Alfredo Bosi: ‘O puro orvalho da alma’
Por Flávio Aguiar, publicado originalmente na Rede Brasil Atual.
O título deste artigo rememora palavras de Alfredo Bosi, dirigidas à sua esposa Ecléa, nos agradecimentos a ela pela ajuda que prestou durante a elaboração de um dos livros mais impactantes – dentre muitos – do professor: “Dialética da Colonização“, publicado em 1992. Como ele as colocou entre aspas, imagino que seja alguma citação, que pode ter tanto um significado litúrgico de menção ao refrigério trazido pelo Espírito Santo a quem ele abençoe, quanto ao de um amálgama de referências a diferentes poetas brasileiros, de Gonçalves Dias a Vinícius de Moraes. Elas poderiam também se aplicar a ele mesmo.
É impossível condensar referências ao vasto espírito de Alfredo Bosi em algumas poucas linhas. Estudioso denso da literatura e da cultura italianas, de Dante e Leonardo da Vinci a Antonio Gramsci e outros, Bosi o foi também em relação à nossa literatura brasileira e nossa cultura. Além disto, foi militante incansável das causas democráticas e de princípios identificados com um socialismo cristão, ou de um cristianismo socialista, como se queira.
Se Marx e Gramsci, além de outros comunistas, o inspiraram, eles o fizeram de par com o cristianismo libertário que também inspirava a militância do professor. Bosi era católico fervoroso, ao contrário de rancoroso ou rançoso: sua fé e crença religiosa o levava a professar uma visão ecumênica da religião e da humanidade. Se o Cristo habitava nele, era o Cristo de braços abertos para toda a humanidade, não o das carolices que se disfarçam de contrição, nem o da cupidez pelo dízimo que anima gritarias em igrejas lotadas mesmo em tempos de pandemia.
Argúcia e generosidade
Como professor, Bosi exalava uma aura de paciência e capacidade de observação crítica ao mesmo tempo aguda e abrangente. A argúcia fazia parte de seu estilo, mas também a generosidade humanista que se dirigia tanto aos escritores e escritos que estudava, quanto aos alunos e colegas com quem compartilhava seus conhecimentos, saberes e descobertas.
É desnecessário falar aqui da pertinência seminal de sua obra crítica: ela fala por si, de compêndios como a História Concisa da Literatura Brasileira, obra de referência indispensável tanto para o iniciante quanto para o erudito, às análises mais particulares como em O ser o tempo da poesia, Céu, inferno, ou em seus estudos machadianos e sobre outros autores de nossa literatura.
Bosi cultivou o ensaio como forma de sua escrita. Mesmo numa obra que tende para o tratado, como na “História Concisa…”, ele nunca abandonou esta característica do ensaio que é a de expor ao mesmo tempo as peculiaridades do objeto analisado e as premissas e desdobramentos do olhar que as analisa, num jogo dialético entre subjetividade e objetividade. Valia-se ele de uma estratégia ensaísta particular, que é a da construção do ponto de vista numa série de círculos concêntricos que ora se expandem do núcleo analisado para todos os horizontes significativos, incluindo o contexto histórico e social, sem descurar dos aspectos psicológicos, ora voltam ao ponto de partida agora melhor iluminado pela viagem anterior.
Vida de historiador
Ao lado de sua militância pela inteligência e pelas causas libertárias, democráticas e sociais de nosso povo, cabe também destacar sua vida de historiador, e não apenas de nossa literatura. Reporto-me aqui a dois momentos extremamente criativos de sua atividade neste campo: seu ensaio A arqueologia do Estado-previdência e a entrevista que deu à Revista do Brasil, desta Rede Brasil Atual, e que foi publicada em seu número 12, de 4 de abril de 2013, Arqueologia da CLT.
Entre outras facetas de estudo, Bosi prova a inconsistência da tese liberal, comprada apressadamente por muitos setores da esquerda, de que a Consolidação das Leis do Trabalho (a “famigerada CLT”) não passava de uma tradução para o Brasil da Carta del Lavoro do fascismo italiano. Descendo à minúcia histórica, mostra como a legislação trabalhista, erguida desde 1931 com a criação do Ministério correspondente – hoje desarticulado pelo charlatão que ocupa o Palácio do Planalto e para gáudio do outro charlatão que ocupa o Ministério da Fazenda –, seguiu-se a estudos preliminares da situação das legislações existentes não só na Itália, mas também na França, no México, na Espanha e sobretudo na Alemanha.
O primeiro ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, (que mais tarde se afastaria de Vargas), conhecia e estava atento ao que se passava no mundo, sublinha Bosi. Ressalta também o traço marcante do positivismo gaúcho e fluminense que, ao contrário do liberalismo hegemônico no movimento republicano paulista, também punha o trabalho e o trabalhador no centro de suas preocupações.
O mestre, colega e amigo
Isto não apagava nem diminuía os aspectos autoritários da legislação sobre o mundo sindical então criado e entronizado no cenário político brasileiro. Na relação do Estado com os sindicatos havia sempre o aguilhão do controle daquele sobre estes, o que vinha também do positivismo em que se formara a geração de Vargas, Collor, Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, João Neves da Fontoura e outros, herdeiros de Júlio de Castilhos, mas também de Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, do Rio de Janeiro, cujo positivismo beirava alguns princípios socialistas.
Porém o traço autoritário vinha acompanhado por uma série de direitos estendidos aos trabalhadores, que antes não existiam, como férias e descanso semanal remunerados, proteção sanitária e à velhice através da aposentadoria, estabilidade no emprego depois de dez anos – extinta depois do golpe de 1º de abril de 1964 –, proibição de discriminar a mulher grávida no emprego, além de algo que era completamente ignorado pela Carta del Lavoro de Mussolini: o salário mínimo.
A saúde e o estado de ânimo do professor Alfredo Bosi se deterioraram muito depois do falecimento de sua esposa Ecléa, também professora da USP, no Instituto de Psicologia, em 2017. Quando de seu falecimento, escrevi algo que hoje também se pode aplicar à trajetória dele. Trata-se da glosa de uma observação de Goethe sobre a relação entre pais e filhos. Dizia eu, em minha adaptação da frase do autor do Fausto e do Werther, que “os mais velhos podem dar duas coisas aos mais jovens: raízes e asas”.
Perdi um eterno mestre, um excelente colega e um grande amigo.
Flávio Aguiar é professor aposentado da Faculdade de Letras da USP e colaborador da TVT e Rádio Brasil Atual em Berlim.