Após vários dias de prisão injusta, Paulo Galo e seus companheiros Danilo Oliveira e Thiago Zen estão livres e, em consequência, restabelecidos os direitos de organização e expressão no Brasil. Por coincidência, na data em que: a) o Senado revogava a famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada nos estertores (1983) do ciclo do regime militar (1964-1985); b) o presidente Jair Bolsonaro armava uma pantomima frente à rampa do Palácio do Planalto, com um desfile mambembe de tanques das Forças Armadas para intimidar os parlamentares a votarem em favor do voto impresso na Câmara dos Deputados; c) o golpe antidemocrático iniciado em 2016, que não acabou, tinha continuação com o chamado Distritão que liquida de vez com a proporcionalidade da representação política no país e; d) o tricampeão mundial de futebol, Mário Jorge Lobo Zagallo, comemorava o nonagésimo aniversário sonhando com “noventa milhões em ação”. Gabriel Garcia Marquez tinha razão, é fácil fazer realismo fantástico na América Latina: basta abrir os olhos para as incríveis acrobacias expostas na realidade do continente, num único dia.

Como se sabe, o promissor líder dos trabalhadores na entrega de encomendas e os ativistas que o acompanhavam foram vítimas de uma sentença judicial (fantástica) que se mostrou incapaz de refletir sobre si mesma. Com base na dogmática estatal liberal, que reputa ilegais ações coletivas, os lutadores em tela padeceram como prisioneiros políticos ao denunciar os enferrujados grilhões que continuam a prender o futuro ao passado, produzindo sacrifícios permanentes em escala industrial.

O movimento Revolução Periférica, ao atear fogo na estátua de Borba Gato, atacou um símbolo colonialista e patriarcal à semelhança do que acontece em outros países, onde monumentos em homenagem a mercadores ou proprietários de escravos são postos abaixo, em protesto contra sua presença em locais públicos. O movimento poderia ter mirado as categorias socioeconômicas responsáveis pelas desigualdades que jogam no desemprego e na pobreza milhões de brasileiros e brasileiras, concentrando-se no centro financeiro de São Paulo. Para alguns, teria sido mais apropriado. Mas optou por manifestar repúdio a uma época de discriminações e atrocidades que se reatualizam no cotidiano da sociedade, ao violentar indígenas, negros, mulheres. Compreende-se a revolta. “Do rio que tudo arrasta se diz violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”, aponta Bertolt Brecht.

Não faltaram vozes na mídia em reprovação à ação, contabilizando em cifrões os prejuízos causados à estátua. Esta, contudo, se necessita de recursos para o restauro, é problema daqueles que se sentem representados culturalmente pela barbárie que a mesma celebra, de forma tão anacrônica que deveria estar em um museu. Seria uma perversidade cobrar qualquer multa pecuniária dos segmentos sociais estigmatizados pelo monstrengo de treze metros, com o pedestal. Nas nações (África do Sul, Inglaterra, Estados Unidos, Colômbia, etc) em que estátuas foram derrubadas a ira foi contextualizada, impelindo o reconhecimento oficial ao direito à memória dos martirizados ao longo da história, sem que nenhum manifestante fosse detido, muito menos intimado a ressarcir eventuais danos materiais. “Sempre que o poder que as fez erigir foi justa ou injustamente derrotado, as estátuas foram retiradas até com aplauso (estátuas de Stalin no período pós-stalinista ou as de Saddam Hussein depois da invasão do Iraque)”, comentou o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (Carta Capital, 11/082021), também solidário com a mobilização anticolinialista e antipatriarcal. Poderia ter citado o filme Adeus, Lenin (2003), dirigido por Wolfganger Becker, sobre a reunificação da Alemanha pós-muro.

Vale lembrar – entre nós – o assassinato de um cidadão (porque negro, de nome João Alberto Silveira Freitas) na véspera do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), ano passado, no Carrefour em Porto Alegre. O crime, de grande comoção social, foi cometido por seguranças da empresa terceirizada que prestava serviço ao supermercado. Resultou na condenação de vultosa soma, destinada às políticas de enfrentamento do racismo. É tanto passado que ainda não houve tempo para que passasse, como um fantasma que sempre volta. As cotas de reparação étnico-raciais, nas Universidades Públicas, são exemplo de admissão pelo Estado da violência praticada em séculos de escravidão, a qual espera ainda pela abolição de fato. A sentença, essa justa, deve estender-se às esculturas que enaltecem os opressores redivivos. As gerações forjadas na luta por igualdade e reconhecimento têm o direito de trocar “heróis ruins” por “guardiões” de valores civilizatórios. Tal é a mensagem libertária que a Revolução Periférica trouxe-nos. Obrigado, companheiros.

 

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor pelo Institut D’Études Politiques de Paris (Sciences Po) e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (governo Olívio Dutra).

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.