Chile, 11 de setembro: rememorar para não esquecer
No dia 11 de setembro de 1973, em um país sul americano de tradição democrática, a experiência única de um governo socialista pela via eleitoral foi brutalmente interrompida. Três anos após o socialista Salvador Allende vencer as eleições à presidência da República do Chile, o Palácio de La Moneda foi bombardeado pelas Forças Armadas do país. As imagens dos aviões lançando bombas sobre Santiago, como numa guerra entre nações, correram o mundo que, mergulhado na Guerra Fria, convivia com a ameaça iminente de conflito generalizado. As cenas de destruição, o aterrador exibicionismo de poder, assim como o último discurso do presidente veiculado por uma emissora de rádio, horas antes do bombardeio, estão hoje disponíveis na internet, entre outros testemunhos desta tragédia memorável.
Este episódio deu início a uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, que durou 27 anos. Cidadãos que apoiaram Allende desde a campanha eleitoral foram presos, torturados, assassinados com a justificativa de salvaguardar o país do “perigo comunista”. Entre os perseguidos pela ditadura estiveram os músicos da Nueva Canción – movimento de renovação do cancioneiro folclórico chileno com forte engajamento político. Artistas como Vitor Jara, Angel e Isabel Parra, filhos de Violeta, e os grupos Inti-illimani e Quilapayún, para citar alguns, participaram ativamente da corrida eleitoral, e com a vitória da Unidade Popular – coalizão de esquerda que apoiou a candidatura de Allende –, engajaram-se na construção de um Chile socialista, colocando sua arte a serviço da conscientização política. Para se ter uma ideia do protagonismo da música na conformação do socialismo chileno, a produção de discos passou de 2.859.000, antes de 1970, para 6.307.000, em 1971.
Com o golpe, a Nueva Cancion Chilena foi censurada, proibida de ser executada – flautas, quenas e charangos, estavam impedidos de soar; o folclore do norte não era mais música chilena, o Quilapayún era responsável pela divisão que apartava a juventude do país. O músico e dramaturgo Vitor Jara esteve entre os presos e assassinados no Estádio Chile. Os grupos Inti-illimani e Quilapayum, em turnê pela Europa nesse momento, por lá ficaram, iniciando um longo exílio e atuando em movimentos de resistência e solidariedade às vitimas da ditadura.
Embora se fale muito de um apagão cultural no Chile, durante o regime militar, as peñas não esmoreceram. Lugar de origem da Nueva Cancion Chilena, onde outrora se reuniam intelectuais e artistas de esquerda, em torno de apresentações musicais, estes espaços continuaram existindo de forma mais ou menos subterrânea. Além de propiciar uma fonte de renda para aqueles que se viram sem possibilidades de sobreviver de sua arte, nas peñas passaram a se juntar os descontentes dispostos a exercer a oposição ao aparato cultural imposto pelo governo. É neste ambiente que surge um novo movimento musical, o Canto Nuevo, cujo repertório variado, sem caracterizar-se por gênero determinado, estava comprometido com a resistência enfrentando a censura.
Para além do espaço quase privado das peñas, expondo-se às forças repressoras, estes jovens artistas participavam de todo tipo de tribuna de protesto contra o regime, desde sindicatos, paróquias de igrejas e o próprio movimento estudantil. Juntos atuavam nas zonas marginais da cidade de Santiago, as poblaciones, cada vez mais abandonadas pela política neoliberal. Como outros tantos que permaneceram no Chile, entre combatentes quase anônimos, lutaram contra uma política econômica excludente, que tratava com truculência seus opositores.
Silenciada durante os anos de ditadura, a Nueva Cancion Chilena atravessou as cordilheiras e foi alimentar a luta pela redemocratização em países que viviam as mesmas agruras dos golpes militares. Com a canção de protesto brasileira sob a vigilância da censura, os timbres andinos, como uma espécie de código sonoro não reconhecido pelo inimigo, nutriam de energia as manifestações públicas, abrindo espaço para a indignação e repúdio às ditaduras do cone sul. Cantar e escutar este repertório com arranjo de vozes masculinas e femininas de grupos como Tarancón e Raízes de América resultava numa catarse coletiva ávida pela redemocratização.
Com o passar dos anos, a data de 11 de setembro, comemorada pelo Chile oficial como a libertação do povo contra o julgo marxista, foi reivindicada pela oposição como forma de reparação da memória. Contribuindo para a desconstrução desta narrativa, setores organizados da sociedade civil, passaram a ocupar as ruas iniciando uma acirrada disputa pelo “11”. Para a resistência, não se tratava de comemorar, mas rememorar, recordar as vítimas da repressão cujos números cresciam cotidianamente e que o marco oficial insistia em estigmatizar e apagar de sua história.
Estas mobilizações de rua lançaram mão de performances artísticas as mais variadas, desde grafites até canções e dramatizações cênicas, criando uma tradição da arte de protesto no Chile, retomada, recentemente, pelas novas gerações que mais uma vez tomam o espaço público como lugar de luta contra os resquícios desta ordem conservadora que ganha novo fôlego com a globalização da política.
Como bem afirmou o chileno Carlos Maldonado, encarregado da frente de cultura do Partido Comunista, em 1972: “cultura não é um adorno, nem um mero passatempo para ociosos. Cultura é a capacidade de um povo construir seu futuro de acordo com as peculiaridades de seu meio, de seu próprio pensar, sentir e fazer.”
Tânia da Costa Garcia é professora do Departamento de História da Unesp