É difícil afastar alguma imagem idílica quando se é um estudante de antropologia e se vê chegando a um dos últimos lugares alcançados pelo “homem branco”. Conhecer pessoas fantásticas apenas reforça essa dificuldade. Ainda mais quando se tem interesse por viagens, desbravamentos, pescarias, em suma, a “natureza” de um lugar como o Alto Xingu. Principalmente, quando se chega a tal lugar com o intuito de estudar uma das mais fascinantes manifestações da “cultura” indígena, o ritual pós-funerário egitsü, mais conhecido como kwarup.

Celebração em homenagem aos grandes chefes falecidos, o kwarup é tema de dedicado interesse não apenas pela antropologia, mas para a literatura, jornalismo e matérias audiovisuais que são impactadas pela opulência das imagens, das cores, da intensidade das atividades realizadas. A beleza cenográfica é potencializada pela tensão que paira no ar nesse momento definidor das relações interétnicas, ocasião quase única em que os nove povos que compõem esse complexo regional multiétnico e multilinguístico estão em um mesmo lugar ao mesmo tempo. Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib); Wauja, Mehinaku, Yawalapiti (aruak); Kamayurá, Aweti (tupi) celebram através de danças, cantos, oferendas alimentares, trocas matrimoniais e discursos rituais proferidos em ocasiões específicas e determinadas.

Tensão e expectativa que emanam emoções coletivas naquele que é o ápice do evento: a luta ritual (kindene), popularmente conhecida como huka-huka. Os confrontos ocorrem entre os anfitriões, aqueles que homenageiam seus entes falecidos, contra os povos convidados, separados entre si. Os combates corporais são intensos, um tipo de luta agarrada em que o vencedor é aquele que toca a parte de trás da perna do adversário ou aplica algum golpe de arremesso. Apesar dessa aparente simplicidade, uma enormidade de golpes, técnicas e táticas é decisiva para o desenvolvimento dos combates, algo que só é conseguido por poucos lutadores dispostos a enfrentarem longos períodos de isolamento e privação, de treinamentos físicos, espirituais, cosmológicos.

E, como em toda arte marcial, é fundamental para essa ascese na formação dos grandes campeões a existência de um mestre. Infelizmente, nessa época de intensos ataques sofridos pelas populações indígenas do Brasil, o Alto Xingu perde seu maior mestre daquela que, sem dúvida, é uma de suas principais especificidades étnicas. Hekine Kalapalo, reconhecido regionalmente por ser o maior lutador da kindene, faleceu na noite da última quinta (09/07). Nesse momento em que os rituais do kwarup estão sendo adiados por alguns povos como medida de isolamento para conter o corona-vírus, uma notícia como essa impacta decisivamente, ainda mais por não ser o primeiro caso.

Quando alguém como Hekine se vai, não se perde apenas um grande ser humano, uma figura caricatural, no melhor sentido que a expressão poderia assumir. Um senhor imponente, que na aldeia evitava ao máximo usar roupas de caraíba, falava alto e incisivo, contrastando com o tipo ideal calmo e resiliente alto-xinguano. Esse seu diferencial era exatamente por conta daquilo que não se repõe: seu conhecimento, sua experiência, sua capacidade de transmitir aos mais novos tudo aquilo que viveu e aprendeu ao longo de uma vida dedicada ao seu povo e modo de vida. Hekine era uma enciclopédia, o verdadeiro kindoto, isto é, um “dono de luta”, um campeão, um mestre sempre disposto a ensinar os mais jovens. Sua generosidade em passar os conhecimentos técnicos, golpes e táticas da luta não exigia contrapartida. Uma roda de homens para fumar no centro da aldeia já bastava para que ele chamasse os atuais lutadores e demonstrasse as aplicações dos golpes mais decisivos. Costumeiramente rodava todos os lutadores apresentando movimentos que pareciam não se esgotar. Não sem a admiração incontida dos que estavam presentes: “mestre!”.

Em meio a ataques que parecem efetivar o desejo manifesto do atual governo de destruição dos modos de vida tradicionais, de vetar acesso a água potável, atendimento de saúde diferenciado e mesmo cestas básicas para as populações indígenas. Na valência de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) na Amazônia, que viu o desmatamento e as queimadas aumentarem em níveis ainda não registrados. Na manutenção de trabalho escravo e sem as menores condições sanitárias mesmo em tempos de pandemia. Na tentativa absurda da recriação de um “gueto de Varsóvia”, proibindo a população indígena de adentrar na cidade mais próxima. Na boiada que vai passando conforme deixa em seu rastro destruição e mortes. No andamento desse genocídio programado, que retira nosso fôlego, a morte de grandes líderes como Hekine é uma perda difícil de se mensurar.

Na conjuntura determinante da luta dos povos indígenas, o Alto Xingu está em luto por seu maior lutador. O que se agrava ao saber que nem mesmo os rituais funerários essenciais para os familiares e falecidos homenageados deverão ocorrer – o que seria a atitude mais prudente a ser tomada, muito embora isso deva ser decidido pelas próprias famílias. Fica, então, aquele que tive como seu maior ensinamento, expandindo sua força nesse momento em que se desenha institucionalmente o genocídio indígena em todo o Brasil. O ensinamento de uma luta que não apenas metaforicamente se transfere para o contexto político, mas na demonstração em sentido próprio do sentimento de permanência do modo de vida indígena: “nhaheni agike, telo bala elei!” (lute forte, eles são outros!).

Etekeha, mestre! Adeus, mestre!

Este texto não reflete necessariamente a posição da Fundação Perseu Abramo.

 

`