Os primeiros passos do capitalismo foram marcados pelo free market: a defesa da iniciativa privada contra qualquer intervenção do Estado. O indivíduo podia escolher como agir sem temor de punição. Ludwig von Mises (1881-1973) era um entusiasta do laissez-faire e, em consequência, dos princípios do livre mercado e da sociedade livre. Leia-se, livre da legislação de proteção aos assalariados. Hoje, as lições do economista austro-americano são propagadas pelo Instituto Mises Brasil, fundado em 2007, que se ufana de ser o centro (neo)liberal de maior influência no país.

É verdade que o laissez-faire sofreu um revés no fim do século XIX. “As leis trabalhistas, que haviam sido antes um espantalho para os homens da indústria, passaram não só a ser voluntariamente observadas por eles, mas também a estender-se em maior ou menor medida a todos os ramos industriais”, conforme observou Friedrich Engels no Prefácio de 1892 à obra que publicou aos vinte e quatro anos (A Situação da Classe Operária na Inglaterra, 1845). A luta para regular as jornadas de trabalho, o direito de associação, greve e aposentadorias educou a classe operária… e a própria burguesia. Porém, acá, em pleno séc. XXI, os neoliberais continuam em cruzada predatória pela precarização do trabalho. Vide ataques de Temer e Bolsonaro aos direitos previdenciários e trabalhistas, somados à terceirização dos serviços.

Entre nós, o neoliberalismo recende o laissez-faire manchesteriano. Com um acréscimo: a preocupação com a dimensão subjetiva do empreendedorismo para a construção do homem-empresa. Nasceu, assim, a noção do empreendedor que classifica de legítimas e soberanas todas as escolhas do indivíduo, sinônimo de consumidor. Inclusive a situação de penúria era vista como escolha. Sob o Estado de Bem-Estar Social, ouvia-se da classe média francesa que os clochards (mendigos) que, à noite, buscavam abrigo nas estações de metrô de Paris, tinham feito a opção existencial(ista) de viver à margem. O pleno emprego parecia respaldar a impressão. Mas, no contexto de uma sociedade com tamanhas iniquidades, como a brasileira, comentários do tipo soam cínicos. Desculpas esfarrapadas para fechar os olhos ao sofrimento que a burguesia provoca entre os vulneráveis, no corpo e na alma.

As objeções às desigualdades por parte do Estado, dos movimentos e entidades sindicais que reivindicam para a democracia um compromisso com a questão social – estão sempre sob suspeição na ótica das forças neoliberais. O indivíduo deve ser o único a decidir sobre suas ações, somente este sabe o que é bom para si. A superioridade do mercado residiria em que prescinde de controles e conselhos. Mais que palco para o espetáculo das mercadorias, o mercado converteu-se numa escola de aperfeiçoamento anímico. A narrativa sobre a (pseudo) autonomia individual, a qual abstrai os condicionamentos histórico-sociais que submetem todas e todos, virou justificativa preferencial para a reprodução do modo de vida no neoliberalismo.

O mercado fez-se motivador psicológico da ação humana, uma praxeologia aplicada. Na década de 70, na Universidade de Santa Cruz, na Califórnia, psicólogos debruçaram-se sobre os motivos de alguns indivíduos alcançarem os melhores resultados, comparativamente, frente a determinados desafios. Com o nome de neurolinguística, surgia o coaching (treinamento) para formatar a mente e o comportamento do sujeito neoliberal. Filão para especialistas desenvolverem técnicas de emulação dos funcionários nas empresas, impulsionando a subjetividade empresarial e afastando as peças defeituosas, resistentes ao aprendizado do modelo voltado ao homo economicus. “O processo de mercado é como um cenário em que ignorantes isolados, ao interagir, pouco a pouco revelam uns aos outros as oportunidades que vão melhorar a situação de cada um… O mercado é um processo de aprendizagem contínua e adaptação permanente”, explicam Pierre Dardot e Christian Laval (A Nova Razão do Mundo, 2016). Na paráfrase do slogan do governo ditatorial de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) – Mercado: ame-o ou deixe-o.

O pressuposto para a formação do homem-empresa é a vitória dos valores do capitalismo sobre os valores do socialismo na batalha das ideias, parodiando o título de um antigo livro do Leandro Konder. A disputa é importante. As massas possuiriam um vazio de pensamento à espera de argumentos que dourem a pílula da dominação capitalista, na sua inflexão contemporânea. “Nenhuma das grandes invenções modernas teria sido posta em prática se a mentalidade da era pré-capitalista não tivesse sido inteiramente desmantelada pelos economistas. O que se denomina ‘Revolução Industrial’ foi um rebento da revolução ideológica realizada pelas doutrinas dos economistas”, sublinha Von Mises (Human Action, 1949). Não espanta a proliferação de think tanks (gabinetes estratégicos) para disseminar o ideário neoliberal. A luta de classes também se desenrola na aridez da arena intelectual.

O movimento Escola Sem Partido foi uma ofensiva para calar a crítica no ensino médio e universitário. A direita há muito cultiva o combate ideológico para consolidar no senso comum a “nova razão do mundo”. O objetivo é fazer de cada um, um empreendedor. Contudo, as crises do petróleo na década de 70 trouxeram à baila outra figura, a do empreendedor-inovador, o Chief Executive Officer (CEO, Diretor Executivo) “que durante o nevoeiro leva o barco”, como na canção. Sua tarefa: difundir e internalizar o espírito de gestão e a atitude empresarial nos trabalhadores, no local de trabalho e na sociedade. A educação e os veículos de comunicação são instrumentos indispensáveis dessa empreitada, em meio à desobrigação dos governos com a agenda social e ao desemprego massivo desencadeado pelas políticas obedientes ao Consenso de Washington (1989), que reatualizou o neoliberalismo inaugurado pela Société du Mont-Pèlerin (1947). Cabe ao Estado uma coerção vigilante para impor o respeito ao livre mercado e à iniciativa privada. C’est tout.

Para confrontar a distopia neoliberal, cujo desdobre reporta a infelicidade individual e coletiva, há que erguer a bandeira da solidariedade às vítimas da pandemia, do desemprego, do subemprego e da fome. O conteúdo da utopia antifascista, agora nas ruas e praças, consiste no programa para a felicidade com crescimento da economia, geração de emprego e distribuição de renda. O caos econômico, climático e ambiental, a condição de pária pestilenta e a iminência de represálias internacionais – contrabalançadas pela liderança de Lula nos dois hemisférios – já empurra frações das classes dominantes a trocar de paradigma no Brasil. É 2022 um déjà vu de 2002?

Segundo dados recolhidos pela Coordenação Nacional do Movimento de Fé e Política, em 2002, o PT pactuou com 71,5 mil declarantes do Imposto de Renda (IR), com rendimentos acima de 160 salários mínimos mensais.
Caracterizou-se por um viés “social-desenvolvimentista”(1), sem efetivar reformas estruturais (agrária, fiscal, política) e auditar a dívida pública. Foi o preço, digamos, para conquistas sociais que pelo critério da renda e consumo elevaram o patamar de mais de 30 milhões de brasileiros(as), tirando o país do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Às vésperas do segundo turno das eleições que ungiram o ex-retirante nordestino, vale lembrar, o clima quente opunha os interesses do mercado aos da cidadania. Muitos tremores corriam pela espinha dorsal das forças de esquerda.

Na conjuntura nacional, avaliava-se então o esgotamento do ímpeto de reestruturação econômica neoliberal, alavancada no ciclo de Fernando Henrique Cardoso; a cisão do bloco no poder; a tendência do PT ao centrismo; os indicadores macroeconômicos alarmantes do Produto Interno Bruto/PIB, dos índices de inflação e da taxa básica de juros. A situação social era tida como desesperadora. Na conjuntura internacional, salientava-se a exacerbação da hegemonia norte-americana, sem menção à ascensão da China. Entre os petistas, temia-se uma descaracterização da identidade político-partidária com a moderação anunciada na Carta ao Povo Brasileiro (22/06/2002), um atraso programático com o pacto interclassista para enfrentar o período em articulação com anacronismos oligárquicos. Enfim, a capitulação, a acomodação que feriria de morte a independência de classe do Partido “dos Trabalhadores”.

Diversas das ponderações recalcitrantes foram confirmadas, sobretudo no que concerne à ausência de ousadia para propor reformas estruturais que democratizassem a democracia realmente existente, sob o céu do tropicalismo neoliberal. Quando, no encerramento do primeiro governo de Dilma Rousseff, sob cerco, veio à luz a proposta de uma Constituinte Exclusiva para uma Reforma Política, Inês era morta. As adversidades conjunturais não permitiram que a intenção, embora sinalizando dispositivos saneadores para a corrupção que inundava de escândalos políticos a sociedade, mobilizasse a opinião pública para o problema. Perdera-se o timing político, enquanto os astros afiguravam-se favoráveis. Isto é, ainda sob a batuta presidencial de Lula no alto de uma aprovação recordista. Não obstante, outros apontamentos abusaram na dose do impressionismo político.

Há que ter humildade. Impossível auscultar por completo o que se descortina na atualidade. O cenário nacional e internacional apresenta maior complexidade. Até por que o empoderamento de novos sujeitos sociais e políticos (o precariado e outros movimentos por direitos igualitários e reconhecimento) mudaram a coreografia da luta de classes para 2022. Como aconselhava o saudoso Wanderley Guilherme dos Santos, é melhor “contra a arrogância dogmática, opor a simpatia cética”. As portas do futuro seguem abertas.

(1) Para uma contra-argumentação à aplicação do conceito de Social-Desenvolvimentismo, no caso, ler meu artigo – Outro Mundo é Possível: Com que Roupa? In: Democracia Socialista (DS/PT), 21/07/2021. É ilusório esperar que a democracia representativa permita a total otimização de políticas, do ponto de vista das classes trabalhadoras. Forjar uma conceituação para tais limitações institucionais não altera a realidade concreta, onde se travam os embates.

 

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor pelo Institut D’Études Politiques de Paris (Sciences Po) e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (governo Olívio Dutra).

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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