A ciência tornou-se um personagem em grande evidência nos dois últimos anos, desde o início da pandemia. Mais precisamente, a ideia sobre o que seria a ciência e a importância dela na vida das pessoas passou a frequentar as conversas. De um lado, os chamados negacionistas e, de outro, os defensores da ciência como a última palavra quando se deve fazer escolhas entre vida e morte. Mas, afinal, o que é a ciência e como as pessoas devem ou podem se relacionar com ela? Seria algo restrito a um pequeno conjunto de sábios elevados ou um patrimônio de todos?

Os participantes da quarta mesa dos Seminários Cultura e Democracia, realizada na quinta-feira, 11 de novembro, trouxeram essas e outras inquietações para o debate, intitulado Cultura, Ciência e Democracia.

Um exemplo da relação entre esses três valores – ciência, cultura e democracia – vem do conjunto de favelas da Maré, Rio de Janeiro. Lá, circula o jornal impresso Maré de Notícias, parte de um projeto de comunicação que inclui noticiário via internet e podcasts. “Falando da Maré e para a Maré”, nas palavras da editora-executiva Daniele Moura, um dos objetivos do projeto, que tem a parceria da Fiocruz na produção de conteúdo, é aliar o conhecimento científico à comunicação para produzir um impacto real na vida das pessoas. “Queremos ajudar a ciência e a comunicação a dialogar com o cotidiano. As favelas produzem diariamente cultura e, por que não, ciência. Nosso jornal quer ser instrumento para a conquista de direitos básicos”, explicou Daniela, que foi moderadora da mesa. Durante a pandemia, por exemplo, o jornal não só trouxe informações sobre medidas de proteção e prevenção, mas reportou iniciativas criadas pela própria Maré para enfrentar o problema.

Esse rompimento da fronteira entre a ciência como “coisa do Olimpo” e a passagem para entendê-la como algo que é feito do trabalho e da experiência coletivos continua sendo um desafio, apontou o físico Yurij Castelfranchi, mestre em comunicação da ciência, sociólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“Há uma relação profunda entre ciência e cultura. A ciência não apenas influencia a cultura, mas é parte dela. E a ciência tem relação profunda com democracia. Sabemos que houve cientistas que trabalharam para o no nazismo, por exemplo. Mas a ciência floresce muito mais na democracia”. Porém, diz Yurij, o senso comum continua a tratar a ciência como algo separado do universo dos simples mortais.

“E a verdade é que a religião, a filosofia, as artes, são como a ciência. São coisas que criamos para buscar um sentido, a busca por um futuro possível e melhor. E partem do mesmo solo: produto da ação coletiva. Isso é muito importante. A ciência é feita de baixo pra cima, do interior para fora”, afirmou. “Os artistas sabem disso, eles nunca separaram a ciência da cultura”, completou o professor. Para ilustrar essa afirmativa, ele exibiu imagens, como a “Guernica” de Pablo Picasso e “Crucificação, Corpo Hibercúbico”, de Salvador Dalí, que simbolizam a simbiose ciência-cultura.

Na vida prática e na luta política, a importância da ciência pode ser observada no desenrolar do episódio de rompimento da barragem de Brumadinho. Cientistas de diferentes especialidades, que se colocaram no auxílio às vítimas, compartilharam o saber para ajudar a determinar as causas do acidente e até a calcular o valor das indenizações, sem que a palavra da empresa Vale e de seus representantes fosse tomada como verdade superior e intocável.

Por isso o combate à ciência é tão próprio aos regimes autoritários, lembrou o físico. “Os ataques são planejados, não devemos tratar como movimento irracional. A ignorância não é a causa dos ataques, mas o produto pretendido. Isso torna cada vez mais importante a apropriação dos conhecimentos científicos pela maioria das pessoas”.

Tal apropriação não se dará, como pressupõem setores da mídia, ao “levar uma fagulha lá de cima” para as pessoas. “A ciência está aqui embaixo. Se faz com conexões entre o homem e a natureza. Não é levar a ciência para as pessoas, simplesmente. É permitir que elas mexam com a ciência, que façam gambiarras com a ciência”, comentou o palestrante. Novamente recorrendo a uma imagem exibida na tela, Yurij mostrou como skatistas usam escadarias e corrimãos para praticar suas manobras, transformando frutos da ciência e tecnologia para novas finalidades próprias ao cotidiano deles.

Essa relação da ciência com a cultura e a política precisa ser repactuada com a sociedade, na opinião da matemática Tatiana Marins Roque, doutora em engenharia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora do recém-lançado livro “O Dia em Que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para Um Novo Presente”, ela traçou uma linha do tempo a partir do século 19, quando a ciência passou a ser assim denominada, embora sua atividade existisse muito antes.

De lá pra cá, a ciência viveu momentos de glória e reconhecimento público, como durante o Iluminismo, e outros em que gerou repulsa e desconfiança da maioria, como após a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, ao final da Segunda Guerra Mundial.

Atualmente, pontou Tatiana, a ciência se equilibra entre a desconfiança e a possibilidade de resposta aos desafios em temas como o aquecimento global e a pandemia, tanto a presente como as que virão. “A verdade científica deveria bastar, mas não é bem assim”. A ciência mantém relações com as instituições de poder e com a política. Há ainda as redes sociais, sobre as quais ainda não está equacionada a possibilidade de inclusão de maneira virtuosa. “Tudo isso tem abalado esse pacto entre ciência e sociedade e a gente está no momento de repactuar isso. Temos problemas de nosso tempo, e precisamos de respostas de nosso tempo”, afirmou a cientista.

Tal pacto está erodido por conta da crise atual, que atinge não só o Brasil, marcada pela visão autoritária e pela deslegitimação do conhecimento, que se dá de diferentes formas. Segundo Ricardo Fabrino Mendonça, professor do departamento de Ciência Política da UFMG, a crise é multidimensional. “Há as questões econômicas, uma assimetria política gigantesca, e a crise fiscal que enfraquece os estados. Há uma crise política, atravessada paradoxalmente por apatia e engajamento radicalizado. Instituições disfuncionais e um discurso despolitizante diante das tragédias, um discurso cada vez mais autoritário. No plano social, vemos o aumento da intolerância e do tribalismo. Já a crise epistêmica é marcada pela deslegitimação do conhecimento”, elencou.

As novas tecnologias de informação e comunicação propiciam o surgimento do que o professor chamou de “tribalização”, em que grupos organizados se autoendossam, negando qualquer conhecimento que lhes é contrário. Nessa trilha, há riscos onde inicialmente se viam apenas possibilidades positivas. Como no caso do conceito de “lugar de fala”, acredita o professor. “Este conceito é muito importante, mas devemos pensar como isso alimenta uma prática em que certos conhecimentos se tornam contrários a determinados grupos. Há uma primazia da experiência, que se coloca contra outras espécies de saber. É dizer ‘Eu vivo isso’ como deslegitimação de outras opiniões”, comentou.

Outro risco, na opinião do palestrante, é permitir que a crítica às relações de poder, relações que de fato envolvem qualquer conhecimento, seja senha para descartar, a priori, determinados saberes. “Se toda a forma de saber é parte de relações de poder, logo elas poderiam ser descartadas por não serem nada mais que disputas por poder público e político”, alertou. Tal recurso, enganoso, pode servir tanto à direita quanto à esquerda.

Em meio a tudo isso, há a perda do estatuto da verdade como horizonte normativo. “Nem tudo parece assim tão verdade, então a desinformação é vista como um mal menor. Essa desinformação não é feita por engano, ela tem a ver com o enfraquecimento da ideia de verdade”, comentou. A filósofa Marilena Chauí já havia tocado neste ponto, nos debates ocorridos na terça-feira, ao defender que a razão maior de existência do conhecimento é saber diferenciar o verdadeiro do falso, contra o deliberado abandono desse valor, transformado em ódio ao conhecimento.

“Se isso é verdade, não é só educação que resolve, mas lidar com a desinformação de maneira mais estrutural. A cultura atualmente perde arena para disputas políticas”, disse Ricardo. Daí a importância da cultura e os ataques que sofre na chamada guerra cultural. “Porque a cultura importa, porque altera o espaço de fala e envolve uma construção de um lugar coletivo para a escuta”, nas palavras do professor.

No embate por ciência e democracia, a chave é não permitir que a ciência seja instrumentalizada pelo autoritarismo. “Isso ocorre quando o cientista não espera a maçã cair”, disse o professor Yurij, referindo-se à descoberta newtoniana. Isso não quer dizer, no entanto, que a participação pura e simples seja a solução. Há o perigo de todo mundo participar no sentido mais baixo, que é aquele do Youtube e do Twitter, onde todos têm opinião e encerram a conversa com xingamentos. Isso não é participação democrática”. Como exemplo do que considera participação democrática, Yurij recordou de um caso que acompanhou, quando ainda jornalista, de tomada de decisão por uma tribo indígena. “Não havia chefe. Todos ouviram. Vez ou outra, alguém falava algo. Horas depois, à noite, decidiram. Participação que eu falo é argumentar, ouvir e deliberar em conjunto”.

Os Seminários

Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir aos debates desta quinta-feira, clique aqui.

`