O cinismo e a prática da mentira como seu elemento definidor é a faceta mais recente do capitalismo global. Fruto da fusão do neoliberalismo, no momento mais autoritário desde sua entrada em cena, com as tecnologias digitais, avatares poderosos da ideologia de mercado e difusores de seu arcabouço cultural.

O neoliberalismo, desde seu início e posterior aprofundamento de seu alcance, com a supremacia da financeirização sobre a produção de bens materiais, é um inimigo da democracia. Transformou em serviços o que eram direitos das pessoas e, portanto, em mercadorias a serem adquiridas no mercado. Com isso, foi diluindo e enfraquecendo ao longo do processo, na mente das pessoas, a ideia de que direitos são resultado de lutas sociais. Colocou os indivíduos na posição de meros competidores entre si, inimigos de seus iguais.

E com a hegemonia das tecnologias digitais e seu amplo domínio pelas grandes corporações, o neoliberalismo fragmenta cada vez mais a percepção da realidade e promove o apagamento do trabalho humano como o responsável pela criação das condições de vida. Apaga em grande parte da coletividade a consciência e o desejo de atuar como sujeito criador dos destinos dos povos, transformando-a em mera espectadora.

A cultura, como elemento essencial à democracia, também sai alvejada nesse cenário. Como direito humano e como obra do trabalho, as manifestações artísticas e culturais sofrem os efeitos dessa fragmentação e desse apagamento. Inclusive pelo fato estarem cada vez mais atreladas, por força das circunstâncias, às plataformas digitais.

Eis aqui uma fração do que foi debatido na segunda mesa dos Seminários Cultura e Democracia, realizada na manhã de terça-feira, 9 de novembro. Intitulada Crise e Transformação, a mesa de debates ocorreu em plataforma digital, espaço incontornável a ser, portanto, disputado. Os Seminários são uma iniciativa do Instituto Cultura e Democracia e das fundações Friedrich Ebert e Perseu Abramo. Os debates tiveram início na segunda, dia 8, e seguem até o dia 19, sempre no período da manhã, com início às 9h30, com pausa no final de semana e no feriado de 15 de novembro. Os palestrantes da segunda mesa foram a filósofa Marilena Chauí, o advogado Tarso Genro e o também filósofo Renato Janine Ribeiro, com mediação de Vivian Farias, vice-presidenta da Fundação Perseu Abramo.

É de Marilena Chauí a afirmação de que o cinismo dá as cartas no jogo político, econômico e cultural. Recorrendo filósofo alemão Theodor Adorno, que definia o cinismo como a recusa deliberada da distinção entre certo e errado, entre belo e o feio, a professora e ex-secretária de Cultura da cidade de São Paulo acrescentou: “É a recusa de distinguir entre o verdadeiro e o falso. O cinismo faz da mentira a forma de governar, e das fake news a forma de fazer política. É a decisão deliberada de falsificar. Isso destrói a democracia e a liberdade e por isso é aquilo contra o que temos de lutar se quisermos uma política cultural transformadora”.

A internet é campo fértil para essa prática, segundo a professora da USP, por se utilizar permanentemente de dois mecanismos contraditórios entre si: a fragmentação e dispersão das dimensões de espaço e tempo e, de forma simultânea, a compressão dessas mesmas dimensões no exato instante do agora. Isso oculta a percepção de passado e futuro e com ela a dimensão do trabalho humano como o criador daquilo que aparece como instantâneo e pronto após uma pesquisa no Google.

“Eu sou de uma era pré-histórica, em que você ia aos livros, às bibliotecas, tinha um tempo para reunir suas pesquisas em um trabalho teórico. Olha, eu não tenho nada contra encontrar as coisas no Google, mas os jovens não têm a menor ideia do trabalho que custou aquilo. Pode parecer uma coisa muito proveitosa (encontrar informações prontas), mas se a gente pensar que a cultura é parte do mundo do trabalho, essa dimensão da cultura como trabalho desparece. É a satisfação instantânea. É a pesquisa transformada em hambúrguer. Isso é desesperador pra mim”, disse.

A pesquisa no Google foi um exemplo a que recorreu, segundo ela, como um parêntese. Mais nocivos seriam outros efeitos da internet, a depender de seu uso. “A subjetividade deixa de ser considerada um exercício de interrogação, para se confundir com objetividade narcísica, um conjunto de estratégias montadas sobre um jogo de palavras que se pretendem jogos de pensamentos. Essa nova subjetividade não se relaciona mais com a vida. Novas tecnologias disfarçadas na falsa liberdade de escolher obedecer. Existir passa a significar ser visto”, comentou. Chauí lembrou que pesquisas mostram que as novas tecnologias estimulam a parte do cérebro responsável pelo querer. “Os desejos substituem o pensamento”.
“Desaparece a ideia do espaço público, substituído pela exposição contínua do espaço privado – os gostos, a vida social. O espaço privado é o espaço do capital. O desaparecimento do espaço público é uma ameaça à democracia”, continuou. Nesse plano do individual, o cinismo se instala pelo estímulo narcísico que tudo transforma em competição. E a necessidade de vencer leva à falsificação de si e do mundo, segundo a filósofa.

Tarso Genro, ex-ministro da Educação, da Justiça e das Relações Institucionais, além de ex-governador do Rio Grande do Sul e prefeito de Porto Alegre, traçou uma retrospectiva histórica do neoliberalismo, situando seu início no biênio 1972-73, período de crise internacional do capitalismo. Ali seria implementada a “subsunção da política à ordem econômica” e, no plano cultural pré-internet, o processo de apagamento das revoluções e movimentos insurrecionais antecedentes.

Genro citou o advogado e dirigente político social-democrata Karl Renner como autor de uma teoria utópica de grande impacto, que acabaria se revelando falsa. “Renner e suas formulações carregam uma potência utópica: a marcha da democracia e a universalização dos direitos iria possibilitar que as grandes transformações fossem exitosamente expandidas. Poderíamos conformar um bloco político que contasse com setores dominantes que concordassem com um projeto humanista em que gritantes processos de alienação poderiam ser contidos”, lembrou. Tal utopia marcaria o período após Segunda Guerra e seria diluído na crise dos anos 1970.

“Isso foi uma grande fraude teórica e filosófica, porque depois se impõe a ditadura do mercado e se desenvolvem os meios de comunicação e integração social que vão formando o mundo em que vivemos hoje, o mundo da fragmentação e da unificação falsificada. Um mundo distópico. Valores mercantis que vão transformando as pessoas em inimigas umas das outras, se difundindo com muito mais expansão que os valores democráticos”, afirmou.

Parafraseando Norberto Bobbio, Genro afirma que, se outrora os levantes podiam ser ilustrados pela tomada do Palácio de Inverno – imagem tomada à Revolução Russa – o desafio atual é a tomada do Palácio da Alienação. A retomada e popularização da utopia, cultura e revolução como valores caros a cada vez maiores parcelas da população, inclusive entre a juventude.

Embora tenha gravado previamente sua participação no debate, Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, dialogou com as inquietações de Marilena e Tarso ao apresentar de forma didática, ao modo de uma aula introdutória, o poder transformador da cultura e suas manifestações. A cultura é capaz de despertar nas pessoas novas formas de entender o que se passa à sua volta ou mesmo dentro de si, revelando algo que não se enxergava antes, ou que não se sabia denominar. E isso traz liberdade e crescimento. “Traz um universo mais rico em significados. A cultura permite pluralizar as visões, enxergar os fatos de maneiras diferentes, discutir, crescer, encontrar o seu caminho, ter liberdade para ver as coisas de uma forma ou de outra e ampliar o universo de pessoas que têm liberdade. Relacionar democracia e cultura não é só aumentar público de eventos culturais ou acesso à produção. É dar instrumentos para as pessoas a fazerem escolhas na vida. E democracia é isso, fazer escolhas. E fazer escolhas deve ser aprendida. E a cultura pode ser de grande valia para isso”.

Os Seminários

Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir o debate desta terça-feira, clique aqui.

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