As engrenagens de lutas duradouras
Maio é um mês muito importante para a luta dos trabalhadores e trabalhadoras em todo o mundo. No Brasil, maio carrega o espírito de batalhas memoráveis, como as que ocorreram na segunda metade dos anos 1970, no chamado Novo Sindicalismo.
Segundo lembrou Augusto Portugal, em live (assista a íntegra abaixo) com o ex-presidente Lula, Wagner Santana, Paulo Okamoto e Annez Andraus Troyano, realizada no dia 12 de maio, naqueles anos a alegria venceu o medo.
Portugal, ex-metalúrgico da Scania, estava ali no ABC paulista em 1977, junto de Gilson Menezes(1)– primeiro prefeito eleito do PT, em Diadema. Eles participaram, naquele ano, da organização da campanha salarial que trazia na pauta um aumento de 34,1%.
Annez Troyano era técnica do Dieese em 1978, assessora da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos. Segundo rememorou na live com Lula, o arrocho salarial atingia em cheio a classe trabalhadora. Os dados econômicos não eram confiáveis, o governo controlava e manipulava os números favorecendo a si e ao patronato. Até que, em determinado momento, o ministro da Economia da época, Henrique Simonsen, elaborou um relatório ao Banco Mundial reconhecendo a taxa do custo de vida real calculado pelo Dieese, e o fato ganhou visibilidade nacional por meio da imprensa.
Naqueles anos duros, os trabalhadores viviam um forte arrocho, que se traduzia na incapacidade de viver com dignidade. A coragem e o medo eram faces de uma mesma moeda.
Repressão bruta e sistemática desceu sobre o lombo do povo brasileiro desde a instalação do AI-5, em dezembro de 1968. Jovens estudantes, camponeses boias frias, artistas, religiosos, sindicalistas, militares opositores ao golpe de 1964, professores, intelectuais, cientistas e lideranças populares estavam na mira do governo da ditadura civil-militar.
Como organizar um movimento grevista que surtisse efeito? Como convencer os operários daquela região que logo se tornava uma das mais importantes da indústria moderna?
Essa história está contada num livro especial, A história da luta dos trabalhadores da Ford (clique aqui para baixar), lançado pela Fundação Perseu Abramo em 2016, organizado por Betão e Bagaço, dois operários que compuseram a primeira comissão de fábrica da Ford. Neste livro, é possível acompanhar os bastidores da luta por meio de testemunhos coletados entre os vários protagonistas daquela cena, como nesse trecho:
“[…] Em 1978, uma paralisação na Scania se espalha por outras fábricas do ramo metalúrgico, inclusive a Ford, num grande movimento que marcou o nascimento do chamado Novo Sindicalismo: um sindicalismo que busca, entre outras coisas, autonomia e liberdade sindical, em oposição ao sindicalismo constituído desde a Era Vargas, que era braço do Estado, e que tem fortemente marcado os valores democráticos.” (A história de luta dos trabalhadores na Ford, 2016, p.32).
Em nestas outras duas passagens aqui: “Daí a greve de 1978 ter sido tão bonita, porque foi a partir dela que nós começamos a acreditar no nosso poder de mudar as coisas, que finalmente poderíamos ter dignidade. E nós vibrávamos!” (p.34). “É bem verdade que os metalúrgicos do ABC, sobretudo os da Ford, não pararam de lutar durante a Ditadura. Porém, foi a partir da greve de 1978 que o movimento atingiu repercussão nacional. Essa greve foi o início de um ciclo grevista que não iria terminar tão cedo… (p.35)
Assim, na sexta-feira 12 de maio de 1978, a Scania parou. Para dar certo dentro da fábrica, foi preciso construir a greve com inteligência, de modo a driblar os limites impostos pela Lei 4.330, que regulava o direito de greve e classificava praticamente qualquer greve como ilegal.
Após a greve dos operários da Scania, o movimento recebeu o apoio dos operários da Ford, Mercedes-Bens, Volkswagen e daí se alastrou por todo o ABC paulista, São Paulo e Osasco. As imagens destas assembleias massivas da Vila Euclides estão amplamente documentadas e correu mundo afora. Fotógrafos da imprensa da época registraram esses dias incríveis em imagens reunidas no livro “Máquinas paradas, fotógrafos em ação”, lançado pela Fundação Perseu Abramo em 2017(2). Segundo Augusto Portugal, a participação do jornalista Julio de Grammont(3) foi fundamental para convocar a imprensa para estar em frente a Scania naquele 12 de maio.
Entre maio e junho de 1978, mais de 500 mil trabalhadores foram mobilizados na região do ABC, na capital paulista e em Osasco. A novidade estava na forma de se encontrar e se comunicar com a base sindical, conforme nos lembra o presidente Lula, os dirigentes saíram da sede e foram ao encontro dos trabalhadores. Jornais e boletins circulavam nestes encontros, dirigentes e militantes com exemplares embaixo de seus uniformes, sabiamente distribuídos pelos banheiros da fábrica, nos intervalos e em conversas que estimulavam os trabalhadores. Não se tinha hora para fazer trabalho sindical, como lembra o presidente Lula. Assembleia no sindicato, somente para decisões previamente discutidas em assembleias em cada local de trabalho.
Paulo Okamoto, hoje presidente do Instituto Lula, era um jovem metalúrgico da Brastemp e participante ativo das luta desde 1978. Lembrou que a pauta começou concentrada na reposição salarial, mas logo se tornou embrião para outras mobilizações, mais politizadas, que favoreceu o entendimento da realidade. Rompeu-se, assim, o clima de medo que a lei antigreve emanava. E partir da ferramentaria das fábricas, ampliava-se o movimento.
Segundo Okamoto, as greves de 1978, 79 e 80 formaram politicamente uma geração de trabalhadores organizados que, juntos de outros trabalhadores e trabalhadoras organizados em pastorais religiosas, criaram uma nova prática política a partir da base. Diz que, sem esse movimento, provavelmente a ditadura demoraria mais para acabar.
Wagner Santana, o Wagnão, hoje presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, é filho de operário e lembra como seus pais discutiam sobre os idos de 1978. Destacou que um congresso da categoria (1978) decidiu sobre a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do mesmo modo que favoreceu o ambiente de criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e a luta pelas diretas.
O PT, por sua vez, foi criado como síntese(4) política de sindicalistas ligados à indústria metalúrgica, bancários, petroleiros, professores, trabalhadores rurais (também organizados, posteriormente, na criação do MST, em janeiro de 1984), lutadores remanescentes da resistência armada(5) e da resistência não armada, intelectuais, educadores e militantes sociais das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, entre outros.
Segundo Augusto Portugal, o novo sindicalismo do ABC, associado aos trabalhadores do campo e outras categorias que começavam a se organizar a partir dali, formando um movimento que arrombou a porta da transição lenta, gradual e segura. Conseguiram, assim, derrubar a ditadura sete anos depois (1985), criar condições para formação de uma Assembleia Constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988 e participar ativamente da luta política e social que culminou na eleição do presidente Lula, em 2002.
Como nos diz o presidente Lula, é através da política que se transforma a realidade da classe trabalhadora, além das questões econômicas que permeiam a luta sindical imediata. Daí a necessidade de se criar um partido político, como foi o PT, sujeito histórico da luta pela democracia após 21 anos de opressão ditatorial.
É necessário, segundo propõe o presidente Lula ao Wagnão Santana, descobrir maneiras novas para exercer a representação e reconquistar o orgulho que os trabalhadores tinham de se identificar como trabalhadores, feito o que se viu naquele período anterior.
Os desafios são grandes diante do neoliberalismo presente nas relações econômicas, políticas e sociais, aprofundadas no Brasil depois do golpe sofrido pela companheira Dilma Rousseff e hoje com o lamentável governo de Jair Bolsonaro (sem partido). A pandemia do novo vírus nos afasta, mas a luta não pode parar, é preciso buscar alternativas.
Com determinação, organização – a exemplo do que ocorreu há 42 anos no ABC paulista – precisamos somar com a formação na busca constante pelo conhecimento da história de exploração nosso povo. Só assim será possível vencer novamente e ampliar direitos e conquistas.
Notas:
(1) Gilson Menezes (1949-2020), metalúrgico e líder sindical, governou a cidade de Diadema por dois mandatos consecutivos pelo PT (1983-1988), e depois, em 1997, retornou ao governo municipal eleito pelo PSB. Faleceu em 23 de fevereiro de 2020.
(2) O título homenageia o filme “Braços cruzados, máquinas paradas” (1979), dirigido por Roberto Gervitz, Sérgio Toledo.
(3) Júlio de Grammont (1952-1998) foi militante e dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT). Preso durante a ditadura civil-militar, formou-se em Jornalismo e trabalhou em diversos veículos de imprensa. Assessorou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a Prefeitura de Diadema e Lula, contribuiu com a imprensa sindical e participou da criação da estrela, logomarca do PT.
(4) Sobre esse período, sugerimos visita ao acervo do Centro Sérgio Buarque de Holanda (clique para acessar), da FPA. Textos, cartazes, fotografias podem ser acessados virtualmente. Em especial, sobre essa passagem dos anos 1970, indicamos uma coletânea de documentos publicada na Revista Perseu, edição número 3 (2009). Para baixar a revista, clique aqui.
(5) Há um extensa bibliografia disponível sobre a resistência armada e não armada à ditadura civil-militar no Brasil. Neste segundo grupo, notamos a presença, por exemplo, de grupos trotskistas oriundos do movimento estudantil, da luta cultural e da imprensa alternativa. Sobre esses assuntos, sugerimos a leitura de Jacob Gorender, Marcelo Ridenti, Marco Aurélio Garcia, Jean Sales, Dainis Karepovs e Bernardo Kucinski, entre outros.
Assista à entrevista que motivou este texto: