Pedro Tierra: ”Pesadelo – Narrativas dos Anos de Chumbo”
Publicado originalmente na Carta Maior
Obra resgata uma dívida da literatura brasileira de ficção com as novas gerações, sobre os crimes da ditadura civil-militar que submeteu o país entre 1964 e 1988
Conversação sobre pesadelos. Começo pelo título. Por que “Pesadelo”?
O Brasil é um país que anda em círculos. E somos frequentemente acossados por pesadelos, mais ou menos duráveis. Ninguém, em sã consciência, poderia prever a extensão do desastre para onde nos encaminhamos a partir de 2016 com a violação da Carta de 88 e a derrubada da Presidente Dilma, eleita em 14. Embora os sinais fossem por demais evidentes. E alguns de nós tivéssemos a convicção – a partir da experiência vivida – do reduzido apreço das oligarquias brasileiras pela democracia. Esse livro foi escrito nos últimos três anos. Nasceu de uma premonição. Sem lhe dar importância, insistia em afastá-la, mas ela voltava. Algo assim, você olha em torno, lê, apalpa e percebe: eu já passei por esse lugar ou, já vivi esse momento ainda que com ligeiras modificações de ênfases e personagens… Sigo vivendo num país que não cultiva memória – portanto, sempre corre o risco de repetir suas tragédias – então bate à minha porta o poeta Vladimir Maiakovski e o mandato social que formulou durante o vendaval da Revolução de Outubro e me convoca a escrever, a por no papel as premonições como sinal aceso sobre os caminhos que abriremos com nossos próprios pés…
Depois de alguns anos você volta a abordar temas relativos aos “anos de chumbo”. Ainda há algo a dizer sobre o período, além do que já foi dito?
Penso que há ainda muito mais a dizer sobre aquele período do que já foi dito. As zonas de sombra predominam sobre as que foram esclarecidas pelas abnegadas pesquisas e buscas de familiares, militantes, jornalistas, historiadores. Então, o escritor é chamado a dizer por meio da ficção a verdade que o relatório, o boletim, o depoimento não capturam. Por isso a criação literária adquire uma dimensão de testemunho histórico que os memorandos burocráticos não alcançam. Assim, a responsabilidade e o compromisso do escritor com o que escreve assumem uma condição definidora de sua própria existência como agente social e como artista. Desse modo, o escritor se liberta da solidão do ato de escrever, como testemunha, para integrar-se nessa incessante busca dos oprimidos nas sociedades e nas culturas de resistência: decifrar, e não raras vezes denunciar, o sentido ou o sem sentido das tiranias que atormentam a história humana.
Afinal, numa leitura histórica, quais as semelhanças e as diferenças entre o golpe de abril de 1964 e a situação que o país vive hoje e o que a literatura tem a ver com isso?
Abro o “Pesadelo” com uma Advertência: “O círculo perfeito: as tiranias no Brasil ora nos perseguem, ora se anunciam. Ora vestem fardas, ora envergam togas. Ainda não conseguimos contar e sepultar os mortos daquela que anoiteceu o país por 21 anos e seus herdeiros já arrombam nossa porta. De tal modo que não estou seguro sobre se as narrativas que lhes ofereço nestas páginas serão relatos do já vivido ou premonições sobre o destino que nos aguarda.” Diz nas primeiras linhas. As formas como o autoritarismo patriarcal do senhor de escravos, do senhor de engenho e seus herdeiros se expressam na sociedade brasileira são cambiantes e extraordinariamente eficientes. O exercício quotidiano converteu-as em cultura, cristalizou-as em costumes e comportamentos, basta verificar sua permanência que já dura mais de cinco séculos… Os setores populares que se opõem a ela padecem de um mal crônico: golpeados, em geral, por uma repressão feroz, não conseguem preservar e garantir o acúmulo das lutas anteriores. Rompe-se assim o laço entre uma geração de lutadores e a geração seguinte. Resultado: estão, não raro, condenados a recomeçar do zero…
A primeira semelhança entre 1964 e 2018 é o bloco de forças que se formou para voltar ao governo em três etapas: o golpe de 2016, a prisão da maior liderança popular do país, em abril e a eleição tutelada de 2018. São o mesmos personagens: os mesmos interesses, os mesmos segmentos sociais e, em alguns casos, até as mesmas famílias. O que revela a persistência da cultura autoritária de que falava há pouco. A segunda é brandir o discurso anticorrupção, para esconder a chaga da desigualdade social. Igualmente cínico como o de cinquenta anos atrás. A terceira é a retórica nacionalista mais superficial, mais inconsistente e mais desmentida pelos fatos: as políticas de entrega dos recursos naturais (petróleo, minerais, águas, ativos florestais…), a empresas estrangeiras; nas relações internacionais, alinhamento automático e submisso ao Departamento de Estado. A lista seria longa.
Vamos às diferenças: em 1964 eles vestiam farda. Foi um ato explícito de força. Em 2016 eles vieram vestidos de negro. Envergaram togas. Moveram o aparato judicial para criar o ambiente propício, violar a Constituição e impedir a Presidente eleita legitimamente. E ela foi derrubada numa farsa histórica, caricatural, por um Congresso desmoralizado aos olhos da sociedade, mas útil para impedir que o país chegasse às eleições previstas para 2018 com os setores populares em situação de vantagem para alcançar o quinto mandato consecutivo.
Em seguida prenderam o Lula, o candidato que liderava todas as pesquisas de opinião, para a presidência da república. Dessa vez os militares não utilizaram tanques, preferiram tutelar o processo eleitoral para impedir a vitória das esquerdas. Menos desgastante. E ainda salvaram as aparências. O que tem a ver a literatura com tudo isso? Tudo.
Deve exercer seu papel crítico. Ser um sinal de contradição. Não renunciar ao pensamento. Posicionar-se contra a vulgaridade fascista que toma conta do país, contra as simplificações e contra a manipulação criminosa das massas de trabalhadores por todos meios, métodos e instituições empresariais ou confessionais… E resistir.
Apostar numa narrativa de resistência a partir do registro simbólico – na poesia, no romance, na música, no teatro, no audiovisual – das condições concretas da vida do povo, da gente que vive, sobrevive numa situação aparente de guerra de todos contra todos, mas no final das contas trata-se de uma guerra contra os pobres, os jovens, os negros, as mulheres, os vulneráveis de sempre, os LGBTs, contra quem se move a máquina repressiva do Estado.
O que chama de literatura de resistência?
Toda tirania gera no seu exercício explícito ou dissimulado o impulso, a força que um dia a lançará por terra. A literatura, com seu arsenal de símbolos, contribui para gerar consciência sobre as situações opressivas. A boa literatura incomoda, denuncia, sacode cadeias… é necessário sacudir cadeias. Para lembrar Rosa Luxemburgo: “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”.
Se for capaz de comover, se for capaz de produzir consciência, a literatura cumprirá seu papel de auxiliar a resistência às tiranias. O passo seguinte não pertence a ela, pertence aos movimentos sociais que organizam, tarefa extremamente complexa, a ação dos oprimidos. À literatura compete narrar para além do simples relato a ação que brota da experiência e das vontades coletivas.
Não é aproximar demasiado a criação literária da luta política em prejuízo da própria literatura?
Escrever em situações de opressão é sempre um risco. Porque todo ato de criação é essencialmente um ato de liberdade. Dito de outro modo: a liberdade é o fundamento primeiro de todo ato de criação. Por isso é confundida – e combatida – como transgressão. Foi para deter essa capacidade de criação que os nazistas queimaram 20 mil livros em Bebelplatz, Berlim, em 1933. Não conheço a lista dos títulos consumidos pelas chamas, embora, considerando o prodigioso talento dos alemães para organizar tudo que fazem, é possível que ela exista. Consta que ali se queimaram livros de Sigmund Freud, Karl Marx, Stefan Zweig, Thomas Mann… que depois de 1945, com a derrota da tirania nazista foram reconhecidos no mundo inteiro como grandes obras da psicanálise, da economia e ciências sociais, da novela, do romance…
Esse registro é para falar dos riscos de quem, com seu trabalho quotidiano, cria cultura dentro de uma sociedade em conflito e exerce seu ofício diante da força repressiva do Estado. Hoje, o exerce na condição de resistência e rebeldia diante da força tirânica do capital. O capital opera a produção industrial do medo, a insegurança como regra para quem vive do trabalho e exibe novamente, como no fim do século XIX a truculência do Estado a seu serviço.
A outra face do risco diz respeito apenas ao próprio escritor, sua atitude e compromisso diante do seu ofício. Leio um parágrafo de André Gide que nos traz o argentino Ernesto Sábato nos seus comentários reunidos no pequeno volume “O escritor e seus fantasmas”: “A coisa mais difícil quando se começa a escrever, é ser sincero. Será preciso sacudir esta ideia e definir o que é sinceridade artística. Eu acho isto, provisoriamente: que a palavra jamais precede a ideia. Ou melhor: que a palavra seja sempre uma necessidade para ela; é preciso que ela seja irresistível, insuprimível, e o mesmo vale para a frase, para a obra inteira. E para a vida inteira do artista, é preciso que sua vocação seja irresistível, que ele não possa não escrever.”
A ditadura Vargas teve em “Memórias do Cárcere” um duradouro testemunho de denúncia. Por que para os “anos de chumbo” entre 1964 e 1985, aparentemente a literatura brasileira não produziu algo semelhante?
Graciliano Ramos construiu uma obra singular. Uma das mais significativas escritas em língua portuguesa. Leio uma página de Graciliano e tenho a impressão de ela não foi escrita, ou melhor, foi escrita a canivete. Cortada, entalhada na madeira como um artesão nordestino recorta a matriz de uma xilogravura que depois será impressa no papel…
Penso em “Memórias do Cárcere”. Para nós brasileiros, habitantes desse país que se move em círculos: a experiência narrada data de 1936, durante a ditadura Vargas, que duraria mais nove anos. As notas ficariam guardadas, trabalhadas na carpintaria oculta de Graciliano até se organizarem num testemunho. O mais alto testemunho do que fora a vida dos prisioneiros nos tempos sombrios do Estado Novo. Como toda grande obra literária, “Memórias do Cárcere” vai além do factual, do pitoresco. Mergulha em águas profundas beneficiadas pelo amadurecimento do escritor, pelo domínio técnico sobre a narrativa, pelo tempo que levou para chegar à forma definitiva. Não nos enganemos, a forma aqui é conteúdo. Essa unidade permite a “Memórias do Cárcere” alcançar o critério indispensável que caracteriza a grande literatura.
O ditador deposto em 1945 por seus próprios amigos, se retirou para o recesso de S. Borja e elegeu um general seu sucessor. Cinco anos depois voltou ao governo, agora por meio de eleições democráticas. Uma dança das cadeiras… A primeira edição de “Memórias do Cárcere” foi publicada em 1953, por José Olímpio, quase duas décadas depois dos fatos que narra. Graciliano não chegou a vê-la impressa. Falecera meses antes. Fatalmente aquele registro ganhara novos significados, por se tratar de uma poderosa denúncia contra a tirania da década de 30.
Vargas, por seu lado, realizava um mandato democrático e nacionalista sob forte pressão da imprensa reacionária, da gritaria das empresas estrangeiras de petróleo contra a criação da Petrobrás e, naturalmente, de um fator que desestabilizava, como hoje desestabiliza, qualquer governo dotado de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo na América Latina: a existência e o funcionamento de uma embaixada dos EUA reconhecida em seu território…
No entanto, contava, até ali, com expressiva mobilização popular em seu favor. Resistiu por mais um ano: morreria com um tiro no peito na madrugada de 24 de agosto de 54. Um suicídio solitário e digno no Palácio do Catete. Suficiente para desmontar a estratégia de poder de seus inimigos por uma década. Saiu da vida para entrar na História…
O que tivemos depois de 1964? Uma produção literária significativa, mas dispersa. Um número maior de escritores produzindo. A resistência inicial à tirania fardada veio por outras linguagens. Começou pelo teatro, que vivia um momento fecundo e inovador com Boal, Guarnieri, Flávio Rangel, José Celso, Dias Gomes, Jorge Andrade; a música ofereceu a produção de elevada qualidade, ousadia e talento de uma geração que marcou a história da música popular: Tom, Carlos Lyra, Nara, Betânia, Elis, Edu Lobo, Torquato Neto, Chico, Caetano, Gil. A poesia recolhe o verso agreste de João Cabral e pelo teatro e pela música amplia o horizonte para o alcance de “Morte e Vida Severina” que fora impresso em 1954 e ganhou a vestimenta melódica de Chico Buarque; com Ferreira Gullar, “O açúcar”, “Dentro da Noite Veloz”, “Poema Sujo”. Os romances vieram com Callado, “Quarup”, “Reflexos do baile”, “Sempreviva”; Cony “Pessach: a travessia”; Ivan Ângelo, “A Festa”; Loyola Brandão, “Zero”; João Ubaldo, “Sargento Getúlio”; Osman Lins, “Avalovara”, Clarice Lispector, “A hora da Estrela”; Érico Veríssimo, “Incidente em Antares”, se nos afastarmos da ficção é preciso registrar Gorender, “Combate nas Trevas”, um olhar agudo e doloroso sobre a trajetória da resistência à ditadura militar oferecido por quem a combateu e refletiu sobre nossos dramas do período. Aparentemente a literatura brasileira não teve fôlego suficiente para nos oferecer alguém do porte de Graciliano Ramos na geração que o sucedeu. Nenhuma literatura produz um Dostoievski e outro, logo na geração seguinte… Outros escritores refletiram e escreveram sobre outro país…
O papel dos intelectuais no continente, “sempre oscilando entre a revolução e a tentação do suicídio…”
Salvo engano, essa expressão sobre os dramas dos intelectuais está numa página de Darcy Ribeiro. Uma figura apaixonante, criativa, construiu um olhar original sobre o Brasil e os brasileiros, encarnou como poucos nossas virtudes e nossos defeitos. Vertiginoso e anárquico. Bertha passou boa parte da vida tentando organiza-lo. Em vão… Gente como ele, que ao longo de toda a trajetória nunca renunciou ao pensamento, nutrido por uma paixão profunda pelo povo brasileiro, é indispensável para compreendermos o que há de belo e terrível no que somos. Esse é um aspecto fundamental do trabalho dos intelectuais: manter a independência de espírito e redesenhar continuamente os códigos para decifrar nossos comportamentos, nossas perspectivas como povo.
O intelectual identificado com a necessidade de transformações sociais, será sempre presa dessa angústia de fazer parte de algo que remete a sonhos coletivos, a vontades coletivas. Talvez para compensar a doença profissional da solidão. Para muitos essa doença resvala para a ilusão de acreditar apenas no próprio talento…
Darcy respondeu a ela da melhor maneira: “…Sou um homem de causas. Vivi sempre lutando, pregando como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível teria sido ficar ao lado dos nos venceram nessas batalhas.”
Soprar a poeira, numa hora sombria como essa que vivemos, sobre o pensamento de intelectuais como Darcy me obriga encarar e tratar da tortura e da abjeção, ao oferecer essas narrativas dos anos de chumbo: “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar conosco a cicatriz do torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar, machucar os pobres que lhes caem nas mãos. Ela porém, provocando crescente indignação, nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.
Para quem você escreve?
Vivo em tempos de tirania. Escrevo para quem está pré-disposto a indignar-se e lutar contra ela.