Mesmo sem levar o Oscar, Petra Costa já venceu
Publicado originalmente no blog do Marcelo Auler
Com a entrega dos Oscars já dobrando a esquina e a possibilidade, ainda que remota, de Democracia em Vertigem levar uma estatueta, a desinformação e a má-fé se deram as mãos e invadiram as mídias impressas e digitais, seu trottoir de eleição.
A desinformação de quem ignora a elasticidade do gênero documentário e crê ingenuamente em sua mítica imparcialidade; a má-fé de quem se aproveitou do filme de Petra Costa para exorcizar seus demônios, vestir a carapuça de golpista ou isentão, que até hoje insistem em negar o que o primeiro beneficiário do golpe e um de seus artífices, Michel Temer, já admitiu ter ocorrido.
Em pleno fastígio da polarização político-ideológica incendiada pelo sucessor de Temer, um filme abertamente impressionista sobre o Brasil de ontem e hoje virou saco de pancada da ultradireita, sobretudo desta, vilã insofismável do putsch parlamentar que derrubou Dilma Roussef quatro anos atrás.
As tais “pedaladas fiscais”, na época apontadas como a causa mortis do seu governo, foram nesta semana rebatizadas “dribles” pelo jornal Valor Econômico, numa reportagem sobre o rombo de R$ 55 bi no teto de gastos do governo em 2019. As modalidades esportivas mudaram, a metáfora ainda é a mesma.
Os elogios que Democracia em Vertigem recebeu e ainda recebe, aqui e no exterior, superaram amplamente as críticas e os insultos, muitos bem pesados e beirando a boçalidade, que nos últimos dias lhe foram dirigidos. Esse desequilíbrio a seu favor não conta voto na Academia de Hollywood, de resto já recolhidos àquela inviolável pasta da Price Waterhouse, a ser aberta amanhã (domingo, 08/02) à noite, mas gratifica o ego da diretora e lava a alma de seus apreciadores, entre os quais me incluo, mesmo fazendo-lhe algumas restrições.
Não existe filme imparcial, neutro, seja ele de ficção ou documentário. A verdade no cinema, mais que uma utopia, é uma falácia. A angulação da tomada já é uma interferência no real, uma escolha subjetiva. Elementar, meu caro Watson Macedo.
Um documentário confessional, quase um diário ou um livro de reminiscências assediadas por perplexidades e incertezas, como é Democracia em Vertigem, não merece ser medido com o rigor de quem avalia um ensaio de cunho histórico. Tem viés ideológico? Tem. Qualquer obra cinematográfica tem, mais e menos pronunciado. Não pretendia ser um agit prop petralha; mas se, por força das circunstâncias, virou um filme aparentemente simpático aos perdedores, o principal culpado é o governo desastroso do capitão.
Democracia em Vertigem poderia apresentar uma visão bolsonarista de nossa história recente; felizmente não o fez. Se o fizesse, a única academia que o consagraria seria a das Agulhas Negras, que, como se sabe, não premia filmes.
Não quero relativizar coisa alguma. Tirantes certos detalhes, a meu ver irrelevantes (procurem no Google o significado da expressão “catar pulga em leão”), o filme de Petra Costa reproduz na tela o essencial da escalada neofascista que há oito meses contemplamos com nojo e horror diariamente renovados. Ninguém nos contou, nós vimos e vivemos aquilo tudo. Está tudo gravado, documentado. E ainda fresco em nossa memória.
“Com seu fluir tranquilo, narrado por uma voz que nada tem de assertiva ou panfletária, o filme nos passa a sensação da inevitabilidade, de um monstro movido por inércia, que nada nem ninguém poderia deter ou tirar do seu rumo”, escreveu Luiz Zanin Oricchio, no Caderno 2 do Estadão, em junho passado. Se a voz não fosse da própria autora, desqualificá-la como “chatinha” seria apenas um juízo de valor, não uma objeção inoportuna, com viés de implicância.
A uma entrevista de Petra Costa na TV americana, serenamente contundente e sem qualquer acusação que não seja do conhecimento público, burocratas do governo, sicofantas de sua base parlamentar e o que sobrou dos bolsominions arrependidos desencadearam uma blitzkrieg digital com quase indistinta diferença entre os que gritavam “mata!” e os que gritavam “esfola!”.
Com uma hashtag sufixada com um “liar” (mentirosa, em inglês), Petra foi acusada de espalhar calúnias lá fora, de ser uma “militante anti-Brasil” e outras injúrias que são, notoriamente, uma especialidade de B*******ro. Marco Feliciano, um fariseu evangélico atolado em casos de corrupção e nostálgico da ditadura militar, chegou a pedir o enquadramento da cineasta na Lei de Segurança Nacional.
Quando o chefe da Secretaria de Comunicação do governo, Fábio Wajngarten, utilizando-se de um perfil oficial, sustentado, assim como ele, com os nossos impostos, soltou um vídeo abjeto e tuitou calúnias a respeito da entrevista, só os muito distraídos não se deram conta de que ele estava tentando, mais do que executar ordens, desviar a atenção das denúncias de corrupção, pelo MP, que ganharam destaque nos jornais do dia seguinte.
Acusar Petra de difamar o Brasil lá fora é minimizar o que o presidente mais tem feito, inclusive de corpo presente, desde que assumiu. Qualquer dano que ela e seu filme possam causar à reputação do país terá o mesmo efeito que teria um bombardeio da cidade alemã de Dresden pelas forças aliadas depois do dia 15 de fevereiro de 1945, quando ela já estava em ruínas. Ou um oitavo gol da Alemanha, na Copa de 2014.
Imaginem o que teriam feito com Petra Costa se ela tivesse repetido, literalmente, as litanias contra o povo brasileiro que, poucas horas depois, um telejornalista mais desacreditado que João de Deus regurgitou em seu canal no You Tube, na presença do presidente, que o endossou entusiasticamente e ainda repercutiu a afronta em sua rede social.
Alguém comparou o escarcéu de Wajngarten à retórica persecutória do governo Médici, que a todas as denúncias de torturas cometidas pela ditadura militar reagia com o mesmo bordão: Fulano “difama Brasil no exterior”. Fizeram isso com o bispo Dom Helder Câmara, entre outros. Petra Costa é a inimiga expiatória da vez.
(*) Sérgio Augusto, jornalista, crítico de cinema, colunista semanal de O Estado de S.Paulo