Depoimento a Isaías Dalle e Victoria Lustosa Braga para a Revista Reconexão Periferias

 

A história e a memória são objetos de disputa, existem as versões hegemônicas ou “oficiais” e as versões subterrâneas (POLLAK, 1989). À estrutura dominante pouco interessam a memória e história não oficiais, daqueles e daquelas que são os “vencidos” e que vivem múltiplas opressões cotidianas. Essas sujeitas e sujeitos têm classe, cor e território, e as periferias estão repletas de potencialidades e vozes que devem ser escutadas.

Assim a Revista Reconexão Periferias lança sua sessão Perfil, com relatos de sujeitas e sujeitos periféricos que ressignificam o passado, pensam o presente e constroem possibilidades emancipatórias de futuro. Nosso primeiro entrevistado é Kian Lemos.

PERFIL: KIAN LEMOS

Secretário de Juventude do PT de Sergipe e referência técnica da Diretoria de Direitos Humanos do governo estadual de Sergipe. Kian, 24 anos, é também fundador do Entre Becos, coletivo cultural e produtora periférica

“Faço política pelas memórias que carrego”

Eu nasci no 18 do Forte, um bairro da zona norte de Aracaju. Morei lá até os quatro anos. Minha mãe é cria do Santo Antonio, que é uma periferia do lado do 18 do Forte. Meu pai saiu do interior daqui de Sergipe, veio pra capital pra trabalhar de pedreiro, não deu certo e entrou pro crime. E virou patrão do crime nessa quebrada que eu nasci. Então meu pai era traficante-chefe e minha mãe era esposa de traficante que criava dois filhos e tinha que lidar com diversas realidades durante este tempo.

Minha mãe foi casada com meu pai dos 18 aos 23, e aí eu nasci aos 21 da minha mãe. Quando eu tinha dois anos, meu pai faleceu. E aí minha mãe teve outro relacionamento extremamente abusivo, agressivo. Depois eu fui pro Santa Maria, que é onde eu considero minha casa. Eu cheguei aqui aos oito anos, então tudo que eu acumulei nesse breve tempo de jornada, dos oito aos 24, foi por causa dessa quebrada.

E na infância eu era um moleque atentado, briguento pra caralho, me envolvi com várias paradas tronchas na vida e com 14 anos eu conheci o grafite e aos 15 anos eu conheci a política.

Eu comecei a fumar maconha aos 13 anos. Minha infância acabou cedo. Eu vi muita coisa, aprendi muita coisa, perdi muita gente na minha infância. Durante dois anos Aracaju foi considerada a capital mais violenta do Brasil, proporcionalmente. Então, durante dois anos o Santa Maria era o bairro mais violento do Brasil.

Acho que uma das coisas que mais me marcou a minha infância foi o corre da minha coroa. Minha coroa foi muita coisa: foi vendedora de Avon e Natura, foi cozinheira, foi auxiliar administrativa, foi guarda municipal.

E uma segunda coisa foi ver quem era o meu pai.

E o meu tio era da política desde os 11 anos de idade, do PCdoB. Meu tio sempre me deixou muito claro: você é preto, você mora dentro de quebrada, e você vai ter de lidar com determinadas coisas, com determinadas situações.

Com 12 anos eu estava me envolvendo com torcida organizada, com gangue de pichação.

Minha mãe não é cristã, mas foi a primeira pessoa que me ensinou que o pouco a gente tem de distribuir pra quem tem fome. A militância só veio me ensinar a teorização disso tudo.
Minha mãe me levava pros movimentos de hip hop. Inclusive quando eu conheci o GOG no Reconexão Periferias eu falei pra ele, e eu não sei se ele entendeu quanto é real, na minha casa tocava Racionais, tocava GOG… E aí quando eu tinha 13, 14 anos, eu resolvi começar a grafitar. E através do grafite, um brother aqui do bairro que é a minha primeira referência política para além do sanguíneo, que é o Dexter, grafiteiro e tatuador, é o herói dos moleques da quebrada, me levou pruns eventos de grafite.

Grafite e política

Teve um dia que eu era jovem aprendiz do banco estadual daqui, que é o Banese. Tinham matado um moleque dentro do shopping aqui, e o moleque era um pedreiro, negro, que tinha ido tirar dinheiro e tava olhando, parado, um vestido pra sua esposa. E os seguranças do shopping pegaram o guri, levaram pra dentro de uma sala escura e mataram. E aí o Levante Popular da Juventude foi fazer uma manifestação. O Dexter me chamou pra fazer um grafite em homenagem a esse guri e participar da manifestação. E nesse dia especificamente eu disse ‘é isso que eu quero fazer da minha vida’. Já se passaram mais de oito anos.

Eu estava na oitava série nessa época. Eu parei de estudar, nunca terminei os estudos.

Minha relação com a educação, a relação da educação com a comunidade foi uma relação de troca de autoritarismo. Eram os diretores tentando dizer que mandavam na gente e os moleques da quebrada tentando dizer pros diretores que eles mandavam na quebrada.

Não estou dizendo que é culpa dos profissionais, eles aprendem o método nas universidades brancas e elitistas. A escola é um campo minado.

Como o grafite entra na escola? Tinha um cara que era o herói da escola, o Mago, e ele jogava basquete, a gente via os grafites dele e o Dexter na rua e a gente não sabia quem eram os caras, porque eles não assinavam, porque o grafite, naquela época, os caras apanhavam. Um belo dia o Mago falou ‘pega o meu caderno’ e o caderno caiu bem na página do grafite. E aí a gente: ‘você é o Mago!’. E aí ele começou a ensinar os moleques todos a grafitar. O grafite salvou toda essa molecada.

Enfim, a educação foi muito importante para a minha formação política, mas não necessariamente em função do método empregado pela escola.

Estou tendo essa oportunidade de ser funcionário do governo do Estado, de ser secretário de Juventude do PT, então basicamente a minha vida é política. Tem a Entre Becos também, em que a gente vem fazendo processo de construção socioeconômica também neste momento. A gente ganhou um edital do Reconexão Periferias então estamos só esperando acabar essa pandemia aí pra efetuar esse trabalho cultural novamente. Mas a gente vem defendendo também que não existe espaço para o tráfico de drogas se não for a necessidade socioeconômica. Então a gente tenta se pensar enquanto empresa, como cooperativa periférica mesmo, num trabalho de construção ampla, pra marca de roupa, pra produção audiovisual, produção de artistas, produção de eventos.

A gente vem oferecendo cursos pra molecada do bairro através do governo do Estado.

E agora estamos construindo a discussão sobre candidaturas negras e periféricas aqui pra Sergipe.

Eu me senti muito encantado com o Reconexão Periferias quando eu me vi dentro dos espaços do PT. Quando a gente consegue juntar pessoas como essas num mesmo espaço, pessoas oriundas das realidades que devem ser debatidas, e a gente dá voz a essas pessoas, é que a gente está entendendo que é preciso corrigir os métodos anteriores.

Voltar para a escola

Eu sou neto de uma mulher preta que criou três filhos, eu sou filho de uma mulher preta que criou dois filhos. Eu vi quanto elas lutaram. Minha mãe entrou na faculdade com 38 para 40 anos de idade. Minha mãe se formou bibliotecária para conseguir um pouquinho mais. Hoje minha avó é policial civil e minha mãe professora do Estado de Sergipe. Então eu tenho uma dívida para com essas mulheres. E eu tenho uma dívida histórica com nosso povo, pois a universidade é um espaço nosso, foi construído pelas nossas mãos. Nós temos que ocupar o espaço. Eu pretendo um dia fazer formação de História ou de Direito.

Futuro da juventude periférica

Nós precisamos debater uma saída socioeconômica para o tráfico de drogas e uma melhoria forte da educação pública. Então nós precisamos tomar o poder. E o que é tomar o poder? É disputar eleição. Eu estou falando de a gente pensar em candidaturas oriundas nossas.

O povo está cansado, porque o genocídio é verídico.

A mudança virá quando formos convidados não a opinar, mas a decidir o que será o sistema educacional. Decidir o que vão ser as políticas de assistência social.

Memória

A história é feita de memórias, boas e ruins. São memórias que nos arrancam dor mas também sentimentos revolucionários como o amor. Todas as minhas tatuagens são planejadas. Eu tenho uma favela no meu braço, que é pra eu nunca esquecer de onde eu vim. O nome da minha mãe está no meu pulso porque foi ela que me deu a vida. Entre Becos está em cima das minhas veias. Mas recentemente eu fiz no meu peito escrito Histórias da Minha Área. É o nome do CD do Djonga mas especialmente o que isso significa pra mim. Quando o Djonga lançou este CD, quando eu ouvi, foi muito nostálgico, muito. Porque eu comecei a lembrar de todas as histórias da minha área, as boas e a ruins. E todas as pessoas que a gente perdeu e todas as pessoas que a gente adquiriu. Então eu resolvi gravar elas no peito, porque o que eu carrego são de fato as histórias da minha área. É a minha crença de que a gente pode mudar o cenário. Se eu pudesse hoje, eu ia vender água de coco na praia. Deve ser bem mais divertido. Mas eu faço política pelas histórias da minha área. Pelas memórias que eu carrego. E pela crença de que o mundo pode ser melhor. É papo de união. É papo de construção, de solidificação. Por pior que algumas histórias sejam, devemos gravar na memória novas histórias possíveis. Não acabou com Zumbi, não acabou com Dandara, não acabou com Ganga Zumba. Não acabou. O meu trabalho hoje é consolidar Palmares.