Com fina ironia, fazendo referência ao período colonial em que os nativos dos países subordinados eram tratados como espécies exóticas, o economista e professor da Unicamp Mariano Laplane descreveu o espírito e a lógica que movem a condução da política no Brasil dos tempos bolsonaristas. A crítica foi feita durante debate realizado na noite de sexta, 14 de agosto, pelo Observatório da Coronacrise:

“No Brasil, e em alguns outros poucos lugares da América do Sul, encontramos os últimos exemplares de neoliberais em estado selvagem. Mesmo os neoliberais em outros lugares do mundo passaram por algum tipo de banho de realidade desde a crise de 2008. Ninguém defende, no mundo civilizado, loucuras como o teto dos gastos. Não há quem acredite que esse seja o caminho da recuperação”, afirmou.

O debate realizado na noite de sexta, mediado por Marcio Jardim, diretor da Fundação Perseu Abramo, teve por tema “Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) no combate às desigualdades”. Tanto Laplane quanto os outros convidados, Luiz Antonio Elias, ex-secretário executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação no governo Lula e atual coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPP-CTI) da Fundação Perseu Abramo, e a cientista Ana Tereza Vasconcelos, do Laboratório Nacional de Computação Científica, criticaram o desmonte da área pública de ciência e pesquisa que vem sendo feito desde 2016 no Brasil, e reivindicaram a retomada dos investimentos e da coordenação de esforços no setor.

“Frente às questões, a elite econômica brasileira sempre procura uma adaptação fácil, conservadora, que mantenha as coisas no lugar. Mas se há algo que a pandemia, essa tragédia, nos traz, é que o espaço para acomodação é extremamente limitado. Nossa elite, mais uma vez, nos traz uma lista de reformas ‘urgentes e inevitáveis’ e que supostamente vão colocar o Brasil novamente no caminho do crescimento e do desenvolvimento. Curiosamente, um discurso modernizante, mas completamente anacrônico”, completou Laplane.

A saída, segundo os três especialistas, é a retirada do teto de gastos e a revisão completa da política fiscal, que estão estrangulando os investimentos públicos e, como consequência maior, levando ao aumento da desigualdade social brasileira. Para Elias, o modelo em uso no Brasil é falido:

“Em 2019 recuamos uma década em nosso produto interno bruto. Teremos uma queda de 6 a 7% em 2020, nas previsões ainda otimistas, baixando a níveis de 2007, ou seja, recuaremos 15 anos. Temos uma queda na oferta e na demanda e taxas de investimento em torno de 13% a 15%, incompatíveis e insuficientes para garantir o desenvolvimento para um crescimento do produto de 3% ao ano, que poderia nos recolocar num quadro de maior inclusão e para aproveitar a brecha do mercado internacional”, afirma o Elias.

Para enfrentar este quadro, o especialista chama a atenção para propostas contidas no Plano de Reconstrução Nacional preparado pela Fundação Perseu Abramo, por intermédio de seus NAPPs: recolocar a política industrial em diálogo com a ciência e a tecnologia numa política que amplie a capacidade de compra de conteúdo local; retomar as políticas desenvolvidas nos governos Lula e Dilma de robustecimento dos bancos públicos de fomento e fortalecendo as cadeias de inovação, via formação de recursos humanos e capacitação laboratorial.

“No início do governo Lula havia quatro frentes de expansão: crescimento com distribuição de renda; matriz de expansão fundada em infraestrutura e petróleo; melhor uso dos recursos naturais e radicalização das políticas sociais, com combate à pobreza”, lembra Elias. “Hoje, o que temos é um ajuste fiscal autodestrutivo que reduz a efetividade das políticas, a destruição dos elementos que eu chamo de inclusivos e soberanos, quer pela reforma trabalhista, quer pela reforma da previdência; uma abertura comercial unilateral que amplia a nossa brecha tecnológica; a diminuição do papel dos bancos públicos; desmonte do setor de petróleo e gás, e a manutenção do teto dos gastos”.
“A necessidade de revogação do teto e das políticas fiscais é inequívoca”, crava o coordenador do NAPP-CT&I.

Para a pesquisadora Ana Tereza, a tragédia do coronavírus só não é maior por causa da estrutura herdada do período dos governos Lula e Dilma, quando, segundo ela, havia um aumento constantes dos investimentos em educação e formação de estudantes da área e na expansão da estrutura da rede de laboratórios no Brasil.

Ana destaca que a rápida resposta apresentada pela área científica brasileira após a chegada do novo coronavírus ao país – não aplicada como deveria pelas autoridades, diz – foi em grande parte mérito de alunos de pós-graduação que, mesmo tendo perdido o financiamento das bolsas de pesquisa, envolveram-se voluntariamente no trabalho nos laboratórios.

“Houve queda no número de pessoal especializado nos laboratórios. Mas vinha havendo, até 2016, um investimento constante em equipes e em estruturas de laboratórios, capazes de responder a várias pandemias. Tínhamos uma rede de laboratórios que durante um tempo teve sua capacidade instalada ampliada. No meio do desmonte, quem tomou frente neste trabalho em sua maior parte foram os alunos de pós-graduação, que sofreram cortes no ano passado. Foram esses alunos, mesmo sem bolsa, que foram para a pandemia realizar esses testes”, conta.

Para Laplane, “o número de mortos no Brasil demonstra que o custo de continuar levando as coisas como estão é extremamente elevado. O conhecimento científico e a tecnologia podem ajudar? Podem. Isso parece novidade, não é? Mas precisa ser dito. O pensamento mágico, superstição, ocupa um espaço no debate público e na mente das pessoas inimaginável. Agora, vejam, não se trata apenas de produzir conhecimento. O conhecimento tem de chegar onde de fato faz diferença, onde contribui para a diminuição da desigualdade, onde gera bem-estar”.

“O nosso sistema de ciência e tecnologia já demonstrou, em diversas oportunidades, que é capaz de gerar conhecimento, gera pesquisadores de qualidade. Este potencial é resultado do acúmulo de décadas de alocação de recursos, especialmente públicos, que o Brasil fez. E este sistema, construído de maneira tão penosa e trabalhosa, é um ativo riquíssimo que o Brasil possui e que poderia muito nos ajudar. E infelizmente este sistema se encontra hoje sob ameaça: estrangulamento de recursos, falta de coordenação e sob ataque ideológico. Isso é uma tragédia. Na hora que dele precisamos, não há nenhum movimento em direção a isso, ao contrário. É urgente retomarmos o bom-senso”, defende Laplane.

“Muito ruim a gente ainda ter de debater, de argumentar, que ciência e educação é o que vai levar um país pra frente”, lamenta Ana Tereza. “Mas em qualquer país desenvolvido do mundo são os investimentos do Estado, do governo, que puxam o investimento na área”.

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