Leia abaixo a entrevista Luigi Ferrajoli para Fausta Speranza, publicada no “L’ Osservatore Romano” em 18 de abril 2020 e traduzida por Paola Ligasacchi.

“O horizonte pós pandemia na reflexão de Luigi Ferrajoli: Uma Constituição global mais forte que os mercados”

Em um mundo global que tende a redistribuir a força política e a riqueza concentrando-as para os países mais ricos, o resultado da crise da pandemia Covid-19 colocou em crise a interdependência mundial por um tempo que ainda não sabemos quanto será, mas principalmente evidenciou a prova decisiva sobre o desafio de nossa época. Não são apenas os sistemas sanitários ou a viabilidade internacional que devem ser discutidos por causa dessa pandemia. A longa onda do tsunami do coronavírus deixa entrever sérios contragolpes para a economia e sacode os fundamentos liberais em que nos baseamos há décadas. Faz tempo que se fala de uma globalização que não pode continuar sem uma governança global. Basta considerar a multiplicação de conflitos e a abertura da lacuna de desigualdade social em praticamente todas as áreas geográficas, enquanto apenas a internacionalização das organizações ilícitas não conhece crise ou recessão. Se faz necessária a exigência de uma forma conceitual nova e operativa que seja inédita para a regulamentação em escala mundial, que possa tutelar os princípios dos bens comuns. Para refletir sobre esses temas, entrevistamos Luigi Ferrajoli, jurista, ex-juiz, professor universitário e filósofo do direito, que há anos leva adiante seus estudos sobre uma “Constituição global”.

No seu pensamento, que espaço ocupam os valores da saúde e o possível contraste do atual nível de desigualdade no mundo, onde um por cento da população mundial detém 99 por cento da riqueza? E o que nos pode ensinar a pandemia do Covid-19?

O direito à saúde é um direito fundamental, estabelecido nas constituições dos Estados mais avançados, mas também em muitas cartas de direitos humanos. A agressão à saúde e à vida pelo coronavírus com o seu terrível resultado cotidiano de mortos no mundo todo, deixou mais claramente visível e intolerável em relação a qualquer outra emergência, os custos da falta de instituições adequadas que garantam os direitos vitais e a necessidade de uma Constituição da Terra que possa sanar essa falta ou deficiência. Mais que qualquer outra catástrofe, essa rende porque é mais urgente. E também a necessidade de sanar essa lacuna passa a ser mais compartilhada universalmente. E depois há uma outra razão mais específica que distingue esta emergência de todas as outras e impõe sua gestão como uma questão global: não apenas a garantia da igualdade pelo direito à vida e à saúde de todos os seres humanos, mas também a eficácia das medidas adotadas, que depende da sua coerência e homogeneidade. Entretanto, os países da Terra se movem, cada qual com estratégias diferentes, com o perigo que as medidas inadequadas ou intempestivas de alguns possam reabrir a contaminação para todos os outros.

O que entende por“Constitucionalismo global”?

Existem e estão aparecendo sempre mais dramáticos os problemas globais que não fazem parte da agenda política dos governos nacionais mas de cujas soluções, possíveis somente de maneira global, depende a sobrevivência da humanidade: o resgate do planeta contra o aquecimento global, os perigos dos conflitos nucleares, o crescimento da pobreza e a morte a cada ano de milhões de pessoas pela falta de alimentação básica e de remédios que lhes possam salvar as vidas, o drama de centenas de milhares de migrantes e, agora a tragédia dessa pandemia do coronavirus. É desta banal consciência que há um ano nasceu a ideia de dar vida a um movimento político – a primeira assembleia aconteceu aqui em Roma em 21 de fevereiro – direcionada a promover a “ Constituição da Terra”. O instrumento que adotamos é aquele da escola “Constituinte Terra”: precisamente a instituição de mais escolas, que gostaríamos que fossem organizadas não apenas em Roma, mas em toda a Itália e numa perspectiva em todo o mundo e que serão, na realidade, os lugares de reflexão, de debate e de elaboração da técnica e, principalmente das instituições que garantem os direitos humanos e a paz que uma Constituição da Terra deveria prever para dar vida a uma esfera pública internacional à altura dos desafios globais.

Quais são, segundo o senhor, os principais obstáculos a uma perspectiva desse gênero?

São fundamentalmente dois. O primeiro é a miopia das forças políticas, determinada por uma grave aporia da democracia representativa: os espaços estreitos e os tempos restritos em que são ancorados, na democracia, a busca por forças políticas e que impedem de se fazer cargo dos problemas do planeta geralmente ignorados pela opinião pública. O segundo é constituído pelos poderosos interesses que se opõe ao projeto de uma esfera pública que garanta a igualdade para os direitos fundamentais e para a paz cuja atuação poderia impor uma tributação mundial, limites e controles sobre o desenvolvimento industrial ecologicamente insustentável e a subordinação aos direitos fundamentais pelos poderes selvagens dos mercados.

A pós pandemia, realmente, poderia representar uma ocasião para vislumbrar a necessidade de um novo horizonte?

Certamente, uma vez que essa, repito nos faz tocar com as mãos a insensatez da falta de preparação e de previdência que atingiu todos os Estados (Nações), nos conscientizando do fato que planos adequados de emergência serão tanto mais eficazes quanto mais homogêneos e por isso globais. Parece me que este seja o ensinamento mais óbvio desta pandemia: a necessidade de transformar a Organização Mundial da Saúde, atualmente privada de meios e poderes em uma verdadeira instituição global de garantia do direito à saúde para todos os habitantes da Terra.Pode-se, enfim, esperar que o drama provoque um despertar da razão. Afetando toda a humanidade, sem distinção de nacionalidade e de riqueza, essa poderá talvez gerar, massivamente, a consciência – também em relação às outras emergências globais, como a ecológica, a nuclear e a humanitária – sobre nossa fragilidade comum, sobre nossa interdependência e sobre nosso destino comum.

Professor, a academia desenvolveu nos últimos anos diversos modelos de governança global: o modelo liberal democrático, aquele da democracia radical, aquele da democracia cosmopolita e enfim aquele da democracia multipolar; segundo o senhor qual é aquele mais adaptado a fazer frente à atual crise?

As tipologias dos modelos de democracia podem ser as mais variadas. Dos quatro modelos que a senhora indicou, aquele mais idôneo a responder aos desafios globais é certamente aquele da democracia cosmopolita. É o sonho de Kant, que hoje é possível, integrar, atuar e garantir, dando a isso a forma e o conteúdo de uma Constituição global, rigidamente subordinada aos poderes sejam dos Estados que dos mercados.

Na sua permanente reflexão, que lugar a ONU ocupa?

A ONU é hoje o único ordenamento internacional em que são membros praticamente todos os Estados da Terra. Trata-se de democratiza-la, de reforça-la e principalmente de lhe modificar a estrutura. Então aquilo que se quer não é muito o reforço das funções e das instituições políticas de governo: tais funções enquanto legitimadas pela representação política são tanto mais solidas quanto mais próximas são aos eleitores e tanto no âmbito nacional como regional. Aquilo que é necessário é principalmente a implementação – que obviamente exige uma decisão política a ser feita pelas instituições de governo – de adequarem funções e instituições de garantia para a saúde, para a subsistência, para a educação de base, para a vida no planeta, ou seja, para os direitos fundamentais já estabelecidos em tantas declarações de direitos humanos que se trata simplesmente de levá-las a sério. Nessa perspectiva, uma Constituição da Terra deveria introduzir uma propriedade planetária dos bens comuns como a atmosfera, a água potável os glaciares e o patrimônio florestal. Deve também prever uma tributação global capaz de financiar a Organização Mundial da Saúde, a FAO e outras autoridades de garantia.

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