Waldir Pires amou os pobres do mundo
O leitor não se assuste. Nem resvalo biografia aqui, resumo sequer. Waldir Pires é grande, tamanho do mundo. Tentei até, confesso – está pronta, nas ruas, em dois volumes, um cartapácio como costumavam dizer os antigos para se referir a cartas sem medida. Minha carta tinha enchimento pra três volumes, mas o editor me trouxe pro chão, e fez cortar, cortar, à Graciliano – me salvou. Então, pessoa: quiser conhecer, vá lá procurar o homem do tamanho do mundo – achará um pedacinho dele nos meus livros.
Talvez, e vou escrevendo e pensando rumo a dar, fosse o caso de falar sobre entrada dele no PT. Novas gerações do partido provavelmente não saibam dessa história. E dizer um tanto do pensamento desse político singular, coerente, pedra preciosa da luta pela democracia no Brasil.
Lula, nordestino sabido, tempo já havia botado os olhos em Waldir. Nunca se esquecera da atitude dele, em 1989, segundo turno, firme no palanque dele em Salvador. Nem do apoio à candidatura a presidente, outra vez, em 1994. Dava sinais inequívocos, não fossem tantos outros vida afora, de compromissos profundos com a democracia, homem de convicções. Lula, assuntando. Waldir me contou: volta e meia, Lula o chamava ora de modo sutil, ora mais abertamente para ingressar no PT. Waldir, assuntando. Um dia, me chama, assim, de súbito:
– Quero ir pro PT.
Assustei-me, e gostei. Início de 1997. Encarregou-me de sondagens: PT, não obstante mais brando, era partido difícil de entrar. Vocês sabem disso, não? Houve quem o fizesse ajoelhando no milho para purgar pecados. Sei de casos, conto não. Lembro: início dos anos 1990 disse a Jonas Paulo de meu desejo de ingressar no partido. O dirigente centenário me disse: se assossegue aí, chegará o tempo certo. Acatei.
Marquei dois dedos de prosa com Zezéu Ribeiro de modo a cumprir a tarefa dada por Waldir. Zezéu, generoso, do diálogo. Se havia sectarismo no PT, nele, nem um pingo. Gostou, e pediu tempo. Pouco tempo – iria aquietar um ou outro disposto a embarreirar. Havia. Presidente, gozava de autoridade. Logo deu retorno: portas abertas.
Noite de 28 de abril de 1997, depois de encontrar as portas da Câmara Municipal fechadas, decisão dos adversários sob o comando do prefeito Antônio Imbassahy, filiação dele ocorreu nas escadarias, presenças de Lula, Zé Dirceu, senador José Eduardo Dutra, dos notáveis de fora. Filiação dele e minha. O resto do círculo mais íntimo de Waldir, todo de esquerda, não era propriamente partidário daquela decisão. Passou por muitos partidos. No PT, mais longa permanência: seguiu nele até o último dia de vida: nos deixou em 22 de junho de 2018.
Qual era o pensamento de Waldir, chegado ao PT já nos maduros 70 anos de idade? Um ou outro marxista mais tradicional, provável o olhasse atravessado. Talvez o visse como mais um liberal. Olhar apressado. Detive-me com algum zelo a examinar o pensamento dele na biografia. Cedo, foi levado a tomar posição diante do nazifascismo, desde o ginasial em Nazaré das Farinhas, no interior da Bahia. Isso não diria muita coisa – carece acompanhar mais a caminhada. Em 1943, chega a Salvador, ao famoso Colégio Central, berço entre tantos de Marighella e Mário Alves, comunistas históricos.
No final de 1944, tropeça em João Mangabeira. Vinha do colégio, percebe aglomeração, e assiste ao discurso de paraninfo de turma de Direito do celebrado socialista – uma iluminação. Nunca se esqueceu das palavras do mestre: se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. Essa condenação daquela visão do Direito, tornou-se pedra angular da formação dele.
Depois, Ruy Barbosa. Descobriu no velho mestre ensinamentos preciosos. Waldir foi o orador da turma de Direito, em 1949, e o discurso levava o título Ruy e os novos rumos do Direito. Sabia-o um liberal, fruto de seu tempo, e sabia também: era magnífica à época a concepção liberal da vida e do Estado. No discurso, Waldir avança, e chega ao Estado Democrático de Direito e à radicalização da democracia. Descobre em Ruy o que dele pouco se diz: dando razão ao socialismo emergente, tratando inclusive do direito operário, e dizendo devessem as constituições ceder ao sopro de socialização que agitava o mundo.
Entre tantos autores, vai encontrar outro, a fixar o roteiro da vida política, a fincar convicções socialistas e democráticas, a recusar proposta a envolver ditadura, fosse qualquer, inclusive a do proletariado. Harold Laski, sobre quem ouvira falar pela primeira vez no discurso de João Mangabeira, em 1944, o envolveu. Cientista político, professor, chegou à presidência do Partido Trabalhista Britânico, em 1945. A mais densa influência teórica experimentada por Waldir.
Laski era marxista. Suas posições, não fossem tantos outros escritos, podem ser encontradas em Reflexões sobre a revolução de nossa época, primeira edição surgida em 1943 na Inglaterra. No Brasil, em 1946. Um convicto defensor da igualdade social, da luta mesmo em meio à guerra para promover mudanças profundas na sociedade inglesa, ao contrário de Churchill. Defensor do socialismo e contra a ditadura do proletariado – portanto, remava contra a maré do pensamento comunista dominante.
Foi pedra de rumo para Waldir, cujo aniversário de 95 anos é celebrado neste 21 de outubro. Essa tripla herança – Mangabeira, Ruy e Laski -, e há outras, fez dele um democrata, avesso às tiranias, sempre a vincular democracia e luta pela igualdade, socialista sem comungar da ditadura do proletariado, um homem cuja convicção era de que a democracia era projeto inconcluso no mundo, e pela qual incumbia continuar a lutar. Amou os pobres do mundo, como Martí. Amou o povo brasileiro, como Darcy Ribeiro, seu companheiro de jornada.
Emiliano José é jornalista, escritor, integrante do Diretório Estadual do PT, autor de Waldir Pires : biografia, dois volumes.