Um presidente Peter Pan diante da pandemia de coronavírus
Não há quem não reconheça que as atitudes do presidente Bolsonaro sempre foram esquisitas. Um homem idoso com raciocínio infantil, exibicionista, não raras vezes, inconsequente. Uns perceberam lá atrás que o ódio que nutria contra vários segmentos sociais era fruto de sua insegurança; outros parecem ter percebido agora.
Estranho ter que concordar com uma personagem exótica como a deputada Janaína Paschoal. Porém, no dia 16 de março, da tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, ela acertou quando disse que o presidente Jair Bolsonaro precisava ser contido no comando do governo, por não demonstrar capacidade adequada para gerenciar o país no atual cenário de pandemia de coronavírus. Só vacilou por não haver percebido, no tempo certo, que este presidente jamais possuiu equilíbrio para dirigir o Brasil (ou qualquer coisa) em circunstância alguma e, mais ainda, na iminência de sofrer as graves consequências da nova gripe, imerso numa crise econômica que paulatinamente já alavancava desde o início de seu governo e que, agora, se presume inevitável e catastrófica.
O presidente é um Peter Pan, vive num mundo paralelo. Acredita apenas naquilo que lhe agrada. Mora numa cápsula cercado de asseclas, apartado da realidade. Faz-se de valente ao reportar-se apenas à imprensa que lhe bajula, mas ajoelha-se como um vassalo medíocre diante do presidente dos Estados Unidos. Acredita piamente em teorias de conspiração que fanáticos lhes sopram aos ouvidos e descrê na ciência, ignorando, por exemplo, os efeitos do aquecimento global, as razões das manchas de óleo no mar, os prejuízos dos desmatamentos na Amazônia, e, agora, os graves riscos da covid-19, para os quais não cansam de alertar a Organização Mundial da Saúde, inúmeros países do Globo e até mesmo o seu Ministério da Saúde.
Por duas vezes o presidente ignorou o isolamento previsto na própria lei que sancionou, a Lei n. 13.979 de 6 de fevereiro de 2020 (regulamentada pela Portaria do Ministério da Saúde nº 356, de 11 de março de 2020), que prevê isolamento e exames periódicos para todos que ingressam do estrangeiro, sua situação. No dia15/03, interagiu diretamente com o público presente à frente do Palácio do Planalto, inclusive estimulando a continuidade de esdrúxula manifestação antidemocrática pró-fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, patrocinando violações previstas nos incisos II e V do art. 85 da Constituição da República.
Não bastasse, disse em entrevista radiofônica no dia 16 que todo alarme com a covid-19 não passava de grande histeria e que, se por acaso estivesse contaminado com o coronavírus (a Fox News informara no dia anterior que o filho Eduardo Bolsonaro teria confirmado esta versão), aquilo seria problema unicamente seu. Em nenhum momento, o presidente demonstrou preocupação com a hipótese de poder ter contaminado outras pessoas. Não houve, da parte da maior autoridade do país, nenhum tipo de ressentimento com o fato. Pensou nas consequências para sua saúde e só.
Não é espantoso supor que o presidente brasileiro possua grave debilidade mental. Em julho de 2019, escrevi que a recorrência no cometimento de crimes de responsabilidade sugeriria impeachment ou interdição por razão de demência. Ontem, o jurista Miguel Reale Júnior recomendou ao Ministério Público Federal que submetesse o presidente a uma junta médica, a fim de avaliar sua sanidade mental. A medida é importante porque o país não pode permanecer à deriva num momento tão sensível.
O Brasil é o país da informalidade, vive do comércio nas ruas, sobretudo ambulante. São milhões e milhões de brasileiras e brasileiros que sobrevivem com o pouco que arrecadam em vendas e pequenos serviços no trabalho diário. Uma necessária ausência de aglomerações para evitar a propagação do contágio viral resultará em prejuízo inimaginável para esta enorme parcela da população que não terá como prover o sustento de suas famílias. Seguramente será esta mesma parcela populacional, naturalmente mais suscetível à doença, que enfrentará filas caóticas em postos de saúde, Upas e hospitais.
Será que o presidente da República não consegue imaginar o que uma mãe ou um pai podem fazer, num momento de desespero, para obter o alimento que não têm como comprar para os filhos porque não tem como trabalhar? No Nordeste brasileiro são vivas as recordações de saques e arrastões decorrentes das carestias das décadas de 1980 e 1990. Será que o presidente não pode imaginar o caos que se estabelecerá numa unidade de saúde quando uma multidão temerosa por sua vida não conseguir atendimento instantâneo? Não mensurará o presidente o tamanho do pânico social gerado quando máscaras, álcool em gel, produtos alimentícios e de higiene pessoal escassearem nas prateleiras de farmácias e supermercados? E as trabalhadoras e trabalhadores que se locomovem diariamente em transportes públicos lotados, estará o presidente prensando neles?
O momento agora é de refletir e agir. Se o presidente Jair Bolsonaro é incapaz de entender a importância dessa afirmação, que seja removido imediatamente da Presidência da República. Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal têm a responsabilidade histórica de tomar as providências necessárias para que isso de viabilize antes que o ônus da covardia recaia sobre si. Motivos para impeachment não faltam, assim como não faltam indícios para alimentar uma eventual providência do Ministério Público com vistas a uma eventual interdição, se assim se compreender melhor ou mais efetivo. O fato é que o país não merece ser governado por um Peter Pan que só enxerga o mundo como quer ver, que só vive segundo suas próprias regras. Para piorar a situação, um Peter Pan sem a pureza e o charme da juventude. Uma espécie de Peter Pan às avessas: arrogante, virulento, incompetente, inconsequente e intelectualmente atrasado.
Marcelo Uchôa é Advogado e Professor Doutor de Direito. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Núcleo Ceará .