Artigo de M. K. Bhadrakumar, publicado no site Indian Punchline, analisa a relação entre a pandemia de Covid-19 e o imperialismo estadunidense, apontando alguns caminhos para compreensão de como um afeta o outro.

Clique aqui e acesse o texto original, em inglês.

Leia abaixo a versão em português, traduzida por Lígia Toneto, da equipe do Observatório da Crise do Coronavírus:

 

Covid-19 confronta o excepcionalismo americano

A grandeza das tragédias gregas clássicas reside em seu efeito humanizador sobre o espectador ou leitor – “catarse”, a purificação ou purgação de emoções, uma metáfora usada por Aristóteles em Poética para descrever os efeitos da verdadeira tragédia na mente.

Não se sabe se o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou algum dia a ler uma tragédia grega. Édipo de Colonus, o drama de Sófocles escrito no final de sua vida em 406 a.C., poderia ser um bom começo pela sua relevância contemporânea.

Conta a história tortuosa de Édipo, rei de Tebas, que se cegou e se exilou desesperado por sua distorção de identidade após de descobrir que havia matado inconscientemente seu próprio pai, o ex-rei Laios, e se casado com sua própria mãe, Jocasta, a viúva de Laios.

Não há sinais de que a tragédia que ultrapassou os Estados Unidos tenha tido algum efeito catártico nas elites políticas do país. Certamente este não é um “fim da história” para os estrategistas americanos. Pelo contrário, em um artigo do Wall Street Journal na sexta-feira passada, intitulado “A pandemia de coronavírus alterará para sempre a ordem mundial”, Henry Kissinger voltou ao excepcionalismo americano, viu o coronavírus como uma ameaça à ordem mundial e exortou Trump a proteger o sistema, não importa o que seja necessário – até mesmo lançando, se necessário, um Plano Marshall para unificar e reunir aliados para “salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal”.

Kissinger se apega aos restos de um sistema fracassado em casa e se recusa a deixar passar o arco da instabilidade do norte da África, do Oriente Médio e da Ásia Central, que são resultado das estratégias americanas sob a rubrica de “excepcionalismo”. Certamente, nenhuma catarse para Kissinger.

No entanto, um “cenário de país do terceiro mundo”, como alguém disse, está se desenrolando bem diante de nossos olhos nos Estados Unidos e Kissinger não pode ignorar isso. Em um momento desprotegido na semana passada, até mesmo Trump admitiu que: “Vi coisas que nunca havia visto antes. Quero dizer, já vi, mas já vi na televisão e em terras distantes, nunca no meu país. ”

A raiz dessa tragédia deve ser atribuída à hegemonia americana camuflada de “excepcionalismo”, que se concentrava na extração imperial de recursos em grande escala e na transferência de riqueza do que costumava ser chamado de Terceiro Mundo para Wall Street, apesar da descolonização. Assim, a hegemonia americana exigia um orçamento de defesa maior que o dos sete seguintes maiores países do mundo juntos.

A hegemonia militar dos EUA está em exibição nas 800 bases de mais de 70 países, excedendo em muito a de qualquer império da história. Esse aparato militar e de segurança, de abrangência mundial, organizado em comandos regionais, remonta aos “procônsules do Império Romano e aos governadores gerais dos britânicos” – um aparato construído para perpetuar a hegemonia.

Por outro lado, esse aparato pertence a um universo inteiramente paralelo ao que a maioria dos americanos experiencia diariamente. O colapso completo do sistema de saúde americano deveria ter desencadeado debates nos EUA sobre as prioridades de gastos do país. Mas não o fez. O capitalismo sem restrições incapacitou o setor de saúde dos Estados Unidos. Com hospitais e empresas farmacêuticas orientadas para o lucro, o setor de saúde é otimizado para lucrar. O excesso de capacidade diminui os excedentes, portanto, a capacidade de pico não existe.

No entanto, como mostra o artigo de Kissinger, nada disso registra a consciência das elites que se recusam a fazer conexões entre o poder dos Estados Unidos e a política doméstica. Eles ainda estão no modo de negação do confronto explosivo do Covid-19 com o excepcionalismo americano – embora o prognóstico seja de que a taxa de desemprego nos EUA possa chegar a 32%, como foi previsto, e milhões de pessoas não apenas perderão seus empregos, como também seu seguro saúde.

Ironicamente, a fúria da Covid-19 na América é um piquenique em comparação com o holocausto que o excepcionalismo americano provocou na Mesopotâmia. Estudos independentes dos americanos mostram uma estimativa catastrófica de 2,4 milhões de mortes no Iraque desde a invasão de 2003. É uma tragédia múltipla, se alguém se lembrar de que cada pessoa morta representava a pessoa amada de alguém – mães, pais, maridos, esposas, filhos, filhas.

Pior ainda, nenhum sinal de catarse aqui também. Mesmo no meio da pandemia de volta para casa, o excepcionalismo americano continua em ação no Iraque, esperando desesperadamente instalar um regime flexível em Bagdá, que não pressionará a demanda do país de que os EUA retirem suas tropas.

Na cena final do drama épico de Sófocles, Édipo aparece no palco para explicar sua horrível auto-cegueira com os pinos de Jocasta. Ele explica com agonia que arrancou os olhos porque não conseguia olhar novamente para os entes queridos que contaminou, especialmente suas filhas Ismene e Antigone, que ele gerou com sua própria mãe.

A pena e o terror despertados pela trágica queda de Édipo provocam uma catarse. O Covid-19 terá um efeito catártico nos cocheiros do imperialismo dos EUA? Deveria.

Em seu famoso ensaio Discurso sobre o Colonialismo, de 1955, o poeta francês e político afro-caribenho, Aimé Césaire, escreveu que as justificativas racistas e xenófobas para a colonização – motivadas por desejos capitalistas – acabam por resultar na degradação moral e cultural da nação colonizadora.

O imperialismo é prejudicial, eventualmente, para as civilizações que participam como autores, de uma maneira que é internamente prejudicial. O saque de Nova York pelo Covid-19 é profundamente simbólico.

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