Cultura na democracia: um canário numa mina de carvão
A cultura e suas expressões, assim como intelectuais e artistas, no contexto da luta política por democracia e justiça social, são como os canários que costumavam compartilhar a vida subterrânea dos trabalhadores em minas de carvão. Esses passarinhos sinalizavam o perigo da falta de ar naqueles ambientes ao demonstrarem sua própria dificuldade em respirar e a morte que se aproximava, alertando para a necessidade de buscar a superfície e o céu aberto.
Com essa e outras imagens, recolhidas da vida e da literatura, o sociólogo e escritor italiano Domenico De Masi fez a palestra de abertura dos Seminários Cultura e Democracia, na manhã desta segunda-feira, 8 de novembro. Os seminários são uma iniciativa da Fundação Friedrich Ebert, da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Cultura e Democracia (leia mais sobre a organização, os objetivos e os participantes do evento ao final do texto).
A figura do canário, conta De Masi, foi sugerida pelo escritor estadunidense Gore Vidal, durante uma conversa entre eles. Serve, na opinião do pensador italiano, para que a classe artística e intelectuais não se esqueçam que “uma ditadura não se cria do nada” e dá sinais consistentes de sua aproximação. “A presunção leva os cidadãos a minimizar o perigo”, alertou, destacando como, em discurso proferido em 1993, na condição de deputado federal, o atual presidente Jair Bolsonaro, ao louvar o regime militar, já sinalizava o risco por ele representado.
O francês Alexis de Tocqueville, citado por De Masi, afirmou que o autoritarismo e sua versão fascista pretendem incutir na população a ideia da preparação das pessoas para um estado de virilidade ativa – e todos as manifestações de poder opressivo nela contidas – que, ao final, nada mais é que uma condição de infantilidade perpétua. Ao interpretar tal metáfora, podemos pensar em parcelas da população em postura de espera e dependência de um tutor, alheia às razões de seus dramas e problemas e inconsciente quanto ao que fazer como indivíduo e, principalmente, como grupo, em busca de autonomia e libertação.
A cultura é imprescindível para romper tal condição, lembrou Juca Ferreira, presidente do Instituto Cultura e Democracia e ex-ministro da Cultura. Para mudança de paradigmas e de pensamento, que possa consolidar a democracia no país, algo que nunca se concretizou para amplas camadas da sociedade. “Cultura é um direito humano, mas o Brasil é um país tão desigual que quando pensamos em direitos humanos pensamos somente nos mais básicos. Mas direitos humanos incluem a dimensão simbólica, o que mais nos difere dos outros animais”, disse Ferreira.
“O Brasil precisa ser refundado, e nós queremos dar nossa contribuição”, prosseguiu, ao explicar o objetivo dos seminários, assim, no plural, porque cultura e democracia são universos imensos, segundo ele. Democracia, destacou, não se trata apenas de aparatos institucionais, mas de relações humanas. O acesso à cultura, garantido pelo Estado, é instrumento libertador. Ferreira lembrou que o inverso é opressor. Quando assumiu o cargo de secretário-executivo do Ministério da Cultura, em 2003, uma pesquisa apontou que apenas 5% dos brasileiros haviam entrado em algum museu durante a vida. “Cultura é um direito que precisa ser promovido”, afirmou.
“As democracias são muito mais que eleições. Cultura é um vínculo das sociedades com a alegria e a tolerância. O ato da criação é essencial para as sociedades, parte fundamental da democracia”, afirmou Christoph Heuser, representante da Fundação Friedrich Ebert (FES) no Brasil, citando a filósofa Hannah Arendt. A FES é ligada ao partido Social-Democrata alemão e seu nome homenageia o primeiro presidente eleito democraticamente naquele país, tornado república após o final da Primeira Guerra Mundial.
O diretor da Fundação Perseu Abramo Jorge Bittar destacou a importância de colocar no centro do debate político a dimensão cultural de um país. “Todas as formas de expressão cultural do povo brasileiro estão sob fortíssimo ataque de um governo autoritário e de inspiração fascista. É um fenômeno mundial este retrocesso à Idade Média, é um estágio atual do capitalismo, a financeirização da economia, essa submissão do humano frente ao mercado. E a cultura é essencial para a qualidade de vida das pessoas, para alargar nossa compreensão sobre esses fenômenos”, disse Bittar.
Domenico De Masi lembrou em sua palestra que uma das raízes do autoritarismo é o ressentimento compartilhado por pessoas que sofrem as consequências das profundas injustiças sociais, agravadas sobremaneira nos tempos atuais, iniciados nos anos 1980, quando a classe dominante internacional adotou uma forma de contraluta às insurreições iniciadas pelos movimentos negro, de paridade de gênero e libertação sexual. Contraluta essa fundada na eliminação do papel do Estado, via privatizações e desoneração fiscal dos multimilionários (“matar de fome a besta”, nas palavras do ex-presidente estadunidense Ronald Reagan, lembradas pelo pensador italiano).
Como resultado, se há dez anos eram 388 pessoas a deter o equivalente em dinheiro e propriedades ao que tinha a metade mais pobre da população do planeta, agora são apenas oito, lembrou De Masi. Em 2020, a fortuna dos 500 mais ricos do mundo aumentou 31%, segundo os placares de concentração de renda. Num mundo que registra renda total na casa dos 65 trilhões de dólares ao ano, dos quais bastariam 100 bilhões para erradicar a fome, os regimes autoritários recorrem a uma “ação pedagógica sob vara” para obter uma obediência cega, que será mantido mesmo após o fim dessa ditadura, espalhando o “vírus do fascismo”, lembrou De Masi. “É sobretudo na cultura que o fascismo tenta se enraizar”, disse.
Assim, qualquer resquício de pluralidade desaparece, o que se conforma ao estado infantil de que o pensador italiano havia dito no início de sua palestra. Mas, ressaltou, esse estado se impregna na população de personalidade mais fraca, enquanto cresce “um ódio visceral nas personalidades fortes”. E, quando um país se encontra no estágio de superação do autoritarismo, ou se prepara para isso, afirmou o palestrante, conta com uma “vantagem insuperável”, como contaram Itália em 1946 e Brasil em 1985: “Poder contar com a repugnância acumulada na sociedade contra o autoritarismo”.
Recordando Napoleão, que afirmou vencer primeiro a guerra a partir dos sonhos de seus soldados, De Masi disse que os ditadores vencem, até mesmo eleições, primeiro no “pesadelo de seus súditos”. Lembrou que até mesmo o conservador papa João Paulo VI, em uma de suas encíclicas, admitiu a justiça de uma revolução quando a opressão é por demais longa e põe em risco a vida das pessoas. “E não existe revolução sem consciência”, concluiu De Mais, sublinhando a importância da disputa cultural. Não sem antes, citando o final do livro A Peste, de Albert Camus – “exemplo de intelectual” – lembrar que “o bacilo da peste nunca morre ou desparece completamente”.
Os Seminários
Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.
Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.
Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.
As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.
Para assistir a mesa desta segunda-feira, clique aqui.