Chacinas e politização das mortes no Brasil
Carta pública das pessoas participantes do Seminário Chacinas e Violência nas Periferias, realizado pelo Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, em 6 e 7 de maio de 2021.
Nós, participantes do Seminário Chacinas e Violência nas Periferias, estávamos justamente discutindo os assuntos de homicídios de jovens negros, feminicídios e chacinas, baseados em duas pesquisas que o projeto estava apresentando, quando soubemos do crime cometido na Favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro. Por uma destas ironias da vida, na pauta do seminário estavam justamente os assuntos homicídios de jovens negros, feminicídios e chacinas, baseados em duas pesquisas que o projeto estava apresentando.
A incursão da polícia civil do estado do Rio de Janeiro que resultou em ao menos 25 mortos, incluindo um policial, inscreve-se como a maior chacina da história do estado e tem raízes na tradição brasileira de solucionar conflitos de forma violenta, sendo os homicídios múltiplos um repertório de ação muito utilizado para determinados grupos.
Isto é muito visível nos dados apresentados. Entre 2015 e 2019, foram identificados 408 casos reportados como “chacina” pela imprensa, contando com três ou mais vítimas fatais. Estes casos contabilizaram 2.061 mortos. A alegada causa mais frequente dessas ocorrências é sustentada por uma política de guerra às drogas, e em mais de um quinto dos casos há policiais envolvidos.
O que isso vem nos dizer? Como afirmou o Centro de Populações Marginalizadas, trata-se de um ritual de sangue, e a todo ritual importa dar atenção ao que os atores estão dizendo quando os corpos negros são mortos e imagens são publicadas e transmitidas em rede nacional e nas redes sociais. Quem está no centro da cena está criminalizando os mortos e, ainda, quem defende os moradores de abusos e todo o associativismo por direitos humanos.
Não há planejamento nem técnicas que justifiquem a morte de 24 civis e um policial. Trata-se de um ato político de demonstração de poder de grupos organizados que estão profundamente inseridos nos sistemas econômico e político. Polícia, bandidos ou qualquer outra coisa que se localize entre um e outro escudam-se na visão racista de que todo morador de favela é bandido para matar qualquer um que nestes bairros se encontrem.
Enquanto isso, grande parte dos homicídios no Brasil segue sem resolução judicial, o que quer dizer uma acolhida harmoniosa dos assassinos responsáveis por essas mortes. Em outras regiões menos prestigiadas pela mídia de massa dos país, várias formas de chacinas também vêm ocorrendo, tanto provocadas por polícias quanto por milícias, e ainda há aquelas que ocorrem em presídios.
É preciso lembrar e reforçar que, se existe alguma visibilidade e humanização destas vítimas, ela se deve à militância e ao ativismo de diversas matizes, de mães, amigos e familiares das vitimadas pela violência policial, dos movimentos negros, dos direitos humanos, entre tantos outros.
Todos os setores democráticos devem ir além das tecnicidades das explicações oficiais e fazer a crítica política mais ampla e profunda sobre o que representam estes grupos que usam o expediente da morte ritualizada como forma de disputa de poder e oferecem os corpos negros e pobres para o sacrifício público, como emblema do processo de genocídio negro no Brasil. Querer justificar a morte, qualquer morte, é querer negociar a vida. E a vida é inegociável.
Reconexão Periferias, Fundação Perseu Abramo, 7 de maio de 2021.