No auge da operação Lava Jato, quando da condução coercitiva de Lula a interrogatório improvisado, dos escândalos amplamente divulgados em torno do apartamento no Guarujá e do sítio de Atibaia, dona Marisa, esposa de Lula e uma das fundadoras do PT, foi envolvida por um sentimento de culpa por ter sido a compradora de uma cota do edifício em que se encontrava o tal triplex, usado pelos procuradores e pelo ex-juiz Sergio Moro para prender Lula. O casal acabou por jamais comprar o apartamento, como revelou, posteriormente, a própria Lava Jato.

“Ela, que passou a vida preservando e cuidando e fazendo tudo que estava ao alcance dela para trabalhar a favor do PT, do Lula, do governo, do projeto político, naquele momento ela começou a sentir que ‘puxa, eu que sempre trabalhei com todo o zêlo, hoje posso estar sendo uma das responsáveis pela criminalização do PT, que é meu partido, e de uma possível prisão do meu marido’”, conta Camilo Vannuchi, autor da biografia Marisa Letícia Lula da Silva, lançada pela Alameda Editorial.

Esse episódio, somado à “perseguição implacável” que ela e sua família sofreram, é um entre tantos revelados pelo livro, para o qual foram entrevistadas mais de noventa interlocutores da ex-primeira dama. Entre essas fontes não está a própria biografada. Embora tenha se decidido a contar sua história ao jornalista, após vários anos do nascimento do projeto, a morte dela, em fevereiro de 2017, interrompeu a ideia de produzir um livro narrado por ela mesma.

“Se eu puder afirmar, por todas as entrevistas que fiz, a Lava jato contribuiu para a deterioração da saúde dela, uma tensão muito grande, permanente, que contribuíram para o acidente vascular cerebral que causou a morte dela”, diz Vannuchi.

A obra tem lançamento nesta quarta-feira, dia 5, a partir das 18h30, no diretório do PT em São Bernardo do Campo, cidade que foi berço do relacionamento de 42 anos de dona Marisa com Lula e do nascimento do PT. Por sinal, o livro confirma que a construção do partido teve forte e importante colaboração de dona Marisa.

A biografia tem outros lançamentos previstos: amanhã, quinta-feira, a partir das 19h, no Canto Madelena (rua Medeiros de Albuquerque, 471). No sábado, às 15h30, no Festival PT 40 anos, no Rio de Janeiro. E, na segunda, a partir das 18h, na livraria Leonardo da Vinci, também no Rio.

Leia a entrevista com o autor.

Quando surgiu a ideia de escrever este livro? Foi assim que a dona Marisa morreu?

A ideia tem muito tempo, tem treze anos. Eu fiz um livro de memórias e ela foi ao lançamento. Era o livro de memórias de José Alberto de Camargo, um executivo que dirigia uma compahia de nióbio (CBMM, Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração), que presidiu o Instituto da Cidadania, que foi o precursor do Instituto Lula. Nessa época eu escrevi o livro de memórias dos trinta anos dele à frente da CBMM, companhia de nióbio que detém 90% do mercado mundial. Durante esse lançamento, a Marisa, conversando com o Camargo, curiosa por saber como era escrever um livro de memórias, o Camargo disse pra ela escrever o seu próprio livro de memórias. Eu concordei com ele e disse que gostaria muito de ler. E o Camargo fez uma brincadeira comigo, dizendo ‘você não vai ler, você que vai escrever’. E aí na hora virou uma coisa assim, eu disse: ‘Marisa, podemos começar na semana que vem?’. Ela ficou desconversando. Ao longo dos anos, eu encontrava pouco com ela, a cada três, quatro anos, mas eu sempre dizia ‘olha, quando você estiver pronta, conta comigo que eu estou aqui pra isso’. No final de 2015, ela topou fazer. Mas a gente adiou, e não fizemos nenhuma entrevista. Depois, fomos surpreendidos com o AVC da Marisa, e eu pensei em não fazer mais o livro. Por que eu queria fazer um livro de memórias, não uma biografia. Mas na véspera da morte da Marisa, eu fui visitá-los no hospital e o Lula, que conhecia a história do livro, me interpelou na porta do elevador: ‘Você fez o livro da Marisa?’. Eu disse que não. Então ele me falou: ‘Agora sou eu que vou ter te contar o que ela ia te contar’. E eu não pensava mais em fazer o livro. Mas naquela semana eu pensei e pensei e decidi que ia fazer uma biografia.

Então, o principal narrador deste livro, além dos documentos que você certamente pesquisou, foi o Lula?

Não foi, por que o Lula me deu uma entrevista. Por dois anos eu entrevistei noventa e poucas pessoas, filhos, noras, irmã, amigos, um irmão, pessoas da infância da vida da Marisa, vários interlocutores. O Lula me indicou pessoas para falar e me pediu para deixar a entrevista com ele mais para o final. Eu comecei a pedir entrevista pra ele dez meses depois de começar o livro e em 2018, quando eu ia fazer a segunda entrevista, ele foi preso. Cheguei a mandar perguntas para Curitiba que não foram respondidas e, quando ele saiu da prisão, 580 dias depois, eu já tinha terminado. Então eu tenho uma entrevista com o Lula, muito boa, mas eu fui comendo pelas beiradas e falei com todo mundo que eu podia.

O que você acha que levou a dona Marisa a decidir, em 2015, a fazer o livro, quais os fatores que a levaram a decidir que era bom?

Eu não tenho esta resposta, eu tenho intuições. Primeiro, por que no começo ela era ainda a primeira-dama, depois tinha a disputa, os processos eleitorais, eleger a Dilma, reeleger a Dilma. A Marisa sempre foi uma pessoa muito avessa a entrevistas, sempre teve preocupação, ‘ah, e seu eu falar alguma coisa que possa atrapalhar PT, o Lula, o governo’. Então ela sempre foi muito recatada nesse sentido de não querer se expor. Ela sempre dizia que a pessoa pública era o Lula, e não ela, que ela era dona de casa e mulher dele. Em 2015 já havia denúncias, acusações, processos na Justiça, e na minha opinião (outro fator) é que as pessoas não ouviam a Marisa. Ali começou a coincidir que o Lula não era mais presidente, então não tinha por que se preocupar com o destino eleitoral dele, e ao mesmo tempo ‘ninguém ouve a minha versão’, e ela viu nesse momento que era hora de falar. Em agosto de 2015, quando ela me falou pela primeira vez que queria fazer as memórias, ela me disse: ‘Eu falei com o Lula, falei com meus filhos, com as minhas noras, o que vocês acham, devo fazer ou não devo’. Então lá surgiu a decisão de contar a história. Era uma ideia de memórias, diferente de biografia, que era contar tudo e eu colocar no papel a história dela, com ela contando. Eu não tive essa oportunidade. Preferia mil vezes que ela tivesse contado e participasse hoje do lançamento do livro.

Créditos: Nair Benedicto/reprodução

Dona Marisa, na década de 1980, época de nascimento do PT

 

Qual o ápice do teu livro, aquele que você julga ser o mais emocionante, seja pela dramaticidade, seja pela alegria?

Isso eu não sei te responder. É um livro que tem muitas histórias e episódios saborosos, infância, juventude, o casamento com o Lula, o namoro, o cerco… O Lula foi um, um…

Stalker…

Foi um insistente, um stalker, enfim. Mas eu acho que emocionante é quando no final da vida aquele momento de lavajatismo, de fake news, quando a polarização política começou a afetar a saúde da Marisa, que já não queria mais sair de casa, começou a fumar dois maços de cigarro por dia, aí sofre o aneurisma cerebral, então você já começa a perceber que aquela condução coercitiva (do Lula pela Polícia Federal, em março de 2016), os filhos sendo acusados, vazamento de conversas privadas dela com os filhos, começa ali um momento que eu acho que os leitores que o livro vier a ter vão sentir na pele que ela foi vítima mesmo de uma perseguição implacável.

Você então acha que quando o Lula diz que a Lava Jato foi a responsável pela morte da dona Marisa não é exagero, há algo de concreto nessa acusação?

Eu falei com médicos que não cravam nem uma coisa nem outra, mas todos eles falam que a Marisa estava se cuidando mal, estava angustiada. E ela, muito leoa, percebendo ali… Tanto no apartamento do Guarujá quanto no sítio de Atibaia, a Marisa tem papel fundamental. Ela era dona da cota do apartamento da Bancoop no Guarujá…

Ela se sentia culpada?

Então, o livro constrói um pouco essa sensação, que ela naquele momento, ela, que passou a vida preservando e cuidando e fazendo tudo que estava ao alcance dela para trabalhar a favor do PT, do Lula, do governo, do projeto político, e naquele momento ela começou a sentir que ‘puxa, eu que sempre trabalhei com todo o zêlo, hoje posso estar sendo uma das responsáveis pela criminalização do PT, que é meu partido, e de uma possível prisão do meu marido’. No final de 2016, ela conversava com interlocutores assim: ‘Não deixem fazer o que estão fazendo com a minha família, não deixem prender o meu marido’. Estava muito culpada naquele momento, é o que minha apuração conseguiu mostrar. Se eu puder afirmar, por todas as entrevistas que fiz, a Lava jato contribuiu para a deterioração da saúde dela, uma tensão muito grande, permanente, que contribuíram para o acidente vascular cerebral que causou a morte dela.

O entorno dela, essas pessoas que conviviam com ela, tentaram demovê-la dessa sensação de culpa, creio eu.

Sim, tentaram, o tempo todo.

Eu penso que quando um autor produz um livro como esse, fica imaginando, embora tente afastar grandes expectativas pra não ficar angustiado, como esse livro vai se interpretado, ou como vai ser usado pela oposição ou por aqueles que têm bem-querer pela dona Marisa. O que você imagina em relação a isso?

O livro vai ser mais um objeto que será usado nessa polarização política, mesmo sem ser lido. Fico pensando na repercussão do filme Democracia em Vertigem. Eu sou muito pouco conhecido, não estou na Netflix, mas fico pensando que muito provavelmente o Bial, por exemplo, vai dizer que esse livro é de um menino e é uma ficção alucinada. Eu gostaria que as pessoas lessem, a oposição ao PT, as pessoas que foram artífices dessa criminalização e tivessem uma abertura para conhecer e entender a Marisa e parassem de repetir que ela enriqueceu vendendo Avon. Estamos vivendo uma polarização em que ouve-se pouco e fala-se muito. Fico aqui imaginando como vai ser essa repercussão. Mas tenho ficado feliz pelo carinho que pessoas têm demonstrado pela Marisa, afirmando que querem ler logo o livro; eu não tinha essa dimensão. Muitas pessoas revelando carinho e afeto por ela.

É um livro candidato a virar filme?

É um livro muito filmável, tenho recebido comentários sobre isso, de pessoas que leram as provas em PDF. Acho que temos chance. Mas não recebi nenhuma proposta ainda.

Há algo que você queira acrescentar, que eu não perguntei e que você acha importante?

Acho que não.

 

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