Isolamento social. Para quem sempre insistiu na necessidade de aproximação com as bases, de estreitar o contato com as parcelas da população que representam ou querem representar, a crise do coronavírus impõe alterações bruscas no próprio conceito que rege movimentos organizados de origem popular.

O reflexo mais imediato dessa inesperada mudança é o surgimento de um sem-número de lives e de teleconferências a que instituições e lideranças têm recorrido desde que o tamanho e a gravidade da coronacrise foram compreendidos pela maioria das pessoas.

Na noite de 7 de abril, Lula estrelou uma live candidata a um dos ícones dessa nova tendência. Quando completavam-se exatos dois anos após sua prisão, o líder do PT, solto em novembro de 2019 após 580 dias de detenção, comandou uma conversa online com a participação de Wellington Dias, governador do Piauí, e os deputados Paulo Pimenta e Alexandre Padilha que, mais importante do que os números da audiência, confirmou Lula como mago dos palanques. Ele afirmou ao final do encontro que havia se animado bastante com a experiência e prometeu que vai fazer dessa forma de expressão uma rotina.

Lula, que já vinha fazendo lives, nessa ocasião mostrou desenvoltura como apresentador e comentarista, invertendo a posição que ocupou no cenário jornalístico por quatro décadas. A conversa trouxe informações e dados que não frequentam o noticiário comercial, denúncias de procedimentos errados de diferentes governos frente à crise e ainda serviu para que Lula e seus convidados apontassem diretrizes e propostas de ação ao público petista e à oposição em geral. Quase um comício, com rodízio permanente de microfones improvável se o palco fosse um caminhão de som ou palanque.

Iniciativas semelhantes pululam nas redes. Sindicatos, movimentos e lideranças usam perfis institucionais e pessoais para divulgação de ideias e ações que estão desenvolvendo. A TV PT, no ar desde a terceira semana de março, é uma dessas iniciativas. Vale indagar se a profusão de transmissões, muitas vezes simultâneas e quase sempre sem coordenação entre seus organizadores, não repete prática antiga, que interferia na comunicação da era impressa ou presencial, de dispersão de conteúdo, público e, portanto, de significado.

O fato, porém, é que tal mudança de meios de comunicar-se não será abandonada após a crise aguda do coronavírus e do isolamento social ser superada. Como em outros momentos de crise, novas práticas e ferramentas de trabalho adotadas na urgência do momento tendem a se perpetuar caso mostrem-se menos dispendiosas, ao mesmo tempo que suficientes para a execução de tarefas.

Na opinião de Kelli Mafort, trabalhadora rural e integrante da Coordenação Nacional do MST, a experiência tem se mostrado muito rica e, de maneira inesperada, tem ampliado o raio de ação do movimento. “É incrível. Não posso esconder a enorme satisfação com o que estamos vendo”, diz ela. Após uma semana de “espanto” diante da crise, Kelli relata que rapidamente os diversos núcleos do MST e outros movimentos parceiros foram se lançando à atividade política a distância e, ao contrário do que poderia se imaginar antes, a militância tem atingido comunidades e territórios aonde antes não chegavam.

Com o envolvimento do MST em campanhas de solidariedade e auxílio a comunidades carentes e também a formação de grupos de advogados populares a prestar esclarecimento online sobre direitos, o movimento está se firmando como referência a setores urbanos que não fazem parte de suas bases tradicionais. “Temos visto um batalhão de militantes atuando em várias frentes. Na minha opinião, o uso dessas ferramentas digitais para a atividade política deve continuar, mesmo após a crise do coronavírus”, defende Kelli.

Tal experiência projeta outra alteração importante nas formas de  sociabilidade. As relações de trabalho devem sofrer aprofundamento rumo a conceitos como teletrabalho, vínculos empregatícios flexíveis e empreendedorismo individual. Especialmente para os sindicatos, tão impactados pela recente reforma trabalhista, a tarefa de se adaptar aos novos tempos – que na verdade, no tocante às modalidades de trabalho, já se fazia necessária – vai exigir bastante reflexão e criatividade.

No Brasil, a expansão do coronavírus tem tido efeitos sobre o mercado de trabalho e direitos trabalhistas bem peculiares ao grupo que ocupa o poder no governo federal. Desde o início da crise, o bolsonarismo tem procurado aproveitar a oportunidade para impor mais penas ao povo. Entre idas e vindas, declarações que espantaram negativamente a opinião pública internacional e demonstrações explícitas de sociopatia, o governo tentou empurrar para a população subtração de salários e “auxílio” de duzentos reais, temporários, para uma diminuta parcela da população. Parte das propostas foi derrubada – como a de suspensão de jornada e de pagamento de salários durante a crise – mas as ameaças continuam.

Os sindicatos reagem. Num primeiro momento, o obstáculo era o de forçar as empresas a liberarem seus efetivos da presença física nos locais de trabalho. Nem mesmo entre filiais de grandes multinacionais – como montadoras de veículos – a necessidade de isolamento social para o maior número possível de atividades foi aceita de pronto. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, por exemplo, viu-se obrigado a pressionar a associação nacional de fabricantes do setor e a ameaçar greve para que empresas recalcitrantes – como Honda, Renault e Fiat – aceitassem suspender atividades.

O presidente da CUT, Sérgio Nobre, que tem feitos lives diárias para falar com os sindicatos filiados e suas bases, abriu negociações com entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e governos estaduais para fechar acordos à margem das decisões do governo federal. Com a CNI ficou acertado que demissões não podem ocorrer sem antes envolver os sindicatos na busca de alternativas. O Palácio do Planalto, por sua vez, queria que demissões fossem feitas ao gosto dos patrões – no que acabou sendo derrotado por decisão do Supremo Tribunal Federal.

O travo amargo que permanece, no entanto, é a situação de trabalhadores informais, operários da construção civil e de funcionários do comércio essencial que permanecem trabalhando, muitos sem medidas especiais de proteção, como luvas e máscaras, sem auxílio-alimentação e outros direitos básicos, que deveriam ser ampliados, inclusive, por conta da pandemia. Situação que poderia ser amenizada caso a representação sindical estivesse consolidada nestes setores de atividade.

De todas as categorias que estão trabalhando, a que mais sofre, de longe, é a dos profissionais de saúde. Situações escandalosas de falta de roupas e equipamentos de proteção têm exposto esses brasileiros e brasileiras a grande risco de contaminação e a níveis de pressão maiores dos que os já habituais. O enfraquecimento premeditado do SUS, desde o governo Temer, escancara de maneira tétrica seus efeitos.

Sindicatos do setor têm se desdobrado na tarefa de denúncia e cobrança. Esforços eclipsados por uma súbita onda de jornalismo poliana que muito fala em solidariedade e destaca até mesmo campanha de arrecadação de doações em dinheiro junto à população, aberta pelo gigante do setor público Hospital das Clínicas, em São Paulo, como uma notícia “fofa”. Sem falar na organização – bem organizada, até aqui – de planos de comunicação de governadores que gozam da simpatia da mídia, como o tucano João Doria, do time privatista e antiSUS.

Solidariedade

Enquanto isso, no vácuo de ações eficazes do setor público e movidos por princípios de solidariedade, os movimentos lançam-se a campanhas de ajuda. O MST tem realizado ações como a distribuição de 1,8 mil marmitas diárias para os sem-teto na cidade do Recife, postos de distribuição de refeições para caminhoneiros, como o instalado na BR-153, em Promissão (SP), e a doação de três toneladas de arroz agroecológico, produzido por cooperativa de assentamento no Rio Grande do Sul, para comunidades de favelas paulistanas, em março.

A CUT e as demais centrais sindicais ofereceram ao poder público e às autoridades sanitárias a cessão de propriedades de seus sindicatos, tais como clubes de campo, quadras esportivas, colônias de férias e sedes para hospedagem de famílias carentes, sem-teto ou para a instalação de leitos hospitalares.

No final de março, as frentes Brasil Popular e Povo sem Medo lançaram campanha nacional para agregar ações solidárias de socorro a famílias e pessoas carentes. Com o lema “Vamos precisar de todo o mundo”, a campanha une as periferias, que já buscavam saídas locais.

Outro reflexo da crise ocorrerá sobre a documentação que permitirá a análise futura da atuação dos movimentos. Se hoje os materiais impressos e as notas oficiais oferecem apenas fragmentos das suas histórias, a supressão, ainda que temporária, do testemunho in loco imporá novos desafios. Ao mesmo tempo que as transmissões online, desde que preservadas em arquivos, vão se tornar novas fontes documentais.

 

`