“A minha vida não vale nada se a do outro estiver estragada”

No mês das celebrações oficiais da Independência do Brasil, a revista Reconexão Periferias entrevistou o jornalista e militante Alderon Costa. Como representante do Grito dos Excluídos – que desde 1995 reúne movimentos sociais para mobilizações de denúncia das desigualdades sociais que turvam o conceito de independência – ele discorreu sobre um dos problemas mais persistentes e agudos de nossa realidade, a população em situação de rua. Problema que se aprofunda na crise atual.

Alderon é responsável pelo jornal O Trecheiro, voltado à população em situação de rua (acesse a mais recente edição aqui) e também é fotógrafo. Duas imagens que ilustram esta entrevista são de sua autoria.

A edição completa da Revista Reconexão Periferias pode ser acessada aqui. Esta entrevista também é acompanhada pelo vídeo da conversa.

Confira a entrevista:

Revista Reconexão Periferias: Eu queria começar com uma pergunta sobre sua própria vida. Como você se aproximou dessa questão social, e passou a ser, inclusive, um jornalista especializado no tema?

Alderon Costa: Obrigado por este espaço. Sobre a sua pergunta, eu costumo dizer que eu nunca me distanciei dessa realidade. Eu sempre estive nessa realidade. Eu venho da roça.

RP: De que cidade você vem?

AC: Eu venho de Unaí. Morei até os oito anos na roça. Roça bem simples, bem pobre. Eram pequenos agricultores, meu pai, meu avô, meus tios. Que também foram levados por este capital, que chegou pra investir em soja e carvão, e comprou as terras todas, e a gente teve que ir pra Brasília.

RP: Seu pai e seu tio trabalhavam como meeiros, é isso?

AC: Não, eles tinham uma pequena propriedade, e os filhos trabalhavam nessa propriedade e cada um com o tempo foi adquirindo suas terras. Mas eram terras pequenas, 20 hectares.

Créditos: arquivo pessoal

 

RP: Não resistiram ao assédio das grandes empresas que vinham para comprar as terras…

AC: Isso mesmo. Já na década de 70. Era muito forte essa pressão. Aí fomos para Brasília e lá moramos em várias invasões, como se dizia à época, em ocupações nas terras devolutas do Estado. Minha mãe trabalhava como lavadeira, como doméstica… A minha realidade sempre foi essa. Aos 14 anos eu tive que trabalhar, sempre trabalhando e estudando. Mas eu tenho uma experiência muito interessante, que aconteceu em Ceilândia Norte. Eu morei lá em 1975, até 80, e lá eu aprendi, na Igreja – nós tínhamos lá um trio de padres muito comprometidos com a realidade, com o povo, trabalhavam nos mutirões, hortas comunitárias, faziam registro pra quem não tinha registro – então foi ali que eu aprendi esse trabalho de se preocupar com o outro, cuidar de si mesmo a partir do outro. Eu me preocupo com os outros, mas estou trabalhando para mim mesmo.

RP: Eu queria saber se você se lembra do nome desses três padres.

AC: Padre Antonio – falecido em novembro –, padre Ângelo e padre Léo. Eram holandeses. Marcaram minha vida porque eram muito próximos do povo. Eram um exemplo de trabalho – a gente andava de bicicleta, fazia reflexões, trabalho com a comunidade, um trabalho de integração, um trabalho com as pessoas para aproveitar, por exemplo, o espaço de plantio que havia nos lotes, que lá em Brasília são grandes, para fazer uma horta. Tinha muitos migrantes que não tinham documentos, não tinham registro. A gente fazia mutirões com os cartórios para fazer esses registros. Além do trabalho de conscientização, de organização. Era uma época em que a Igreja tinha a Teologia da Libertação, estavam se formando as comunidades eclesiais de base, isso tudo foi minha grande escola. Os textos do Carlos Mesters – teólogo muito famoso que vive hoje em Unaí, no convento dos carmelitas – eram textos que sempre diziam que não dá pra ler a Bíblia sem ler a vida.

 

RP: Você estava dizendo que saiu de lá e…

AC: Vim pra São Paulo. Pra estudar. Eu vim pra ser padre. Estudei no seminário oito anos, na congregação dos espiritanos. Os anos que eu estudei – de 82 a 88, mais ou menos – você sabe que quando se chega no seminário, tem uma estrutura ali, uma casa, uma faculdade paga pela congregação… Isso tudo foi pra mim um choque. Antes eu trabalhava com fotografia, fazia revelação, e à noite, estudava. Aí de repente eu tinha tempo, estudava pela manhã, a gente passa a ler. Era um período de grandes questionamentos, e a Igreja estava numa crise muito violenta. Tinha vindo o Vaticano II, a Igreja estava se adaptando, Teologia da Libertação… toda a efervescência do movimento social, todo o esforço para superar o regime militar, eu comecei a acompanhar isso em São Paulo, porque em Brasília isso era muito escamoteado, as escolas tinham muitos militares, então a gente não tinha muito conhecimento dessa história do Brasil. Fiz um ano de estudos e trabalhava numa comunidade em Pirituba, mas aquilo me angustiava. A gente estava numa ilha: o povo com fome e a gente que se propunha a trabalhar com o povo estava ali, numa ilha. Esses questionamentos eram constantes. E em 82, como parte dessa busca, eu passei um dia pela Praça da Sé e vi uma livraria Paulinas, entrei e dei de cara com um livro Somos Um Povo Que Quer Viver. Era sobre um experiência de uma sopa que acontecia debaixo do viaduto do Glicério. Era uma sopa diferente, porque era feita por todos. Partia de uma instituição que era fechada, e eles perceberam que aquilo não estava mudando muita coisa: de cada um que entrava, outros dez iam para a rua. Eles decidiram ir pra rua, pra saber o que a rua estava precisando. Assim, perceberam que as pessoas fazem comida coletivamente, com aquilo que ganham, e concluíram: “vamos reproduzir isso, vamos viver isso”. Toda a quarta-feira, ao meio-dia, ali perto havia uma feira que quando terminava sobrava muito alimento, era um desperdício absurdo; se juntavam os voluntários, os moradores de rua, eram umas cinquenta pessoas. Durante seis anos, eu fiz este trabalho, onde eu fui conhecendo as pessoas de rua, iniciando um processo de transformação junto com eles. O grande lance era esse: não fazer para eles, mas fazer junto, desde a sopa até as outras atividades. Eu tive um momento que até hoje guardo na memória: uma vez eu tive de segurar as tripas de um rapaz, literalmente. Houve uma briga, um esfaqueou o outro e as tripas saíram pra fora, e eu fiquei segurando até a polícia chegar. E você acredita que cinco anos depois esse rapaz passou lá na sopa e me agradeceu: ‘olha, você pensa que eu esqueci? Não me esqueci não’. Então, essas coisas sempre acompanham a gente.

RP: Quero te perguntar sobre a comparação entre aquele momento em que você começou a trabalhar mais de perto com essa população e os dias de hoje. As coisas permanecem iguais?

AC: É totalmente diferente. Naquele momento nós não tínhamos nada, não havia uma ação da prefeitura, albergues, tinham só dois albergues, que a polícia militar é que tomava conta, era uma coisa absurda. A coisa da violência era muito maior. Havia também a coisa de usar a população de rua como mão-de-obra barata. Havia um local onde hoje funciona a Fundação Casa (na capital paulista, bairro do Brás), galpões enormes onde as pessoas moravam. Na época do café, por exemplo, saiam ônibus e ônibus dali para levar as pessoas para o interior ou para o Norte, trabalhar.

Créditos: Alderon Costa

RP: Nós estamos falando dos anos 1980, não é do século 19 não, né?

AC: Sim (risos). Olha, era uma época em que não existia nenhuma proteção pra população em situação de rua. Essa realidade vai mudar um pouquinho só lá em 89, 90, quando chega a (Luiza) Erundina na prefeitura de São Paulo. Tudo com muita violência. Nós estamos falando da polícia do (Paulo) Maluf. Havia muitos matadores. E não tinha a quem recorrer, que eu acho que era o grande problema. Agora a gente conseguiu construir nestes últimos anos algumas instâncias, a defensoria pública é um exemplo claro, era algo que não existia. Recurso pra políticas públicas, também não tinha. A população de rua estava ao léu. Naquela época falava-se em mil, 1.500 pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. Um número pequeno, para os dias de hoje. A partir de 2000 há um crescimento enorme, depois que se começaram a fazer as pesquisas na cidade de São Paulo. As pesquisas começaram em 1992. Esta primeira não é contada (na série histórica) por causa da metodologia, foi uma pesquisa comunitária, que não gastou dinheiro nenhum. Hoje nós estamos falando em 25 mil pessoas.

RP: E no Brasil, você tem os números?

AC: No Brasil você tem duas possibilidades. Há uma pesquisa feita pelo MDS (Ministério do Desenvolvimento Social) em 2009, em 300 cidades com mais de 300 mil habitantes, e nesta pesquisa se deu 34 mil pessoas. Somando-se com outras cidades que já tinham pesquisa, chega-se a um número de 54 mil, no máximo 60 mil pessoas. Este é um dado, de 2009. Depois tem o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que fez agora um trabalho bem interessante, em 2019. Eles juntaram algumas informações que existem no SUS, na assistência social, especialmente no Cadastro Único, e chegaram no ano passado a 100 mil pessoas no Brasil. Mas foi feita uma revisão na metodologia e eles lançaram no começo deste ano os novos resultados, que chegaram a 200 mil pessoas em situação de rua. Claro que isso vai se alterar profundamente pós-pandemia. Colegas nossos que têm feito atendimento reportam que estão chegando muitas famílias.

RP: Se os órgãos oficiais não se preocupam em fazer a estatística, fica muito mais fácil para o poder público e a própria população fingir que o problema não existe.

AC: Nós temos cobrado muito isso. Sabe, essas pesquisas de 2000 a 2015, o acesso a elas era muito difícil. Era só via Ministério Público. Porque o poder público fazia a pesquisa e escondia. E desde os anos 2000 existe uma cobrança para que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) inclua no censo a população em situação de rua. Fizemos um esforço enorme, a partir da gestão Lula – inclusive havia o encontro anual do Lula com a população de rua, e eu me lembro muito bem que eu fui designado porta-voz pra falar com o Lula da importância disso. E o Lula prometeu, “o IBGE vai contar sim a população de rua”. E ele realmente fez todo um esforço pra que isso acontecesse. E o IBGE passou a fazer o trabalho, e fez inclusive um piloto no Rio de Janeiro. E hoje, tem uma metodologia. Não vai incluir a população de rua na próxima pesquisa por uma questão política. Porque recurso tem. É uma vontade política.

Créditos: Alderon Costa

RP: Lembrando que se dependesse do atual governo, nem censo haveria, porque eles chegaram a defender a suspensão da pesquisa. A partir dessas pesquisas, nós temos um perfil da população em situação de rua?

AC: Com certeza. As pesquisas hoje são unânimes em olhar alguns dados. A questão de o número aumentar, isso é básico. Hoje também se sabe que não se trata mais de uma questão masculino/feminino, há toda uma questão de gênero, de indígenas, de imigrantes que estão também chegando na rua. Ampliou-se o perfil daquela população. Há também a questão da idade, é uma população jovem. De 18 a 49 anos são a maioria. E 70% são negros.

RP: O que fazer para combater as causas que levam as pessoas a viverem em situação de rua? Quero perguntar também se essa questão passa pelo processo eleitoral ou é preciso algo mais?

AC: Precisa de algo mais do que o processo eleitoral. A gente sabe que não é uma gestão que vai mudar esta realidade. Não é uma política que vai mudar esta realidade. A realidade de pessoas em situação de rua é muito complexa porque envolve várias políticas. A população em situação de rua é mais uma questão de direitos humanos do que de assistência. Quando se fala de assistência, a gente já tem o conceito do coitadinho, da pessoa que está necessitada. E a maioria está desempregada, não pode pagar o aluguel. O período mais crítico que tivemos a história foi a era Collor, quando tivemos um pico da população em situação de rua. Muita gente foi pra rua. Agora teremos outro pico, tem muita gente que não tem dinheiro pra pagar o aluguel. E não há uma política pra criar emprego pra essas pessoas. Outra coisa é a continuidade dessas políticas. A gente entende que como é uma coisa grave, complexa, um governo só não consegue resolver.

RP: Há algum exemplo internacional que seja uma referência positiva?

AC: Até onde eu sei, todos os países estão buscando uma solução. É um problema sistêmico, da concentração de renda. O sistema concentra tanta renda que alguns vão ficar sem. Um dos países que têm uma política interessante é o Canadá. Lá, a iniciativa privada tem algumas ações interessantes: um grupo de empresários comprou um prédio, reformou e colocou à disposição dos moradores de rua. Não chamaram a polícia para retirar essas pessoas, mas fizeram uma ação de inclusão delas. Estamos agora acompanhando Portugal, que tem investido muito na moradia primeira, especialmente ligada à saúde mental. Mas não há um modelo a ser importado.

RP: Eu me recordo de uma live do Reconexão de que você participou e dizia que nessa pandemia surgiu um movimento solidário como você nunca havia visto antes.

AC: O que a pandemia trouxe é isso: que todos somos responsáveis. Até porque a minha vida não vale nada se a do outro estiver estragada. Eu recebi vários telefonemas de gente que dizia “Olha, eu não posso fazer nada, eu posso até morrer”. Essa foi a sensação de todos nós quando passamos a ficar em casa. Foi um susto que a gente levou. “Mas eu preciso fazer alguma coisa, eu quero contribuir. Eu não posso ficar inerte vendo as pessoas em situação de rua”. Esta conexão entre as pessoas é muito importante, é o que tem de ficar. Romper o preconceito. A partir deste momento, as soluções vão acontecendo. Aquela pessoa que está na frente da minha casa, a partir do momento em que eu rompo o preconceito, converso com ela, aprendo o nome dela, eu consigo um contato qualificado com aquela pessoa. Pode ser que aquela pessoa nunca vá sair da rua, mas ela começa a ter dignidade. E eu acho que esse é o grande lance que nós temos de defender, que é o direito à cidade com dignidade. O poder público pode não ter espaço pra toda essa gente, mas tem de proporcionar condições de viver dignamente. Temos de qualificar os albergues existentes e investir em políticas efetivas de porta de saída, que são: habitação – que inclui locação social, aluguel, moradia primeira, repúblicas, que são uma grande saída. E há as políticas de apoio, como os restaurantes populares. Banheiros públicos.

RP: O que pode fazer quem quiser se envolver positivamente?

AC: Nós temos no Brasil um problema recorrente que é a distribuição de renda. Precisamos mudar urgentemente esta cultura, precisamos distribuir renda. Para isso, é preciso fazer distribuição de terras, investir em moradias, é preciso pensar numa renda básica, sim – essa experiência da renda de R$ 600 reais foi fantástica, ajudou muita gente, pena que é temporária. Nós estamos defendendo taxar as grandes fortunas, acho importantíssimo. E por que não efetivar uma reforma agrária que valorize a agricultura familiar? A questão das drogas: a gente tem dito que é preciso descriminalizar, não dá mais pra continuar do jeito que está. Hoje você tem mais de 40% dos presos que não passaram por nenhum juiz. Eu fiquei muito contente esses dias com uma funcionária pública que fez uma intervenção no centro de São Paulo, a guarda municipal e a equipe de limpeza estavam retirando as barracas da calçada, essa funcionária pegou o decreto e disse: “Olha, vocês não podem fazer isso”. Ela conseguiu que aqueles funcionários da prefeitura não fizessem uma injustiça. Isso é superimportante, essa proatividade contra a violência. Qualquer forma de violência, a gente não pode aceitar. E a outra coisa: se aproximar. Não ter medo. Olhas essas pessoas em situação de rua como seres humanos. E nós temos muitas organizações sérias, instituições: vá, se aproxime, dá pra você fortalecer ações transformadoras.

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