Enfrentar a guerra e buscar nova modernidade, desafios do Brasil
No terceiro dia dos Seminários Cultura e Democracia, 10 de novembro, os debates se concentraram na urgência de elaborar um projeto político pós-bolsonarismo que supere as promessas e garanta de fato a proteção e a participação dos povos originários e das comunidades periféricas no processo político, tomando sempre como questões centrais as realidades de cada território. Tais cuidados são, inclusive, essenciais para a proteção do meio ambiente, outro tema da mesa Cultura, Sustentabilidade e Democracia.
Os tempos atuais são difíceis. Pior, são tempos de uma verdadeira guerra, na opinião de Laymert Garcia dos Santos, sociólogo e professor da Unicamp. “Eu quero começar com uma questão chata, que é a pouca atenção que é dada a uma inversão que ocorreu no Brasil, contida na frase ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’. Essa inversão me leva a focar na guerra. Essa inversão está sendo negligenciada no Brasil, inclusive no campo da cultura. As reações ainda são muito tímidas”, disse, ao se referir ao estágio em que se encontra o país sob Bolsonaro. “O fascismo se dá com a destruição das bases da sociabilidade e com a mobilização total dos segmentos fascistas da sociedade pelo uso sofisticado das tecnologias. Nos anos 30 foi assim com o rádio e o cinema, hoje, com as novas tecnologias”.
Para o sociólogo, a pouca atenção de que fala se reflete no fato de que o bolsonarismo tem pautado a ação e a reação dos setores progressistas. “Isso começa a mudar, mas a postura ainda é defensiva”, alertou. Em sua opinião, o governo federal tem uma política deliberada de terra arrasada. “Não é incompetência. O primeiro ato do governo foi extinguir o Ministério da Cultura: para ele, é preciso comprometer as raízes do povo brasileiro”. E a perseguição aos indígenas é sinal inequívoco desse projeto. “Esse ataque é configurado numa verdadeira caçada ao homem original. Acho que a ficha ainda não caiu para os progressistas brasileiros. Esse ataque é à identidade do próprio povo brasileiro”.
Daí a importância da valorização da cultura popular e da diversidade ambiental do Brasil, aspectos que na visão do professor são intimamente ligados. “Como disse o Juca Ferreira em entrevista, vamos precisar mudar a sensibilidade brasileira. Somos extrativistas por excelência, predadores. Vamos ter de refundar este país”, disse, citando o ex-ministro da Cultura e presidente do Instituto Cultura e Cidadania, entidade que, junto com as fundações Friedrich Ebert e Perseu Abramo, é uma das organizadoras dos seminários.
Antes dele, a jornalista especializada em Bioética Juliana Cézar Nunes, moderadora dos debates, já havia afirmado que o encontro faz parte de iniciativas para “enfrentar essa barbárie que estamos vivendo. Estão passando a boiada para desmatar, ceifar vidas. Hoje a gente vive a perseguição de artistas de diversos setores. Em lugar do diálogo e da transparência, a violência contra jornalistas. No lugar da comunicação negra, a censura e a perseguição”.
Ao falar em refundação do Brasil, Laymert apontou: “A refundação passa por educação e cultura. Passa inclusive por cultivar a elite brasileira – não sei como. Essa elite apostou que ia colocar uma canga no povo brasileiro. No momento, ela está ganhando essa aposta. É uma guerra, e não só política. É uma guerra continuada”.
Nos debates ocorridos no dia anterior, terça-feira, o ex-ministro Tarso Genro já havia abordado o tema da guerra, mas em chave ainda mais literal. Tarso disse acreditar que uma luta armada contra o atual governo se justificaria, do ponto de vista ético, pelo grau de opressão e usurpação dos direitos do povo já em curso. Apesar de, segundo ele mesmo, não haver condições objetivas para isso.
Conexão com as periferias
Em participação ao vivo direto de Glasgow, onde é uma das representantes brasileiras na COP 26, a jornalista e educadora Sylvia Siqueira, diretora da Nossa América Verde, destacou que o ambiente autoritário, de destruição ambiental e de direitos em que se encontra o país só será verdadeiramente superado com um projeto progressista que se faça junto com os povos originários e o povo negro. “Não é que a gente queira aparecer ou querer ‘dar o troco’. Mas como vamos pensar em mudanças climáticas só com mecanismos de adaptação, sem resolver, por exemplo, problemas como o racismo?”, disse. Como exemplo da relação entre as duas questões, citou a proposta de criação de empregos verdes. “Como qualificar as pessoas para os empregos verdes? É preciso educação e ainda eliminar a ampla informalidade dos empregos existentes”.
“Temos o desafio de pensar a conexão dos territórios com a autoridade central”, continuou a jornalista, destacando que esse processo tinha tido início nos governos Lula e Dilma. “A gente precisa pensar que o desenho democrático do Brasil não pode mais ser o do passado. Que sobretudo produza dignidade na vida das pessoas. Não podemos ter uma só pessoa com fome ou morando na rua”.
Ambientalista e presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade, João Paulo Capobianco, que foi secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente entre 2003 e 2008, afirmou que as políticas ambientais estão sendo destruídas em ritmo acelerado e que a pauta brasileira no setor está atrasada em décadas. Como exemplo, citou o desmantelamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), agora sem função.” O Conama era a grande caixa de ressonância dos debates. E foi criado nos anos 1980 no regime militar, o que é uma ironia”.
Como o Conama, todos os demais conselhos foram calados ou extintos. Órgãos como a Funai e a Agência Nacional de Águas colocados sob controle dos algozes dos povos indígenas e das reservas aquíferas nacionais. Portanto, concluiu, a pauta da defesa da democracia volta a ocupar espaço central na agenda. “Nossas pautas eram o combate à desigualdade e a sustentabilidade, com conservação dos nossos biomas e interação com os povos locais. Agora surgiu um novo eixo, que é a própria democracia. Porque sem ela, não tem canais de evolução. E a cultura permeia todos eles”.
Gil e a modernização progressista
Presença mais aguardada, o cantor e compositor Gilberto Gil, ambientalista de longa data e ex-ministro da Cultura no governo Lula, discorreu sobre a necessidade de o Brasil superar seu histórico de modernização conservadora e seguir um novo rumo, o da modernização progressista.
“Temos uma tarefa imensa de construção. Todas as nossas matrizes são recentes e embora já compelidos a adotar o curso das transmutações interativas da pós-modernidade, resiste-se aqui, ainda, a uma série de soluções de velhos problemas do mundo moderno. Educação qualificada para todos, distribuição equânime da riqueza, formação de uma classe média ampliada e estável, um projeto sustentável de apoio à ciência, a defesa intransigente e qualificada dos recursos naturais e humanos, a preservação de toda a herança dos povos originários e seus conhecimentos, a preservação da biodiversidade e seu potencial de contribuição à produção de tudo que diga respeito não só à saúde e ao bem-estar dos humanos, mas da salubridade do planeta e das espécies que garantem as condições da vida. Ou seja, a sustentação de tudo aquilo que é matéria-prima para novas compostagens e hibridações para o futuro” disse Gil, que gravou vídeo para o encontro.
“O Brasil tem esboçado nas últimas décadas um arranjo de modernização conservadora”, afirmou, em outro trecho. “Esse arranjo conservador não corresponde nem a nossas próprias expectativas, nem às expectativas do mundo vindouro, todo ele enleivado de incertezas e ameaças, que espera que cumpramos um papel que nos tem sido atribuído e de há muito anunciado: o papel de celeiro, de caixa d’água, de abrigo seguro para boa parte da humanidade”.
Para Gil, “o que resta ainda de pesadamente conservador nesse arranjo deve dar lugar a mais leveza e fluidez, que corresponda ao modo contemporâneo de viver, deixar viver, fazer viver. Um fluxo permanente de alternâncias, entre altos e baixos, que se complementem e se compensem para além da violência destruidora e paralisante. Um fluxo permanente entre carências e abundâncias, que se equivalham, não porque deixem de ser antípodas, opostas, mas porque se reconheçam interdependentes como a luz e a sombra. Um fluxo permanente entre poder ter, poder renunciar, para escapar do espectro perigoso da acumulação esterilizante”.
“Esse novo arranjo de modernização progressista implica dar e receber, em proporções equilibradas, seja entre os humanos entre si, entre os humanos e a natureza originária, seja entre os humanos e o espírito dos mortos (…) O Brasil é, no mundo de hoje, um dos depositários dessa esperança. Nosso tom é mestiço. A nossa democracia deve ser mestiça, a igualdade deve ser mestiça, ou seja, as desigualdades, numa analogia com a refração da luz, devem ser apenas nuances surgidas no intercâmbio entre as cores do arco-íris vivencial, e não no encardimento definitivo do preto ou no desbotamento definitivo do branco nos extremos do espectro”, continuou.
“O equipamento para a luta social, para a luta política, vem se desenvolvendo em alta velocidade, e é preciso aproveitar a simpatia, a acolhida, o bom humor das novas gerações em relação ao avanço das novidades, no comportamento, na linguagem, e no hercúleo trabalho para sua restauração, no dinamismo para a nova sociabilidade, nos desafios da nova moralidade, em tudo isso reside uma certeza de que há novas caminhos a explorar e a recuperação permanente da expectativa otimista, através de uma militância política atenta e vigilante, é a nossa única esperança. Por fim, como diz o meu querido Jorge Mautner, não há abismo em que o Brasil caiba”, concluiu.
Os Seminários
Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.
Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.
Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.
As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.
Para assistir os debates desta quarta-feira, clique aqui.