Aos 72 anos, com sua risada farta, Milton Barbosa, histórico militante da luta antirracista e um dos fundadores do Movimento Negro Unificado, está otimista.

Miltão, como é conhecido desde quando despontou como liderança, hoje referência para as novas gerações da luta antirracista – ele foi homenageado no filme “Amarelo – É Tudo pra Ontem”, do Emicida – conversou com a Revista Reconexão Periferias, que na edição de dezembro teve como tema principal os direitos humanos (acesse a revista aqui).

Nesta conversa, ele lembra passagens da sua vida e da luta. E reafirma a fé na vitória por um mundo igualitário.

Acompanhe, também em vídeo.

Milton, conta um pouco como foi a sua infância. Como era o Milton criança, adolescente, o que ele fazia, o que ele gostava?

Eu vim de Ribeirão Preto com três anos de idade, eu, minha mãe e minha irmã. Minha mãe que sempre cuidou de nós. Já com seis anos eu entrei numa escolinha particular, da dona Ana Rita Santana, professora negra, de uma família de músicos, ela tocava piano, tinha as irmãs que tocavam piano, cantavam, um irmão tocava violino. Fui criado nessa escolinha com essa professora. Inclusive houve um período em que a gente mudou para um porão que havia embaixo da escola. A gente tinha muita intimidade e ela gostava muito dos alunos negros que ela tinha.

Isso foi em São Paulo?

Na Bela Vista, no Bixiga. E ela tinha uns alunos brancos, classe média. Depois eu fui ver que a escola tinha alunos de famílias de nome, umas figuras ilustres. Ela era muito respeitada e adorava os alunos negrinhos dela. Éramos como filhos pra ela.

Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil

 

Depois você foi fazer Economia na USP. Como foi essa passagem do aprendizado de música pra Economia?

Música não era a minha, na verdade, apesar de ela insistir. A minha área era estudar. Eu lia muito. Ela não era mole não, ela sentava o couro. Ela tinha uma régua. Depois da terceira reguada que você tomava, ela não te pegava mais, porque você já tinha estudado. Na Bela Vista eu ia na igreja da Achiropita, a gente brincava lá, jogava pingue-pongue. Umas coisas que a gente ia aprendendo é que as meninas brancas nunca queriam saber dos neguinhos, e você já vai percebendo que há diferenças. Comecei a trabalhar bem cedo, ainda criança, entendeu? Eu fugia e ia pro campo do Éden(1) jogar bola, ficava no meio dos malandros. Tinha de tudo: malandro, trabalhador. Quando a gente terminava o jogo, nós os moleques íamos pro canto do campo, contar vantagens. Mas os mais velhos iam pro meio do mato ficar experimentando revólver, essas coisas, porque depois eles iam à luta. Muito tempo depois eu percebi que eles nos protegiam, ninguém mexia conosco, eles eram muito respeitados. A cabeça daquele tempo era muito diferente. Com eles, nós estávamos muito seguros. Você vai percebendo as diferenças: quem te defende, quem te ataca. No bairro da Bela Vista, a polícia zoava a gente pra caramba.

O que era essa malandragem que você conheceu lá, futebol, sinuca?

Tinha de tudo. Ladrão, traficante. E lógico, tinha muita gente que não tinha nada a ver com nada disso. Mas sempre fomos tratados com racismo, com violência, a polícia vinha com tudo. A gente vai percebendo as diferenças. Teve um tempo que eu saí da escola, mas depois eu voltei, fiz madureza, estudava muito e em 1973 entrei na Universidade de São Paulo, em Economia. A partir daí passei a ter ação política mais aprofundada.

Madureza era um curso equivalente ao supletivo. Então você estava alguns anos atrás em relação à sua idade e correu atrás. O que te fez querer entrar na faculdade?

Como eu tive uma professora, num ambiente intelectualizado, eu lia muito, ia assistir a muitos filmes importantes, isso vai te construindo por dentro. Quando eu entrei na Economia, eu percebi que aquilo estava subordinado ao capital, por isso não continuei. Embora tivesse tido intervenções importantes no movimento estudantil, foi no movimento social que eu investi. Categoria de trabalhador, trabalhei no Metrô, fui demitido duas vezes por ter feito intervenções na defesa dos trabalhadores e negros e tal. Você, enfrentando, vai aprendendo, vai se informando. Houve um período em que a gente tinha contato com o “Clarim d’Alvorada” da Frente Negra Brasileira(2), o José Correia Leite, Jayme de Aguiar, Henrique Cunha, nós tínhamos discussões sistemáticas com ele. Houve uma época em que nós tínhamos discussões sistemáticas com o Florestan Fernandes. Por exemplo: aquele livro A Incorporação do Negro na Sociedade de Classes, é um livro importante e tal, mas ainda era o ponto de vista de um branco sobre o negro. A partir dessas discussões que a gente faz com o Florestan, ele muda o rumo da obra dele e começa a fazer uns livros muito mais fortes, profundos, revolucionários mesmo. Entendeu? Tinha um sociólogo chamado Eduardo Oliveira e Oliveira, negro, gay assumido, era outra figura importante com quem tivemos contato. Tivemos contato com pessoas importantes, como a Thereza Santos, teatróloga, que fez a peça E Agora… Falamos Nós, que discutia a questão do negro, escrita pelo Oliveira e Oliveira. Figuras fundamentais que foram dando base pra gente. Fomos participar do Cecan, o Centro de Cultura e Arte Negra. Participamos da Vai-Vai, onde eu fui coordenador da Ala do Cala a Boca, onde trabalhávamos as questões culturais, da África, um trabalho de conscientização.

Suponho que quando você entrou na USP, havia poucos negros lá.

Quando eu entrei na USP aconteceu uma coisa engraçada. Quando fui fazer a inscrição, vieram uns playboys pra cima de mim querendo fazer aquela treta do calouro(3), e eu dei uma de humilde e disse que tinha ido lá pra fazer a inscrição pro filho do patrão. Eles me deixaram ir embora. Depois eu fiz uma procuração e minha tia me inscreveu. No primeiro dia de aula, eu chego, tinha aquele monte de careca e eu ali com aquele cabelo black. Aí eu disse: ‘Se vier com graça eu vou dar porrada’. Não mexeram mais comigo. Depois eu comecei a participar do movimento. Um dia o pessoal da reitoria apreendeu o material que os estudantes usavam pra gravar, fazer o jornal. Aí eu estimulei o pessoal pra gente ir lá e pegar de volta. Chegando lá havia uns dois ou três seguranças, que quando viram que a gente vinha com tudo, se avoaram. E a gente pegou o material de volta. O mimeógrafo, que a gente usava pra fazer o jornal “Árvore das Palavras”. A gente distribuía no Mappin, na Liberdade, nos bailes negros, na escola de samba, de 74 a 76.

Você ainda tem exemplares guardados do jornal?

Tenho alguns, depois eu preciso fuçar. Depois tivemos ligação com a Liga Operária, de linha trotskista, depois com o pessoal de O Trabalho, tomamos a direção do centro acadêmico da faculdade, entendeu? Tivemos uma presença rápida lá na USP, mas foi ativa. Mas a prioridade pra mim foi fazer o trabalho nas escolas de samba, nas favelas, e não ficar dentro da universidade. E fui bem sucedido, hoje eu avalio que sim.

Esse trabalho que você fazia junto aos bailes, às favelas, era um trabalho de risco, porque o poder naquela época considerava ilegal, clandestino, subversivo. É isso mesmo?

Com certeza. Uma vez na Vai-Vai eu arrumei uma namorada, e aí a gente foi para o hotel. Chegando lá ela queria cocaína, e eu não tinha. Aí esfriou, acabou. Uma outra vez em Curitiba veio uma loira alta pra cima de mim, fazendo a maior onda comigo, e aí ela queria maconha. Ela pulou fora, porque ela sabia que eu não ia arrumar nada. Depois caiu a ficha: era armação, os caras não queriam nos pegar fazendo política, mas como traficantes. Aquilo era armação.

Como a tua família, a tua mãe, receberam a notícia de que você ia largar a faculdade para se dedicar à militância política? Como foi a reação?

Ela não recebeu essa notícia, ela não sabia, não acompanhava. Minha mãe era uma nega véia, empregada doméstica, trabalhava em casas de classe média, ela não acompanhava esse meu dia a dia.

E a chegada ao Metrô?

Trabalhei no Metrô de 74 a 78. Fui demitido, e aí mudou o governo, com o Franco Montoro, e eu voltei. Fui demitido na primeira vez pelo Maluf, voltei no governo Montoro e fui demitido mais uma vez, no governo Quércia. A primeira comissão de trabalhadores negros que nós criamos foi lá no Sindicato dos Metroviários, que na época era uma associação. O Valter Silvério(4) começou comigo lá. Valeu o trampo. Tem vários quadros que se desenvolvem na luta.

O seu trabalho político já estava em pleno desenvolvimento quando surge a ideia de criar o Movimento Negro Unificado. Como foi isso?

Era necessário um movimento que unificasse. Então criamos o Movimento Unificado contra a Discriminação Racial. Houve o caso do Robson Silveira da Luz, trabalhador, pai de família, que foi preso e torturado no 14º distrito de Guaianazes, pela acusação de ter roubado frutas na feira. Isso nos deixou revoltados. Houve o caso de quatro garotos que faziam parte de um time juvenil de voleibol do Clube de Regatas Tietê e que foram proibidos de entrar na piscina. O técnico do time ficou revoltado e levou essa questão para o Rafael Pinto, que fazia parte do Grupo Negro Socialista, uma garotada. O Robson Silveira da Luz era filho do Rafael Pinto, inclusive. Eles levaram o assunto para o Centro de Cultura e Arte Negra pra gente discutir. No dia 18 de junho nós criamos o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. E lançamos publicamente no dia 7 de julho nas escadarias do Teatro Municipal. Quando estávamos preparando o ato, foi morto o operário Nilton Lourenço, no bairro da Lapa. Estes foram os motivos que nos levaram a fazer o ato público e a criar o movimento. Depois foi introduzida a palavra negro no nome do movimento, foi uma sugestão do Abdias do Nascimento, aí ficou Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, e aí com o tempo ficou só MNU, porque era longo demais.

Milton lê o manifesto do MNU, em 1978, diante do Municipal de São Paulo

 

Aquele ato em 1978, nas escadarias do Municipal, atraiu muito a mídia. Por que você avalia que os jornais, ainda sob censura, decidiram dar guarida para a pauta do movimento negro?

É mais ou menos o que está acontecendo agora com esse Bolsonaro aí. Eles investiram no Bolsonaro e agora querem pegar ele. A mesma coisa foi a ditadura naquele período. Eles investiram para derrotar as forças de esquerda, mas então naquele período eles estavam a fim de derrotar a ditadura militar. Então nós articulamos. Tinha uma menina judia, a Mirna Grzich, que militava com a gente, uma figura incrível, ela mobilizou toda imprensa brasileira e internacional.

O que mais te marcou naquele ato?

Nós fizemos um documento que mostrava qual era a base da nossa luta. Foi feita a leitura daquele documento e intervenções importantes. Depois fizemos outras grandes manifestações. Aquele 7 de julho foi um marco, dava um norte para a luta, e mexeu com o país, com as Américas, mexeu com o mundo. Estabeleceu alianças do negro brasileiro com o mundo. Articulamos muito para que as forças progressistas no Brasil tomassem consciência do que tinha que ser feito. Mas infelizmente o racismo introjetado atrapalhou. Se não, a esquerda teria avançado muito mais e nós teríamos construído o socialismo no Brasil. Hoje eles estão tomando consciência que esse tema do combate ao racismo é de fundamental importância. Para se construir um mundo novo, a esquerda tem de tomar consciência de que se deve reparação histórica aos negros, aos indígenas, a todos os povos oprimidos do mundo.

Você diz que começa a acontecer uma tomada de consciência por parte da esquerda. Você está otimista, tem esperança?

Com certeza vai avançar. Até porque nós fizemos todo um trabalho com a juventude negra. Hoje temos quadros incríveis aí. E temos também a população não-negra que avançou. Contamos com esse avanço e isso com certeza vai dar norte para o país e para o mundo. O papel da direita é nos provocar, retirar direitos. E ela precisa ser enfrentada. Com certeza, com a situação que o país está vivendo hoje, vamos avançar, entrar em outro nível. Nós vamos viver um momento rico de transformação. Temos de ficar atentos, temos de derrotá-los e construir um caminho de dignidade, com todas as pessoas, independente de raça. Temos de considerar as diferenças e saber que elas são usadas para nos explorar a todos.

(1) O campo do Éden estava localizado na várzea mais ou menos onde hoje está o Viaduto Jaceguai, entre as ruas Liberdade, hoje avenida, e a Conde de São Joaquim, na capital paulista.
(2) Em 06 de janeiro de 1924 circulava pela primeira vez o que viria a ser um dos mais importantes periódicos da imprensa negra paulistana: O Clarim d’Alvorada. Fundado pelos jovens militantes Jayme de Aguiar e Jose Correia Leite o jornal era editado na cidade de São Paulo e circulava várias cidades do Brasil.
(3) Até os anos 1990, aproximadamente, havia a prática do trote, quando alunos veteranos recepcionavam os calouros com práticas violentas, como cortar o cabelo à força
(4) Sociólogo e escritor negro

 

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