Hoje Fidel Castro, líder da revolução cubana e que governou o país até 2006, completaria 95 anos. No Brasil, vimos recentemente a repetição, pela extrema direita, de signos e palavras de ordem que remetem a um imaginário do período da Guerra Fria contra Cuba, o que em nada representa a relação entre os dois países. Em 1987, o PT noticiava no seu Boletim Nacional a situação da ilha, momento em que recém haviam sido retomadas as relações diplomáticas com o país, abordando as transformações e avanços pelo qual passavam, com destaque para aumento da participação popular na gestão estatal, criação de comitês populares e vacinação em massa. Leia abaixo a íntegra da matéria e acesse o jornal em nosso acervo.

Cartaz VI Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba, 11 a 13 de junho, 1998. Belém/PA. Acervo CSBH/FPA.

 

CUBA

Um país que traçou seu próprio caminho. Um caminho “do povo, de operários, de camponeses, de Justiça”, como definiu Fidel Castro.

Há pouco mais de um ano, o Brasil reatou as relações diplomáticas com Cuba, rompidas em 1964, logo após o golpe militar[1]. Essa ruptura foi uma das primeiras medidas da ditadura. É óbvio que não interessava a um governo autoritário deixar visível a qualquer brasileiro o exemplo de um país latino-americano o qual, depois de muita luta, libertou-se do jugo imperialista para traçar seu próprio caminho. Um caminho “do povo, de operários, de camponeses, de Justiça”, como definiu Fidel Castro[2]. E, por isso mesmo, um caminho cheio de obstáculos, de sanções de todo tipo e do bloqueio econômico e político imposto pelos EUA e seus aliados, o que persiste até hoje.

Sabotadores, contrarrevolucionários, infiltração de armas e de agentes povoavam Cuba quando, em 1959, a revolução derrubou a ditadura de Fulgencio Batista[3]. Mas a ilha, atualmente com 10 milhões de habitantes, foi, aos poucos, superando as dificuldades. Para conseguir enfrentar – e vencer – os inimigos e, ao mesmo tempo, organizar a sociedade dentro de novos moldes, a população, juntamente com seus líderes, lançou mão de uma tática simples e extremamente eficaz. Compreendeu, muito cedo, que era preciso manter o povo no centro do poder: “Estamos convencidos de que, na medida em que as massas participem dos assuntos do Estado, se tornará mais efetiva a luta contra toda a manifestação de burocratismo, esta­rão melhor atendidas as necessidades da po­pulação e da comunidade e o Estado revolu­cionário será mais forte, mais democrático, mais sólido”, afirmaria Raúl Castro[4] em 1974.

Assim, por meio dos órgãos de poder po­pular, as massas sempre tiveram uma partici­pação direta na gestão estatal. Desta forma, o centralismo burocrático, presente nos pri­meiros momentos da Revolução, pôde ser rapidamente substituído pelo “centralismo democrático”. Dentro deste esquema, a base elege aqueles que vão cumprir funções no aparelho estatal nos diversos níveis da vida nacional. A base cobra dos delegados eleitos prestação periódica de contas e essa mesma base pode revogar o mandato de seus delega­dos, caso não cumpram as devidas tarefas. A autoridade máxima não é o representante que foi eleito e sim o conjunto dos eleitores, pois são as massas que detêm e outorgam o poder.

Quarteirão por quarteirão

Com a vitória da Revolução, surgiu a necessidade de se criarem organismos de vigilância coletiva e de participação popular. Dois anos após a tomada de poder, formaram-se as Organizações Revolucioná­rias Integradas (ORI), compostas por militantes dos três grupos revolucionários então existentes: o Movimento 26 de Julho, o Dire­tório Revolucionário e o Partido Socialista Popular. Com o tempo, os ORI foram se transformando em organismos meramente burocráticos, distanciados das massas. Isso provoca um processo de depuração nos quadros das ORI, que, em 1965, deixam de exis­tir e, no seu lugar, surge o Partido Unido da Revolução Socialista (PURS), dissolvido três anos mais tarde para que seja fundado o Partido Comunista Cubano (PCC).

Para consolidar a Revolução e garantir o exercício do poder pelas massas, foram cria­dos, em 1960, os Comitês de Defesa da Re­volução (CDRs), nas áreas urbanas, enquan­to no campo apareciam sob a sigla ANAP (Associação Nacional de Agricultores Pe­quenos). Em cada quarteirão de todas as ci­dades e em cada comunidade rural, um comi­tê foi fundado, tendo como objetivo princi­pal, além da vigilância, a divulgação e o apoio às propostas da Revolução.

Estas organizações, micropoderes direta­mente ligados ao poder central, contam, ca­da uma delas, com um presidente, um vice, um secretário de organização e responsáveis por várias frentes – trabalhos ideológicos, voluntários, de educação e cultura, mobilização, saúde pública, poupança e vigilância. Eleitos pelos moradores do quarteirão para um mandato de dois anos e meio podem, no entanto, ser removidos a qualquer momen­to, após uma assembleia geral… Os filiados, maiores de 14 anos, contribuem com uma quantia máxima de 25 centavos por mês – o peso, a moeda corrente de Cuba, equivale a 80 centavos de dólar no câmbio oficial.

Do corte de cana à vacinação em massa

As reuniões gerais dos membros dos CDRs e ANAPs ocorrem a cada dois meses, na rua ou na casa de um dos “cederistas”. Nelas são discutidos os problemas locais, do­cumentos políticos, propostas econômicas ou os turnos de vigilância, medidas preventi­vas para evitar crimes, contravenções e abusos contra a propriedade social (as guardas antidelinquência vão das 11 da noite às duas da madrugada, e das duas às cinco, sendo o pri­meiro turno de responsabilidade de duas mu­lheres e o segundo, de um homem. Em es­quema de rodízio, cada morador do quartei­rão tem de fazer o seu turno apenas a cada dois ou três meses).

Cada Comitê possui, em geral, cerca de 120 filiados e, graças a essa imensa rede, é possível, por exemplo, vacinar todas as crianças de Cuba em duas horas. No caso de uma agressão externa, como a invasão da Baía dos Porcos, organizada e financiada pela CIA em 1961, o inimigo pode ser rechaçado rapidamente. Para proteger a Revolução, todo cubano aprende a manejar uma arma de fogo e participa, de tempos em tem­pos, dos “domingos de defesa”, treinando para enfrentar qualquer tipo de ameaça. No plano interno, os cederistas controlam cam­panhas maciças de vacinação, doação de sangue, poupança de matérias-primas e as mais variadas atividades culturais e desporti­vas. Organizam também as chamadas “Bri­gadas Clic!” – numa hora predeterminada, grupos de crianças vão entrando nas casas e, uma a uma, apagam todas as luzes que esti­verem acesas inutilmente.

O trabalho voluntário é uma das princi­pais preocupações dessas organizações, em­bora os sindicatos, nas fábricas, desempe­nhem um papel fundamental nas mobiliza­ções mais importantes. A Revolução, historicamente, sempre se apoiou na rede de CDRs para realizar as grandes tarefas, como a campanha de erradicação do analfabetis­mo ou os esforços para se alcançar níveis re­cordes na colheita de cana e produção de açúcar. O resultado das diligências, bem como as discussões políticas e econômicas che­gam aos cederistas através da revista Con la guardia en alto, algo assim como “Sem­pre alerta”, (palavra de ordem dos CDRs), editada mensalmente pelo Comitê Nacional.

A estrutura eleitoral

Embora não tenha um vínculo formal com o PCC, os CDRs influem e decidem di­retamente sobre o funcionamento e a política governamental. Isto se dá por meio de eleições de delegados em diversos graus, a partir dos comitês de cada quarteirão, até chegar à Assembleia Nacional (ver diagrama) da seguinte forma: a república está dividida em circunscrições eleitorais e os moradores de cada uma delas, maiores de 16 anos, elegem um delegado. Os CDRs, nas cidades, e as ANAPs, no campo, servem como núcleo de organização eleitoral e seleção de candidatos, que não precisam ser membros do PCC. Seis semanas antes das eleições, os candidatos são escolhidos, de forma direta entre os moradores daquela região. O número de candidatos aprovados pode variar entre quatro, nove, dez ou até mais, dependendo do consenso entre os eleitores. Feita a escolha, panfletos com uma biografia simples de cada um dos candidatos, acompanhada de uma foto, são afixados nos locais de maior afluência e distribuídos pelos núcleos de base. Assim, cada distrito, composto de diversos CDRs, elege, por maioria simples, um delegado municipal.

A vida de um delegado eleito não é fácil. Ele deve manter a sua rotina de trabalho e desempenhar suas novas funções políticas sem receber nenhum salário extra. Ele vai representar a comunidade na Assembleia Municipal de Poder Popular e estabelecer, com sua base, uma ligação efetiva, levando para o poder local o relatório da Assembleia, que é discutido com os moradores, em reuniões realizadas a cada três meses. Destes encontros sai um novo relatório, que será, por sua vez, levado de volta à Assembleia, numa contínua prestação de contas para as duas extremidades de poder.

Entre os 169 municípios existentes, são eleitos quase 11 mil delegados municipais, sendo que cada município deve ter entre 30 e 200 circunscrições eleitorais. Com um mandato de dois anos e meio, o delegado municipal tem, por seu turno, de eleger os 1.084 delegados para as 14 Assembleias Provinciais, escolher 455 deputados da Assembleia Nacional. Uma vez mais, as organizações de base, tendo à frente os CDRs e ANAPs, apresentam, juntamente com o PCC, as listas de candidatos a delegados privinciais e a deputados da Assembleia Nacional, que serão discutidas, revistas e ampliadas pelos delegados municipais. Desta forma fica garantido o acesso da população na escolha dos candidatos diretamente, ao apresentar as listas, e indiretamente, ao escolher, através dos delegados municipais, os nomes dos que irão compor a máxima autoridade estatal, com plena capacidade executiva.

Os CDRs, ANAPs, e outras organizações de base não são, portanto, meras correias de transmissão de pressões. Constituem, em si, centros vibrantes de debate que, se por um lado ajudam a consolidar o regime, por outro o fazem salientando as exigências democráticas do socialismo. A Revolução em Cuba não sufocou a forte tradição do recurso às associações de vários tipos, encontrando aí um aliado natural. Uma solução saudável, pois, segundo o sociólogo e deputado constituinte do PT Florestan Fernandes, “onde muitos se reúnem para discutir, opinar e decidir, o socialismo conta com uma impulsão democrática inexaurível e indestrutível”.

Fonte: Boletim Nacional do PT, nº 25, fevereiro de 1987, p. 16. Acervo CSBH-FPA.

[1] No contexto das relações diplomáticas do Brasil com Cuba, em 1959, após a Revolução Cubana, o governo brasileiro, sob a presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), reconhece o governo revolucionário de Cuba. Em 1964, com a instauração da Ditadura Militar (1964-1985), o Brasil rompe as relações diplomáticas com aquele país. Em 1986, durante a gestão de José Sarney, os dois países restabelecem novamente a diplomacia. (N.E.)

[2]  Fidel Alejandro Castro Ruz (1926-2016), um dos líderes da Revolução Cubana realizada em 1959. Após a instauração do governo revolucionário, Castro assume como primeiro-ministro de Cuba até 1976. Neste ano, ocorre uma alteração na Constituição cubana, extinguindo o cargo de primeiro-ministro. São criados os cargos para presidente do Conselho de Estado e também para o de Conselho de Ministros. Fidel Castro assume então como presidente, permanecendo no cargo até 2006, quando se afasta por motivos de saúde, deixando o cargo para o vice, seu irmão Raúl Castro. (N.E.)

[3]  Fulgencio Batista (1901-1973), político cubano, assume a chefia das Forças Armadas de Cuba como presidente entre 1940-1944. Após esse período, Batista muda-se para os Estados Unidos, retornando para Cuba em 1948. Pouco antes das eleições de 1952, organiza um golpe de estado, instaurando a ditadura cubana. O General suspende a Constituição e revoga a liberdade de manifestação política do país. Em 1959, é deposto pelo Movimento 26 de Julho, do qual Fidel Castro fazia parte. (N.E.)

[4] Raul Castro Ruz (1931-), político cubano, foi Ministro da Defesa em Cuba a partir de 1959, permanecendo até 2006, quando assume como presidente interino, na ocasião em que Fidel Castro se afasta do cargo. Tornou-se formalmente presidente eleito em 2008, sendo reeleito em 2013 por mais cinco anos. (N.E.)

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