, na direção da dominação conservadora. “É um lugar de obediência ao pastor, de submissão da mulher, de tratar como pervertidos os diferentes, de exorcizar demônios, na relação com outros cultos”, disse.

“Isso pouco ou nada tem a ver com o Evangelho ou com Jesus Cristo. Um moralismo vazio e rituais mágicos. Não vê Deus como o pai integrado na vida de todos, não acima de todos. A mensagem de Jesus de Nazaré é uma visão ameaçadora para esse fundamentalismo, baseado na ideologia do povo escolhido e apartado”, completou Giovanni, para quem “exorcizar os demônios é funcional à ideologia do capital”. “Na nova colonização que está em curso, essas igrejas garantem o controle social através do pastoreio dos rebanhos”.

O professor destacou que é importante ter em mente que essas mesmas igrejas prestam apoio e solidariedade a quem antes estava só, uma forma de empoderamento, e que importantes mudanças na história, nascidas nas periferias, tiveram nas religiões um papel importante. É preciso que a esquerda dialogue com essas igrejas, mas sem falso ecumenismo, sem vender paliativos nem falsos milagres, mas organizando a luta política. E citou Karl Marx: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real”.

Os Seminários
Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir o debate desta terça-feira, clique aqui.

 

`