Quando da crise do subprime em 2008 assistimos o rápido desdobramento da crise econômica para uma grave crise social e em seguida uma crise política representada, principalmente, pela ascensão da extrema-direita em vários países desenvolvidos. Em alguns chegou a assumir a condução dos governos como foi o caso dos Estados Unidos com Donald Trump e Inglaterra com Boris Johnson e em outros como Áustria, Hungria e Polônia, menos desenvolvidos, embora também sejam membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Sem falar de Bolsonaro, Duque, Bukele e Piñera na América Latina.

Agora o mundo enfrenta uma crise decorrente de uma pandemia, o coronavírus, com impactos fortes sobre a economia e a depender de seu conteúdo, as respostas poderão agravar a crise social e consequentemente a política, embora algumas medidas sugeridas por várias personalidades pelo mundo afora, inclusive alguns empresários, sejam no sentido de fortalecer o papel dos Estados na economia e nas instituições de saúde, o que poderá, em tese, apresentar uma alternativa progressista, uma vez superada a crise.

Vários chefes de Estado dos países centrais têm discursado que enfrentamos uma guerra ao pregar patriotismo e a necessidade da unidade de suas sociedades. Um discurso semelhante ao apresentado durante a Segunda Guerra Mundial e que quando terminou, o liberalismo econômico desmoralizado devido à competição capitalista que provocou duas guerras mundiais e a crise econômica de 1929, foi colocado em xeque por trinta anos. No entanto, esta postura terá um efeito colateral, pois a ajuda eventualmente dada às empresas durante a crise tende a favorecer as grandes, o que as fortalecerão quando a crise estiver superada e aumentará seu poder e concentração de renda em detrimento das médias e pequenas empresas.

No entanto, há os que simplesmente minimizam o problema e defendem mais neoliberalismo para enfrentar a atual conjuntura, como o governo Bolsonaro que cogita medidas provisórias autorizando as empresas a suspender contratos e reduzir salários, além de limitar o acesso a informações, antessala da censura. Ele tem adotado uma postura semelhante as de Trump e Johnson, talvez de forma articulada.

Nos Estados Unidos e Inglaterra também há quarentenas. Nos Estados Unidos deverá ser aprovado um pacote de dois trilhões de dólares, principalmente, para subsidiar empresas em dificuldades, embora 18% dos trabalhadores tenham sido demitidos ou tiveram jornadas de trabalho e salários reduzidos. No entanto, estes governantes minimizam o alcance da doença, dizem que é hora de retomar o trabalho e que a economia não pode ser prejudicada. Johnson chegou a incentivar as pessoas a saírem de casa e fazerem ginástica nos parques do país.

Além das consternações expressadas por intermédio da mídia sobre os motivos destes governantes estarem na contramão das políticas recomendadas pelas organizações internacionais como a OMS e outras, discute-se o que motiva suas posições ambíguas, desde ignorância e irresponsabilidade puras e simples, até interpretações mais sofisticadas. Há algumas coisas em comum. Trump enfrentará uma eleição presidencial e parlamentar no final do ano assim como Bolsonaro, embora aqui se trate de uma eleição municipal, mas que medirá sua popularidade e chances para 2022. Interessa a eles agradar um setor importante de sua base de apoio: os empresários e trabalhadores das médias e pequenas empresas, principalmente do setor de serviços que no caso do Brasil emprega 70% da mão de obra nacional, mesmo que isso amplie as contaminações pelo coronavírus. Não precisar subsidiá-lo é também música para os ouvidos dos setores neoliberais dos governos voltados, primordialmente, para as políticas de ajuste fiscal. Essas preocupações devem estar também nos cálculos de Johnson, embora ele não tenha que enfrentar nenhuma eleição no curto prazo.

Outro fator que devem estar considerando é ainda mais cruel e pragmático: qual será o índice de contaminação e letalidade? Nos Estados Unidos, embora, assim como o Brasil e a Inglaterra sejam um sério candidato a se tornar o epicentro da pandemia, a letalidade prevista é de 5%, mas ainda está em torno de 1%. A Abin no Brasil prevê duzentos mil infectados até o início de abril, 0,1% da população. São percentuais modestos, mas o risco que os políticos não têm como prever é a repercussão da doença e das mortes na opinião pública e os impactos sobre sua popularidade. A irresponsabilidade criminosa que Trump, Bolsonaro e Johnson vem adotando coloca mais gente em risco e no médio prazo poderá lhes custar caro.

Outros oportunistas, como Benyamin Netanyahu em Israel cuja coalizão de direita, pela terceira vez, não conseguiu maioria de votos para formar um novo governo, tem impedido o Parlamento (Knesset) de se reunir, assim como os tribunais, evitando assim o julgamento das três acusações de corrupção que pesam sobre ele, e seu ministério tem governado unilateralmente. Tudo sob a justificativa dos riscos de contaminação em aglomerações devido ao coronavírus. No Chile, o presidente Piñera decretou estado de emergência, sob a mesma justificativa, o que permite transferir o poder para os militares para reprimir manifestações e adiou o plebiscito sobre uma possível nova Constituição, previsto para ocorrer em abril, para o mês de outubro. A eleição boliviana prevista para o início de maio também foi adiada sine die e no Brasil fala-se de adiar as eleições municipais previstas para ocorrer em outubro. O Senado brasileiro tem promovido sessões por videoconferências que possibilitam a tomada de decisões virtuais, mas que representam riscos de dificultar debates e acordos quando se tratar de temas mais sensíveis.

Ou seja, estamos diante da possibilidade de redução da democracia justificada pela pandemia, do aprofundamento do neoliberalismo e, consequentemente, da crise econômica e social. Na melhor das hipóteses, o mundo poderia adotar outro caminho, reivindicado, inclusive, por forças políticas mais centristas, mas isso dependerá da política e, particularmente, da capacidade dos movimentos sociais e políticos progressistas de defenderem alternativas que coloquem os Estados no centro das iniciativas. Esta hipótese pode se fortalecer na medida em que a sociedade perceber que a alternativa no curto prazo para enfrentar a doença e as mortes decorrentes dependem de ações do Estado e consequentemente dos governos. Quem souber responder com coerência, inclusive as oposições, poderão se dar bem politicamente, mas outros, como o presidente brasileiro, tendem a se dar mal na medida em que minimizam o problema e apresentam soluções inócuas ainda mais em um país com os problemas sanitários e carências hospitalares como o nosso.

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