Luiz Marques: A história nas estatísticas
“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta.”
– Chico Buarque
O Núcleo de Opinião Pública, Pesquisa e Estudos (NOPPE), da Fundação Perseu Abramo, através de levantamentos por diferentes institutos de pesquisa, no último período, traz dados interessantes a começar pela ampla vantagem de Lula da Silva na corrida presidencial, 41% contra 27% de Jair Bolsonaro no primeiro turno, 53% a 33% no segundo turno), o que é confirmado por todas as pesquisas presenciais. Aqui, chamo a atenção para um ponto apenas. Lula entre os eleitores pretos e pardos tem 54% das intenções de voto; entre os brancos 40%. No Nordeste e no Sul, tem 63% e 35% respectivamente. As mulheres, os jovens e o Nordeste erguem a fortaleza lulista. Apesar da alta rejeição de Bolsonaro, entre os que votarão nele com certeza e os que poderiam votar seus percentuais entre os de maior renda, escolaridade e idade avançada são elevados. Eis a fortaleza irradiadora de votos bolsonaristas.
Esses dados precisam ser avaliados em uma perspectiva histórica, que teve um divisor de águas inicial nos governos do PT (2003-2014). As políticas sociais e econômicas (retomada da indústria naval, ativando toda a cadeia de produção com aquisição de produtos nacionais) imprimiu um novo ciclo de desenvolvimento na região Nordeste, antes considerada mera provedora de mão de obra barata para a Região Sudeste, em especial, o Rio de Janeiro e São Paulo. A extrema pobreza tipo exportação foi sempre funcional para as classes médias do centro do país. Porteiros, zeladores, cozinheiras, empregadas domésticas, faxineiras, jardineiros, vigias, etc em regra por anos a fio tiveram sotaque nordestino naqueles estados. Com a democratização do desenvolvimento no território nacional, a situação se alterou e provocou reações ressentidas nas camadas intermediárias da escala social.
Vêm da época os comentários indignados de expoentes das classes médias, nas execráveis colunas sociais anti-republicanas dos jornalões, de que os aeroportos haviam se transformado em rodoviárias. Com o que viajar para o exterior (um signo de distinção social) perdera a graça “porque agora qualquer um vai”. Com a oferta de postos de trabalho em outras funções, que não a de neoescravas, as trabalhadoras do lar alheio procuraram ocupações mais valorizadas social e salarialmente, gerando uma redução na oferta de mão de obra e uma majoração nos salários oferecidos para a atividade. A extensão da legislação de proteção social para o setor aprofundou o ressentimento contra o PT na Presidência. A classe média descobria, no bolso, o preço da luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Em consequência, abandonou as charmosas ideias (progressistas, fora do lugar) e agarrou-se ao locus de subsidiária do sistema de opressão e exploração dos pobres, sem a mediação de discursos – qual as socialites das crônicas de Luis Fernando Veríssimo – que acenam para os ideais de nação somente quando curtem passeios turísticos na Europa.
Em São Paulo, os corredores de ônibus, primeiro, e a ampliação de ciclovias, depois, por iniciativa de administrações municipais petistas, ao apontarem a prioridade para o transporte coletivo e um modal alternativo de deslocamento retirando áreas de estacionamento privatizadas por veículos particulares, foram o estopim de uma revolta das classes médias reverberada na mídia comercial. Para alguns analistas, aquelas medidas foram responsáveis pelas derrotas à reeleição. Marilena Chaui conta que, ao tempo que Fernando Haddad era prefeito, alertou um motorista que estacionara seu automóvel importado em local proibido, atravancando o trânsito. Já no interior da agência bancária, para onde se dirigira, foi interpelada aos berros pelo motorista e sua esposa incomodados com a admoestação feita – e agredida com um tapa. “Moralmente covardes, cognitivamente ignorantes, politicamente fascistas”, resumiu a filósofa. O repugnante casal supunha-se proprietário da via pública. Será lembrado pela truculência, brutalidade e falta de espírito republicano. Marilena, reverenciada – a exemplo de Sócrates – pelo respeito às leis da cidade.
As classes médias beneficiam-se da desigualdade social. A minimização das iniquidades, em termos de renda e consumo, e a apropriação dos espaços urbanos pela coletividade afeta seu modus vivendi. Sem mencionar a crise de identidade que a ascensão das classes subalternas causa-lhes nas relações, de um lado, com os do andar de baixo; de outro, com os do andar de cima. O reacionarismo abjeto que esboça é a nostalgia de um status de cidadania dependente de critérios censitários (de alto padrão social e econômico). A cidadania como um valor político compartilhado por todo o povo opõe-se à oligarquização. As políticas implementadas sob os governos progressistas apontavam para a socialização dos direitos e para a igualdade, ao menos formal. Contudo, nem a formalidade era (e é) tolerada por temor que se converta numa força material. Não espanta que as mais de sessenta Conferências Nacionais de Políticas Sociais, tornadas alavancas de políticas públicas com Lula, não tenham tido cobertura midiática. Contrariavam a lógica do censitarismo.
Os representantes da casta jurídica do Estado patrimonial brasileiro que, por conta de um concurso, julgam-se merecedores de prebendas e benesses indecorosas (esbulho dos fundos públicos) por concessão da própria corporação, agem como se a sociedade lhes devesse os privilégios que desfrutam. A Lava Jato, ao especular cifrões que teria feito voltar ao Erário, justificou dessa forma a penca que compõe os proventos dos membros do Ministério Público. O Judiciário fez o mesmo, acelerando prisões e condenações. O desembargador que ofendeu o guarda municipal porque lhe pediu para pôr a máscara sanitária enquanto caminhava na avenida, bem como o homem (hetero, branco) que agrediu a balconista que solicitou que usasse máscara para adentrar o minimercado são, ambos, porcos que se acham mais iguais do que os outros, para evocar a metáfora granjeira de George Orwell (A Revolução do Bichos, 1945). Na metáfora escravista de Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala, 1933), são os senhores redivivos de corpos e almas que não admitem censura por parte de “serviçais”, ainda que por obediência às determinações de ordem pública.
Que a maioria dos funcionários (juízes, promotores) das instituições, em alusão, tenha utilizado-se do antipetismo para legitimar sua opção por Bolsonaro em 2018 e firmado convicção condenatória nos processos judiciais contra Lula – explica-se. “O Estado policial é o melhor terreno não apenas para legitimar privilégios corporativos, mas também para permitir a apropriação e captura da agenda do Estado, com vistas a um aprofundamento cada vez maior do Estado de exceção. Afinal, quanto maior o ataque à presunção de inocência, maior o poder relativo dessas corporações”, observa Jessé Souza (A Radiografia do Golpe, 2016).
As classes médias com poderio socioeconômico, no âmbito do Estado incrustadas e ilustradas pelo comportamento do Ministério Público e do Judiciário, estão nos índices daqueles que votarão com certeza ou poderiam votar em Bolsonaro em 2022. À luz da história de injustiças e autoritarismo que subjaz à formação da sociedade brasileira isso é compreensível. O bolsonarismo é a ponte para o passado de regalias e arbítrios, que confere um conteúdo “de elite” na subjetividade desses segmentos. Não é coincidência que a motociata do genocida-mor, marcada para 10/07 em Porto Alegre, seja convocada pelo grupo Motociclistas RS com apoio da Associação da Classe Média (Aclame). A definição dessa parcela minoritária da população, para além do dinheiro e da influência social, envolve ideias e valores morais fundados na discriminação. Discriminação que justificam com o pretexto da “meritocracia”, que não se sustenta em bases fáticas senão ideológicas, para ocultar as desigualdades abissais que são anteriores ao oferecimento das oportunidades para todos e todas. Tal artifício objetiva dispensar as classes médias de terem de se olhar no espelho.
Para vencer o bolsonarismo é necessário desfraldar bandeiras universalistas. Não poderia ser de outra maneira, em meio a tamanho desemprego (16% da população ativa) e aos milhões que sofrem a miséria e a fome, no presente. No entanto, é indispensável contemplar, programaticamente, elementos identitários: de gênero, étnico-racial, orientação sexual… Não sensibilizará, nas famílias de alto padrão social e econômico os avós e os pais para o antineofascismo. Contudo, poderá sensibilizar seus filhos e filhas para uma visão progressista e democrática de sociedade. A rebeldia da juventude é uma aliada potencial. Pode até subverter as estatísticas.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor pelo Institut D’Études Politiques de Paris (Sciences Po) e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (governo Olívio Dutra).
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.