Para retomar o crescimento e construir um ciclo de desenvolvimento de longo prazo, com diminuição das desigualdades sociais, o Brasil precisa adotar um projeto que defina as prioridades e as ações a partir das necessidades e, principalmente, das ideias de municípios e estados. O governo federal deixaria de ser o detentor das soluções e passaria a ser um facilitador, um coordenador geral.

“Você não pode mais pensar de cima para baixo, tem que pensar do território para cima. O governo federal não é o iluminado que vai dizer para cada um que o que eles devem querer. Ele é o facilitador, o coordenador, planejador, que vai construir esse planejamento junto com a sociedade e com as diferentes esferas da federação”, afirma Guilherme Mello, professor do Departamento de Política e História Econômica da Unicamp. Integrante dos Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPP’s), Mello é um dos elaboradores das propostas econômicas do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, elaborado pelo PT e pela Fundação Perseu Abramo, com participação de outras forças políticas.

Nesta entrevista, Mello comenta algumas das propostas econômicas contidas no Plano e afirma que, antes qualquer coisa, um futuro governo democrático e popular deverá colocar como prioridades a inversão da lógica tributária brasileira – ricos pagariam mais, pobres pagariam menos –, a reforma bancária e a alteração das regras fiscais. Inclusive para possibilitar um modelo de desenvolvimento construído de baixo para cima, em que prevaleça a noção orientadora das “missões sociais”, outra proposta contida no Plano.

Isso representaria uma mudança até mesmo na comparação com os governos federais petistas. “Não dá para dizer: ‘olha, está muito difícil, vamos tentar outro caminho’. Não há outro caminho. As possibilidades de crescer e se desenvolver sem enfrentar esse sistema se esgotaram”, afirma o economista.

Acompanhe a entrevista, também em versão vídeo:

Professor, em primeiro ligar: o Brasil suporta mais dois anos da política econômica da dupla Bolsonaro/Guedes?

Essa é uma questão que é urgente a gente discutir porque o desempenho econômico do Brasil em 2019 já era bastante insatisfatório. Já foi bastante insatisfatório nos anos anteriores também, obviamente no governo Temer. Mas sempre havia aquela expectativa de um novo governo, talvez uma nova equipe, que a coisa fosse deslanchar. Mas não foi o que ocorreu. A gente entrou numa taxa de crescimento muito baixo, é uma quase estagnação, um cenário de desemprego muito elevado, que vem ali desde 2016. Eu acho que 2020 apenas reforçou a nossa convicção de que o governo não tem muita noção do que fazer. O governo realmente ele não está apto para gerir a crise e as dificuldades que o Brasil enfrenta. Então, as medidas positivas que nós conseguimos ver, principalmente o auxílio emergencial, foram obra da oposição, não foram obras do governo. Se dependesse do governo não existiriam. A pobreza teria aumentado exponencialmente no Brasil, a distribuição de renda teria piorado muito e o desemprego seria muito maior do que é, porque sem o auxílio emergencial teria caído muito mais o consumo, e com isso obviamente você teria perdido muito mais empregos, seja no setor de serviços, seja no setor industrial. Então as poucas notícias positivas que a gente pode dar no meio de um ano muito difícil que foi o ano de 2020, em que a gente vai ter certamente a maior queda do PIB da nossa história e acabar com um cenário de elevadíssimo desemprego e subemprego e queda na renda, não foram fruto do planejamento e da ação do governo. E se olharmos para frente, o prenúncio é ainda pior. O governo não consegue tomar pé da dimensão da crise e segue tratando a crise sanitária como algo menor. Mas não é só a questão sanitária, é a própria questão econômica. O governo não sabe o que fazer e a prova disso é que ele não tem nenhum plano de extensão, nenhum plano claro de extensão de uma renda para as pessoas mais pobres e para as pessoas que perderam seu emprego durante a pandemia. Do ponto de vista fiscal não há nenhuma solução pensada e do ponto de vista da renda e do emprego não há nenhuma proposta realmente inovadora. Então, essa inação, essa incompetência do governo em procurar soluções aponta um cenário bastante preocupante em 2021 e 2022, e obviamente as oposições têm um papel central que é o de impedir que essa inação, essa ideologia superada do governo que não tem produzido nenhum resultado positivo para o país se transforme em uma crise social sem precedentes. Mesmo que politicamente isso beneficie o governo, mas é o dever da oposição impedir que o país entre em um cenário de ruptura social.

Este Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil apresentado pelo PT, com auxílio de outras forças políticas, propõe algumas rupturas, como por exemplo a reforma bancária e a reformulação do sistema tributário. Com que apoios do setor produtivo o PT e as forças que vierem a compor podem contar para a implementação desse plano?

Bom, do ponto de vista do desenho político, a primeira força que a gente precisa recuperar é a mobilização social das classes trabalhadoras. Trabalhador tem que se entender como trabalhador e não como um potencial empresário. Ele é trabalhador, e a partir daí ele tem que perceber o que aconteceu nos últimos anos. Nós temos essa missão de levar essa percepção aos trabalhadores, quer dizer, levar essas informações: que nos últimos anos ele perdeu muitos direitos e do ponto de vista das perspectivas para a maioria dos trabalhadores, elas são muito duras, seja trabalhador formal, seja pejotizado, seja informal, você tem um cenário de escassez de oportunidades de desenvolvimento produtivo, dada a política econômica atual. Então acho que o primeiro desafio é esse: avançar e dialogar com as classes trabalhadoras que é a grande maioria do país. Mais de noventa por cento do povo brasileiro é trabalhador, mesmo que seja um pequeno empresário, mas na prática ele é um trabalhador. Ele não é a figura do empresário tradicional, que tem vários empregados. Ele é um trabalhador, só está trabalhando sob um formato jurídico diferente, mas ele continua sendo um trabalhador.

Créditos: Sérgio Silva/FPA

Guilherme durante lançamento do Plano, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em agosto

E quanto ao empresariado, eu acho que a gente tem que contar com as forças que mantêm interesse em um projeto de desenvolvimento nacional. Elas existem, ainda. São minoritárias, é verdade, mas existem. É porque elas percebem que apenas com o desenvolvimento do mercado interno, com desenvolvimento tecnológico doméstico, é que elas vão conseguir as vantagens que vão garantir condições de competir internacionalmente. Devemos contar também com parte dos setores empresariais que equivocadamente embarcaram na onda neoliberal e que na verdade se fragilizaram nesse processo e continuarão se fragilizando, dado que o cenário pós-pandemia é um cenário de aumento da concorrência global. E se a gente conseguir mostrar para esses empresários que o Estado não é o inimigo, que o Estado pode ser um parceiro do desenvolvimento nacional, um coordenador, como foi em muitos momentos da história do Brasil – mas não parceiro do ponto de vista patrimonialista, do ponto de vista de garantir benefícios ou privilégios – mas sim de coordenar um processo de desenvolvimento que vai beneficiar a todos, inclusive os empresários, vamos conseguir reconquistar uma parte do apoio do empresariado. É difícil viu, isso porque o empresariado se fragilizou muito nos últimos anos. Muitos empresários que eram produtivos se tornaram importadores ou se tornaram especuladores. Mas não é possível um país do tamanho, da dimensão do Brasil, subsistir sem uma classe empresarial dinâmica. E para isso você precisa encontrar não só os setores, mas os personagens que estejam dispostos a embarcar em um projeto desenvolvimento e modernização e a retomar, na verdade, o debate sobre desenvolvimento nacional que foi abandonado nos últimos anos.

Quais seriam estes setores, no empresariado, já suscetíveis a essa argumentação?

Vários setores empresariais dependem da dinâmica doméstica. Esses setores são mais facilmente alvo de uma conversa sobre desenvolvimento nacional. Porque o setor que não depende da dinâmica doméstica, que está atrelado fundamentalmente ao comércio internacional, ou a uma demanda doméstica muito específica, de uma parcela muito rica, este não tem interesse no desenvolvimento nacional; os interesses imediatos dele estão em outro lugar. Mas há setores interessados. Vamos pegar um exemplo clássico que é o setor de construção civil que, claro, depende do aumento da renda e mesmo da retomada do investimento. O Brasil está no menor nível de investimento público da sua história. Na América Latina, se não me engano, a gente só não está atrás do Haiti, no restante estamos atrás de todo mundo. Isso causa uma deterioração absoluta em nossa estrutura logística e de transportes. Então é óbvio que há setores interessados no desenvolvimento nacional, e não só setores nacionais, mas estrangeiros também. Mas para isso é preciso dinamizar: são os investimentos públicos, as parcerias público-privadas, é preciso orçamento, é preciso planejamento. Isso vai beneficiar vários setores, desde o setor diretamente envolvido na construção até o setor que fornece máquinas e equipamentos. Mas a gente tem também uma visão de que os setores que mais podem ser beneficiados pelo nosso projeto são aqueles que respondem a demandas sociais muito concretas do povo brasileiro. Então peguemos o exemplo do saneamento básico, do transporte público urbano. Existem muitos desenvolvimentos, inclusive tecnológicos, que podem ser feitos nestes setores. Podem ser feitos em parceria com universidades. Se a gente aumentar o investimento em setores assim, podemos gerar milhões de empregos. Há empresas nacionais fornecendo máquinas e equipamentos, conhecimento e serviços e ao fazermos isso ao mesmo tempo estamos atendendo demandas sociais. Então vamos construir, fazer essa amarração nesses setores que podem atender às demandas sociais a partir de uma coordenação pública. Eu acho que é um primeiro passo importante para a gente reconstruir, digamos assim, o apoio de uma parte da classe empresarial. A gente não pode mais ficar eternamente dependente dos ciclos internacionais. A classe empresarial vai ficar cada vez mais distante das questões nacionais do mercado doméstico e vai depender cada vez mais dos ciclos internacionais. E aí você distancia a burguesia local digamos assim a burguesia nacional do interesse do desenvolvimento nacional. Isso é muito ruim com país; se você não tem um empresariado dinâmico local interessado em desenvolver o próprio país, o desafio do desenvolvimento para esse país fica muito maior.

O Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil aponta três problemas chamados de fundamentais: a estrutura tributária complexa e concentradora, o sistema bancário incapaz de financiar as famílias e empresas e em terceiro o conjunto das regras fiscais. Como o plano propõe em linhas gerais superar essas deficiências?

São temas que inclusive já apareciam no programa de governo do Fernando Haddad. São reformas estruturais. Muito se fala em reforma, agora não fica claro o que são essas reformas, qual o objetivo dessas reformas. Nós deixamos muito claro que o nosso objetivo quando a gente fala em reforma tributária, reforma bancária e em reformular regras fiscais é retomar um caminho perdido do desenvolvimento nacional. Não é uma reforma de destruição do Estado como são as reformas que estão sendo feitas, reformas de cunho de redução de direitos e redução do Estado, mas sim reformas para reestruturar o Estado para que ele seja capaz de coordenar o processo de desenvolvimento. E como a gente faz isso? Primeiro com uma reforma tributária que não mexa só na questão da simplificação, mas que toca na questão da distribuição de renda: inverter a lógica que hoje preside o sistema tributário brasileiro que é a lógica de que o rico paga pouco e o pobre paga muito. Nós já temos uma proposta para isso, que é a emenda substitutiva global 178, que foi proposta por todos os partidos da oposição junto com todos os governadores do Nordeste assinando. Essa proposta está em tramitação na Câmara dos Deputados. Ou seja, não é só uma declaração de intenções, existe uma proposta legislativa pronta para uma reforma tributária. Ela merece ser discutida, criticada, melhorada, mas é um ponto de partida importante porque é a única proposta de reforma tributária que parte do debate da distribuição de renda. E por que discutir distribuição de renda no Brasil? Porque este é um dos países mais desiguais do mundo.

A reforma bancária é o mesmo caso, quer dizer, o Brasil tem um sistema bancário sólido, consolidado, grande, muito concentrado, oligopolizado, mas a principal característica do sistema bancário brasileiro é o fato de que não cumpre sua função social, ou seja, não garante acesso a crédito para as famílias e para as empresas e a gente tem que ter uma estratégia para reverter isso. Não basta ter grandes bancos, bancos ricos, sólidos, rentáveis. Isso não garante, nunca garantiu no Brasil que o sistema bancário cumprisse sua função social que é financiar o desenvolvimento brasileiro, seja financiar o consumo das famílias, seja o investimento das empresas. Então a reforma bancária passa por uma série de mudanças tanto na estrutura tributária como na estrutura regulatória, que vão permitir um aumento da concorrência no setor bancário, na verdade incentivar um aumento da concorrência no setor bancário, que por sua vez vai se traduzir em um maior acesso ao crédito. Qualquer pessoa que estuda desenvolvimento sabe crédito é uma alavanca fundamental para os negócios e quem garante crédito é o sistema bancário.

Por fim, a reforma das regras fiscais. O Brasil foi empilhando uma regra fiscal em cima da outra. Nós temos várias regras, tem regra de ouro, tem a lei de responsabilidade fiscal, tem o teto de gastos, e elas vão restringindo cada vez mais a capacidade
de atuação do Estado até a gente chegar neste momento, por exemplo, em que o Estado está no menor nível de investimento da sua história e o Estado está com dificuldade de cumprir suas obrigações em saúde e educação. Porque as nossas regras fiscais estão atrasadas, antiquadas, inadequadas mesmo. Mesmo a que foi feita agora, a do teto de gastos, é muito mal feita, uma regra fiscal completamente fora tanto da literatura internacional sobre o tema quanto das próprias experiências internacionais. Nenhum país tem uma regra parecida com a brasileira; é uma regra muito ruim. Então se você não reformar o conjunto de regras fiscais e trazer uma regra clara, transparente, objetiva, factível e crível que consiga coadunar desenvolvimento econômico social com estabilidade fiscal de longo prazo, vai esbarrar na dificuldade que a gente tem hoje, incertezas fiscais recorrentes, se vai ter espaço para um Bolsa Família ou não vai… E isso no meio da maior crise da nossa história, não deveríamos nem estar discutindo isso. Então as regras fiscais têm que ser alteradas. Nós também temos uma proposta que foi apresentada este ano pelo senador Rogério Carvalho de alteração nas regras fiscais, uma flexibilização das atuais regras até 2022 e a partir de 2023, com um novo governo, a adoção de uma nova regra. Então, mais uma vez, não é só um plano de intenções, existe projeto legislativo em tramitação no Congresso.

Não vai ser nada fácil, não, Guilherme? Olha, mexer com a estrutura do sistema financeiro, mexer com as regras fiscais… Porque além dos interesses diretamente envolvidos, você tem aí um sistema de comunicação que parece não se importar com isso ou até concordar com isso.

É sem dúvida muito difícil. E inclusive é uma parte da tarefa que os nossos governos não conseguiram avançar na época em que fomos governo, porque é a parte mais difícil historicamente mudar tributação. Tributar rico é muito difícil. São mudanças que exigem muito debate social e uma postura muito clara e muito determinada por parte de um futuro governo. Senão a gente vai cair naquela mesma questão que a gente caiu nos nossos primeiros governos, que é de você ter de tergiversar ou não enfrentar esses desafios diante das enormes resistências. Então você tem de ter muito claro desde o primeiro dia que essas são as nossas prioridades legislativas. E que se nós formos eleitos com esse programa nós vamos correr e vamos buscar. Claro, negociando com o Congresso, com as forças políticas, mas essa é a direção que nós temos como prioritária. Isso estando claro no projeto, fica mais fácil, porque se a população elegeu esse projeto você tem legitimidade. para negociar esse projeto. Não dá para dizer: ‘olha, está muito difícil, vamos tentar outro caminho’. Não há outro caminho. As possibilidades de crescer e se desenvolver sem enfrentar esse sistema se esgotaram.

Outra questão importante apontada pelo plano, e que é uma questão sempre destacada por todos os setores, da esquerda à direita, é o chamado desequilíbrio do pacto federativo. Qual é o principal desequilíbrio da visão do PT e da esquerda, e como atacar esse problema?

O Brasil sofre com o desequilíbrio federativo há muito tempo. Se você pegar por exemplo a ditadura militar, houve uma enorme centralização de recursos, de poder, no governo federal. Basicamente por ser um regime autoritário, centralizou demais não só os recursos como os projetos de investimento, as tomadas de decisão… Só que as pessoas vivem nos municípios, nos territórios. Os entes subnacionais precisam ter um papel de protagonismo, principalmente no atendimento das demandas sociais. Eu vejo muita gente falar em projeto de desenvolvimento nacional, ‘eu quero desenvolver este ou aquele setor’… Só que esses projetos não partem das demandas da sociedade e dos territórios, partem da cabeça de, sei lá, um estudioso, alguém que acha que tem a solução do problema. As necessidades brasileiras são múltiplas e cada região, cada município, cada estado tem o seu arranjo produtivo local, sua necessidade diversa, então não adianta você partir de cima para baixo, entendeu? Porque senão você vai tentar dar soluções para problemas que não existem e não solucionar os problemas que realmente existem. Então nós precisamos começar a pensar a federação de baixo para cima, partindo dos territórios, das demandas que surgem ali e construindo uma coordenação nacional para atender essas demandas. Isso obviamente exige um pacto federativo que não é só questão dos recursos. Recursos também, os estados perderam muitos recursos nos últimos anos. Mas não só recursos, são mecanismos de planejamento, de tomada de decisão, mecanismos de gestão do serviço público e de definição mais clara de quem tem obrigação por cada momento da educação, da saúde etc, como se constroem as parcerias, os consórcios municipais. Então nós acreditamos que a questão federativa é o coração de um novo momento no planejamento e no desenvolvimento. Não é possível você pensar desenvolvimento fora do território, em abstrato. Desenvolvimento não se dá em abstrato, se dá na vida das pessoas, e as pessoas moram na sua cidade, nos seus territórios. Então nós queremos um novo pacto federativo que contemple todas essas dimensões, a dimensão da arrecadação – com certeza, e aí na reforma tributária a gente vai discutir isso – mas também a dimensão da prestação dos serviços da gestão do planejamento e do projeto de desenvolvimento como um todo.

Chama muito a atenção, no plano, essa necessidade de construir o desenvolvimento, e aí entra o respeito ao meio ambiente, a geração de empregos, sempre falando em arranjos produtivos locais. Você pode explicar um pouco melhor? É construir pequenas cadeias produtivas espalhadas pelo país, que vão se multiplicando? É isso mesmo? E como integrá-las para que se tornem competitivas?

Isso é muito importante e eu acho que a grande novidade, uma das grandes novidades do nosso projeto é realmente pensar o desenvolvimento de uma nova forma. Tradicionalmente, o desenvolvimento é entendido como um projeto impulsionado nacionalmente, muito centralizado, muito de cima pra baixo, e muitas vezes pensado sob uma lógica assim ‘ah o que que a China tem? A China tem inteligência artificial, também quero’. ‘O que os Estados Unidos têm? Ah, tem computação gráfica, também quero ter’. Essa visão de ir obtendo os conhecimentos para produzir os produtos que os outros países já produzem foi muito bem sucedida ali na segunda Revolução Industrial, no período de industrialização brasileira, e vários países conseguiram fazer isso. Mas hoje isso é muito distante da nossa realidade. Primeiro que a gente perdeu muitas ondas de inovação, então o Brasil ficou para trás, por exemplo, na questão da computação, da robótica. Mesmo que consiga em alguns setores muitos específicos chegar nisso, para quê? Como isso vai dialogar com as necessidades da sua população? Ou será que vai gerar meia dúzia de empregos, que os meia dúzia de privilegiados de sempre vão continuar ganhando muito bem e aí essa empresa vai ser vendida para uma grande multinacional e quem vai se beneficiar das inovações? Então nós estamos pensando em um projeto de desenvolvimento que dialoga com as necessidades, ou seja, que parta das missões, das necessidades sociais do nosso povo. Como a gente já disse, isso acontece a partir dos territórios, das cidades. A gente acredita que essas necessidades por um lado são desafios, mas por outro são enormes oportunidades de a gente organizar o sistema produtivo privado e público para atender essas necessidades gerando emprego. Não só as empresas já existentes, mas as universidades, a pesquisa, a ciência, para atender essas missões sociais. Vamos dar um exemplo: você pode ter uma missão social ligada à questão do saneamento, da habitação, a questão da saúde, eu posso me colocar como missão social ampliar para oitenta por cento, noventa porcento a cobertura de saneamento básico no Brasil nos próximos dez anos. Como é que eu vou fazer isso? Claro, com marco regulatório adequado, mais a participação do Estado, qual a participação dos bancos públicos, das universidades para pesquisar tecnologia de filtragem de água, por exemplo. Daí você pode construir uma coordenação entre estados e municípios, criar consórcios para fazer licitações mais baratas… Existem enormes desafios que podem ser enfrentados desde que o setor público como um todo – municípios, estados e governo federal, empresas públicas, bancos públicos e autarquias estatais – e capitais privados, que todos se unam para enfrentar esse objetivo e todos podem sair ganhando muito. Mas para isso você precisa de uma coordenação, já que isso não vai se dar espontaneamente.

Então quando você pensa o desenvolvimento a partir de missões sociais você estabelece quais são as suas prioridades e a partir dessas prioridades você vai estudando, inclusive com exemplos internacionais, quais são as melhores formas de organizar os agentes econômicos para alcançar esses objetivos. E esse é o nosso grande desafio, construir um projeto de desenvolvimento que seja capaz de atender as demandas sociais, portanto melhorar qualidade de vida da nossa população, ao mesmo tempo que cria uma transformação produtiva. A criação de arranjos produtivos pode sim ganhar dimensão, porque as nossas carências são enormes. Vamos precisar, sim, de escala.

Muito interessante essa expressão “missões sociais”. Parece que o plano pretende transformar isso numa marca. Uma marca interessante e com potencial de ser compreendida popularmente.

Exato. Veja como esse processo de desenvolvimento é diferente do que a gente teve no passado. É territorialmente orientado, ou seja, parte dos territórios, então ele exige um novo pacto federativo. Porque você não pode mais pensar de cima para baixo, tem que pensar do território para cima. E é mais democrático, porque possibilita verdadeiramente a participação popular na definição de quais são os objetivos do desenvolvimento. Historicamente no Brasil quem decide qual o objetivo do desenvolvimento é o poder central. Desde o café, qualquer ciclo que você olhar da economia brasileira, até o ciclo industrial, é toda decidida de cima para baixo. Às vezes até se consegue, mas de que forma isso dialoga com as necessidades da população? Você conseguiu industrializar o Brasil, mas continua um país extremamente desigual, com indicadores sociais muito baixos. Como é que você consegue coadunar desenvolvimento social, sustentabilidade ambiental e desenvolvimento produtivo? Esse é o grande desafio, e foi pensando nesse desafio que a gente inova a forma de pensar o desenvolvimentismo. O governo federal não é o iluminado que vai dizer para cada um que o que eles devem querer. Ele é o facilitador, o coordenador, planejador, que vai construir esse planejamento junto com a sociedade e com as diferentes esferas da federação.

Você acredita que as cidades que passarão a ser governadas por prefeitos e prefeitas do PT e de outros partidos democráticos e populares podem servir de plataforma para a aplicação dessas propostas contidas no plano?

Podem e devem. Estamos à disposição para ajudar, caso queiram. E, se eu puder fazer uma sugestão, deixo aqui um pedido aos prefeitos e prefeitas que passam a governar em 2021: valorizem a participação social de verdade. Façam do controle social uma ferramenta essencial. Não só na definição do que fazer com as sobras orçamentárias, mas do projeto de governo.

 

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