Daniel Silveira: Imunidade, impunidade e imprudência
Recomendo a todos que assistam o vídeo em que o senhor Daniel Silveira agride política e pessoalmente vários ministros do Supremo Tribunal Federal, com destaque para Fachin e Alexandre Moraes.
Tem ofensas contra a esquerda.
Tem ofensas contra o STF e seus integrantes.
Tem ofensas pessoais, ofensas políticas e duas acusações diretas.
Uma a ministro que venderia sentenças.
Outra a ministro que teria vínculos com o PCC.
Algum dia saberemos se este vídeo foi um ex abrupto ou se fazia parte de um plano.
Seja como for, era impossível aos ministros do STF fazer cara de paisagem frente à acusação de venda de sentenças e vínculos com o PCC, sem falar nas ameaças explícitas de agressão física.
Não sei dizer a dosimetria, mas estes aspectos devem ter pesado muito na decisão de Alexandre Moraes, depois respaldada por todos os outros integrantes do Supremo, de mandar prender o senhor Daniel. Talvez estes aspectos tenham pesado mais do que a “defesa das instituições”, como muita gente gosta de acreditar.
A questão é que o senhor Daniel Silveira não é um cidadão comum, nem um Ratinho, muito menos um general, é um parlamentar. E o artigo 53 da Constituição determina que deputados e senadores são invioláveis por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos; e que não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.
Segundo li em textos de especialistas, seriam crimes inafiançáveis os hediondos, de racismo, tortura, tráfico de drogas, terrorismo, participação de ações em grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Não há dúvida de que o senhor Daniel Silveira pode ser enquadrado em algum desses crimes; mesmo assim resta a questão do flagrante.
A esse respeito, embora haja opiniões diversas entre os tais especialistas, mesmo os favoráveis à prisão reconhecem explícita ou implicitamente que a decisão de prisão foi tomada digamos “no limite da lei”. Claro que a decisão definitiva sobre a prisão será tomada pelo Congresso: “Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”, diz a Constituição.
A prisão de um parlamentar e o recurso à Lei de Segurança Nacional levaram algumas pessoas de esquerda a questionar a decisão do STF. Foi o que fizeram, cada um de seu jeito, Breno Altman, o Partido da Causa Operária e Lula.
De fato, o ministro Alexandre de Moraes citou artigos da LSN para embasar a prisão.
Herança da ditadura, a LSN foi concebida e está escrita para ser um instrumento contra a esquerda e contra o povo, não contra a extrema direita e o neofascismo e as elites.
No terreno dos princípios, não há dúvida: a LSN precisa ser revogada e precisa ser substituída por uma Lei de Defesa das Liberdades Democráticas. Mas atenção: não fomos nós da esquerda que invocamos esta Lei para prender (santa ironia) um defensor desta Lei. Pergunto: nós da esquerda, que fomos vítimas da ditadura, de Daniel e de Alexandre, agora deveríamos nos meter na briga entre eles e pedir que tenham modos? Deveríamos por causa da LSN e de uma visão heterodoxa acerca do que seria “flagrante” sermos contra a prisão de um facínora?
Na boa, vamos ser práticos: se a prisão não tivesse ocorrido, não aconteceria nada, absolutamente nada. Toda a esquerda poderia pedir a cassação do sujeito e nada iria acontecer. E se a Câmara porventura decidir que ele deve ser solto, total ou parcialmente (tornozeleira, por exemplo), não será uma vitória da Constituição, do garantismo e da imunidade parlamentar, será uma vitória da extrema direita.
A prisão dele cria um precedente?
Este temor não procede. A elite não precisa e nunca precisou de pretexto algum para punir a esquerda, mesmo que ao arrepio da Lei. A ideia de que se formos moderados, eles também serão moderados, se formos republicanos, eles também serão republicanos, já foi desmoralizada várias vezes pela história, inclusive nos governos Lula e Dilma.
Aliás, não se trata apenas ou principalmente da esquerda: não há e nunca houve “garantismo” para o povo pobre, preto e periférico de nosso país. Quantos foram mortos por “balas perdidas”? Quantos estão cumprindo pena sem trânsito em julgado? Nesta Brasil varonil, o garantismo é no fundamental para inglês ver.
O argumento de que não podemos ser a favor da prisão do senhor Daniel, porque estaríamos criando pretextos que poderão ser usados contra nós lembra argumentos que ouvimos em 2019 e início de 2020, quando alguns diziam que não podíamos defender o Fora Bolsonaro e o impeachment, porque ao fazê-lo estaríamos nos igualando ao golpismo da direita contra Dilma.
Como demonstra este caso citado acima, no fundo o argumento de que apoiar a prisão poderia ser utilizado como pretexto contra a esquerda tem como pano de fundo apresentar o bolsonarismo e a esquerda, como se fossem ambos legítimos.
Não são.
Nazismo e comunismo não são simétricos. Fascismo e socialismo revolucionário não são simétricos. Reação e revolução não são a mesma coisa. Aliás, tanto não são que boa parte desta gente que gosta de posar de liberal, na hora do vamos ver ficam do lado do fascismo, como fizeram desde 2016, apoiando o golpe, a condenação e prisão de Lula, apoiando Bolsonaro no segundo turno etc.
Não estamos diante de um “extremismo legítimo”. Não estamos diante da defesa de ideias em tese, que em tese possam ser consideradas legítimas. Nada disso. Por exemplo: a defesa do racismo não é legítima. E não vamos deixar de afirmar isso, com medo de que a direita possa tentar criminalizar o comunismo ou a defesa da revolução.
Isso seria atentar contra a liberdade de expressão?
Digamos assim: se vamos relativizar os ataques do senhor Daniel Silveira contra a ordem-democrática-liberal-burguesa, então por esta mesma lógica deveríamos relativizar todos os ataques, inclusive os de Bolsonaro.
Claro, Daniel Silveira é peixe pequeno. Há muitos outros no parlamento, no governo e nas forças armadas, a começar pelo réu confesso Villas Bôas. Aliás, este cidadão — além de golpista — é um grande artista: iludiu muita gente na esquerda. Mas deve ser o brilho dos tais botões dourados, pois dentre os que se iludiram ontem, há os que seguem iludidos hoje, acreditando que Villas Bôas agiu só e não teve o respaldo do restante do comando. Me faz lembrar a teoria dos porões, segundo o qual a tortura não era uma política de Estado.
Mas desde quando somos adeptos da tese do “ou todos nos locupletamos ou restaure-se a moralidade”? Só vamos punir um fascista quando pudermos punir todos?? E só vamos punir os fascistas quando for possível fazê-lo com base na legislação verdadeiramente democrática que vamos aprovar algum dia numa Assembleia Nacional Constituinte que será convocada depois que vencermos de forma avassaladora as próximas eleições???
Evidente: zero de confiança no Supremo. O que move a maioria dos ministros não é a justiça, não é a democracia, não é a Constituição. Se fosse, teriam nos ajudado a barrar o golpe iniciado em 2016. Se fosse, teriam reagido a chantagem do General Villas Bôas, feita no dia 3 de abril de 2018. Na época, a maioria do STF se curvou. Três anos depois, um dos que fizeram genuflexão veio a público dizer ser “intolerável” a tentativa por parte dos militares de tentar pressionar a Corte em 2018. Três anos depois tornou-se intolerável? Bom, tirando o deboche talvez inconsciente, antes tarde do que nunca. Mas se agora Fachin descobriu que Villas Bôas cometeu um crime, que tal mandar prender o criminoso? Ou o crime terá prescrito?
Um último comentário, não acerca deste episódio isolado, mas sobre o conjunto da obra. Desde 2016 o Brasil está no limite da lei. Tanto na briga da direita contra a esquerda, quanto na briga da direita contra a direita, o judiciário passou a ser utilizado explicita e abertamente como instrumento de guerra partidária. Neste ambiente, seguir acreditando e defendendo um republicanismo abstrato não é mais mera ingenuidade, é total imprudência.
Prisão para o facínora!
*Valter Pomar é professor da UFABC e diretor da Fundação Perseu Abramo.