O papel do Judiciário em tempos de crise
Como solução para a crise, governo e Congresso Nacional tomaram diversas decisões que afetam as relações jurídicas no Brasil. No entanto, como há algum tempo, o Judiciário prova ter sido criado para proteger o sistema econômico, e não as pessoas.
A crise causada pela pandemia da Covid-19 mudará a história da civilização. Qualquer grande impacto na sociedade gera uma necessidade de reação automática do Poder Judiciário. Foram inúmeras as iniciativas apresentadas que afetam sobremaneira as relações jurídicas, e o posicionamento dos juízes das diferentes instâncias e tribunais é fundamental para garantir algum cenário de estabilidade.
De pronto, abriu-se um enorme debate a respeito das relações de trabalho no Brasil. Nesse aspecto, há de se separarem as problemáticas envolvendo os trabalhadores informais dos trabalhadores que ainda resistem na formalidade. As iniciativas dos governos Temer e Bolsonaro foram no sentido de ampliar a informalidade, na medida em que desregulamentaram o mercado de trabalho, dando à informalidade praticamente uma estabilidade jurídica inaceitável num sistema democrático.
Os trabalhadores informais, em 2019, atingiram 41% da ocupação no Brasil, o que significa 38,4 milhões de pessoas. Esse enorme contingente populacional foi lançado a uma gravíssima situação de vulnerabilidade social, maior do que em tempos de “normalidade”. Isso porque as medidas restritivas, necessárias para a sobrevivência, afetam imediatamente a renda dessa enorme fatia da população. O governo, em vez de apresentar soluções imediatas para essa crise que, em parte, foi criada por ele próprio – apenas em 2019 mais de um milhão de pessoas viraram informais -, ataca as medidas restritivas, ameaçando ainda mais a sobrevivência.
Se a dignidade da pessoa humana está no primeiro escalão dos direitos tutelados pelo ordenamento brasileiro, esse elemento já é, por si, de uma gravidade jurídica sem precedentes. Rebocado por forças além do Planalto, o governo praticamente foi obrigado a adotar medidas imediatas de transferência de renda. Essas medidas ainda não apresentaram resultados porque ainda são muito recentes. Mais do que isso, essa situação precisa orientar um reposicionamento urgente da sociedade brasileira. Não é possível que se assuma como aceitável o aumento exponencial da vulnerabilidade social através da adoção de medidas que estimularam o trabalho informal. A crise da Covid-19 ameaçou, e ainda ameaça, lançar um contingente populacional enorme à miséria. Tratar de segurança jurídica é, em primeira medida, tratar da proteção dos direitos essenciais, entre eles o da dignidade da pessoa humana.
Em outra trincheira estão os trabalhadores formais. Imediatamente após o início da paralisação da atividade de diversas empresas, a discussão que se iniciou foi no sentido de possibilitar a suspensão do pagamento dos salários. Mais uma criminosa discussão. São inúmeros os projetos de lei que correm no Congresso Nacional no sentido de abrir o precedente. Recentemente foi editada a Medida Provisória 936, que abre a possibilidade de um acordo individual entre empresa e trabalhador para definir a redução de salário.
Provocado, o ministro Ricardo Lewandovski decidiu que o sindicato pode discordar do acordo e assim ele não teria validade. Impressionante como os valores jurídicos se invertem tanto na lógica da proteção social quanto na própria lógica do ordenamento jurídico. É direito social consagrado a irredutibilidade de salários. No entanto, o ministro achou por bem não discutir a questão e apenas abandonar o sindicalismo na luta contra o poder econômico que considera razoável reduzir salários dos trabalhadores que não possuem outra alternativa de subsistência em tempos de isolamento social.
Há uma profunda inversão dos valores prioritariamente protegidos nesse contexto. Fica mais do que explícita a visão dos poderes instituídos que, em tempos de profunda crise sistêmica, correm para proteger os interesses econômicos em detrimento da força de trabalho que garante a existência da sociedade. A proteção da propriedade e subsistência dos meios de produção ganha absoluta prevalência com relação à proteção da vida. Mas, verdade que se diga, o Judiciário não faz isso sozinho. Todo poder instituído apresentou alguma alternativa de ponta cabeça. Talvez esse texto pudesse ser resumido com a simples constatação de que segurança jurídica serve para proteger o capitalismo, a propriedade e o mercado.
Outra questão relevante diz respeito à contradição inventada entre equilíbrio fiscal e investimento social. Também ao longo dos últimos anos, foram inúmeras iniciativas dos governos Temer e Bolsonaro no sentido de implementarem medidas que praticamente inviabilizam a despesa pública. Agora, todas as medidas precisaram ser flexibilizadas. É impressionante como os partidos do campo progressista e os movimentos sociais, ao longo desse período, denunciaram sistematicamente o perigo dessas medidas e agora elas são todas flexibilizadas sem que ninguém se lembre de que a população foi exaustivamente alertada de mais essa inversão de papéis. Decretaram calamidade pública com a finalidade de afastar a incidência da aclamada lei de responsabilidade fiscal. Se responsabilidade fiscal fosse tão importante assim, ela protegeria a calamidade pública, e não precisaria ser afastada.
Tempos de crise tão profunda servem para que se perceba a quem atende o sistema institucional as leis e o Poder Judiciário. No caso da responsabilidade fiscal, o ministro Dias Toffolli correu para dar liminar no sentido de proteger o governo nas medidas que servem para distribuir dinheiro ao SUS e renda ao povo. Em resumo, regulamentou a possibilidade de o governo descumprir uma lei para proteger as pessoas. Se é necessário afastar uma lei para que seja possível a proteção das pessoas, para que essa lei realmente serve?
Ainda, há uma enorme discussão a respeito do direcionamento do fundo eleitoral e do fundo partidário para o combate à pandemia. Em resumo, defende-se que “todo mundo precisa fazer sua parte na crise”. Isso representaria três bilhões de reais. Apenas em 2019, o SUS perdeu vinte bilhões do seu orçamento em virtude do aclamado teto de gastos. O próprio governo declarou que o combate à pandemia custará mais de 220 bilhões aos cofres públicos. Ou seja, os três bilhões dos fundos de financiamento dos partidos representam muito pouco perto do volume necessário. Mas a gritaria envolvendo isso não é, de nenhuma forma, proporcional ao tamanho daquilo que seria a solução. Indo além, outra inversão de valores. Isso porque esses fundos servem para financiar as iniciativas partidárias e em muita medida, protegem a própria democracia das doações empresariais que já causaram tanto mal ao Brasil.
É impressionante como muitas pessoas correram para atacar o fundo imediatamente após o início da crise. A quem serve esse ataque? Suspender o fundo eleitoral significa inviabilizar a realização das eleições de 2020. A quem serve a interrupção do processo democrático? Não por acaso, um juiz do Distrito Federal deu liminar para suspender os fundos. O mesmo juiz que proibiu a posse de Lula como ministro da Casa Civil em 2016. O mesmo juiz que fez postagens em suas redes sociais com “Fora Dilma” e de fotos com o adesivo da campanha de Aécio Neves em 2014. Tudo isso é coincidência?
É verdade que a decisão não deverá ser mantida, de tão estapafúrdia e miserável. Mas nesse caso fica a lição de que, na crise, a proteção das grandes empresas, a questão fiscal e a flexibilização da democracia aparecem incrivelmente antes da proteção à vida, à dignidade humana e à própria democracia.
Evidentemente é impossível esperar que o Judiciário seja a força motriz do reposicionamento das ideias absolutamente fora do lugar que representam o direito brasileiro. Mas não é possível que se desista de que o mínimo de humanidade, bom senso e respeito à democracia (até aquela que traz resultados com os quais você não concorda) não seja esperado do Poder Judiciário. Começou mal, mais uma vez.