O golpe de Estado deflagrado na Bolívia no último domingo é o mais recente capítulo do preocupante avanço do fundamentalismo religioso na América Latina. Para além da convulsão social que tomou o país nos últimos dias, o desconforto dos setores religiosos dominantes contra Evo Morales já era perceptível antes mesmo da polêmica eleição do dia 20 de outubro. Cumpre, portanto, um breve olhar sobre a atual situação religiosa da Bolívia e seus possíveis contornos no atual golpe às instituições democráticas do país.

Em primeiro lugar, é importante se ter em mente de que a população boliviana é significativamente religiosa, sobretudo cristã. Segundo o último levantamento da ACN, a atual composição religiosa da Bolívia é representada por 78,9% de católicos, 13,7% de evangélicos e 1,3% de outros cristãos, o que implica dizer que 93,9% da população boliviana está representada em algum segmento cristão. Em proporção bastante menor estão as religiões tradicionais, que representam quase 2,8%, enquanto ateus e agnósticos compõem menos de 1,9% da população.

Desde a segunda metade do século XX, o cristianismo boliviano passou por muitos caminhos contraditórios. Do ponto de vista católico, após séculos de dominação cultural e espoliação material do continente americano, o avanço da Teologia da Libertação na América Latina, nos anos 1960, significou uma nova interpretação bíblica, lastreada pela justiça social e o respeito à cultura das populações ameríndias. Entre os protestantes, a criação do seminário Wesley, em Santa Cruz de La Sierra em meados dos anos 1950 também representou um importante incremento nas lutas sociais, uma vez que o seminário não apenas formou pastores camponeses aimarás como também organizou programas de alfabetização voltados para uma consciência social mais ampla.

Anos mais tarde, no entanto, o protestantismo boliviano seria sacudido por uma onda de “avivamento” pentecostal, ocasionado principalmente pelas cruzadas de milagres do pregador Julio César Ruibal. Inspirado nos avivalistas norte-americanos como Billy Graham e T.L. Osbourne, nos quais o conservadorismo político é temperado por uma teologia inflamada por curas milagrosas e batalhas espirituais, Ruibal fundou um influente movimento estudantil evangélico nas classes médias de La Paz e Santa Cruz de La Sierra, o que lhe rendeu a simpatia do então ditador Hugo Bánzer Suárez.

Para a ditadura de Bánzer, o movimento pentecostal de Ruibal era uma arma poderosa para enfraquecer a oposição política dos universitários, que estavam cada vez mais associados à esquerda revolucionária. Não por acaso, o presidente se empenhou no patrocínio das cruzadas do jovem pregador pentecostal, inclusive dando colaboração logística e permissão para uso do estádio estatal em La Paz, além de conceder espaço no canal de tv estatal. Todos esses movimentos colaboraram decisivamente para a expansão do pentecostalismo na Bolívia, que entre os anos 1960 e 1980, chegou a se multiplicar mais de 500%.

Durante esses anos, o conservadorismo católico também marcou presença na cena pública. A Ação Católica Boliviana, movimento político baseado na doutrina social da Igreja, ensejou na criação do Partido Democrata Cristão (PDC). Fundado originalmente com o intuito de ser uma “terceira via” no contexto boliviano, o PDC permaneceu sendo uma alternativa centro-esquerda católica até aproximadamente 2005, quando passou a liderar oposição a Evo Morales em uma coalisão liberal-conservadora aliado a outros partidos de direita.

A chegada do então líder sindical Evo Morales à Presidência em 2006, aliás, se manifestou tensa com os cristãos conservadores desde os primeiros anos de mandato. Embora se considere católico, Evo é pertencente à etnia uru-aimará, o que o torna o primeiro presidente indígena da história boliviana. Isso fez com que a sua plataforma política desde o início estivesse associada aos povos e costumes ameríndios. Tal aproximação ficou ainda mais evidente em sua cerimônia de posse, quando vestido do característico poncho colorido, colar de flores e coroa, escolheu realizar sua posse no local sagrado andino de Tiawanaku, o que desagradou grupos cristãos que consideram as culturas indígenas originais como práticas pagãs de idolatria.

Créditos: Evo na posse de 2006

 

O desagrado ficou ainda maior quando, em 2009, Evo Morales propôs a criação de uma nova Constituição no país. Além de propor a reeleição, uma novidade constitucional que beneficiaria pessoalmente o presidente, a nova Constituição estabelecia um Estado boliviano “independente de religião” – eliminando assim a posição privilegiada do catolicismo como crença oficial – e determinar que “o estado respeita e garante a liberdade de religião e crenças espirituais, de acordo com suas convicções”, os setores conservadores da Igreja Católica iniciaram uma verdadeira batalha contra a nova Constituição por meio da opinião pública. Apelando para uma guerra entre o bem e o mal, líderes da oposição lançaram uma campanha intitulada “Eleja Deus, vote NÃO” como forma de desencorajar religiosos a votar na primeira constituição laica da história da Bolívia.

Além disso, no entendimento dos opositores, a nova Constituição abria entendimento para que a união civil de homossexuais fosse legalizada, pauta que causou indignação generalizada em católicos e evangélicos. Curiosamente, o texto se referia apenas para os “direitos sexuais iguais e proibindo qualquer forma de discriminação”, mantendo portanto a definição de casamento como “a união entre homens e mulheres” e estabelecendo essa união como a base de direitos como adoção e herança. Logo, casais gays têm esses direitos negados na Bolívia – mas os rumores que afirmavam o exato contrário já estavam demasiadamente espalhados no debate religioso do país.

Mas nada pioraria mais a situação entre Evo Morales e os religiosos cristãos do que as mudanças no Novo Código de Sistema Penal. Em dezembro de 2017, Evo propôs uma série de mudanças na legislação do país. Dentre elas, estão os artigos 88 e 153, o que causou controvérsia entre grupos de direita, conservadores e fundamentalistas reverberando, inclusive, no Brasil.
Em linhas gerais, o artigo 88 caracterizava crime o “recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto” prevendo pena de 7 a 12 anos de reclusão. Em janeiro de 2018, a Igreja Católica avisou que o artigo arriscava criminalizar a atividade missionária na Bolívia. As igrejas evangélicas, por sua vez, também expressaram a sua oposição e afirmaram que esta disposição violava a liberdade religiosa e de consciência. Como resposta, o presidente do Senado referiu que a disposição apenas pretendia punir atividades ilegais e que se destinava a prevenir o extremismo militante na Bolívia, a exemplo do Boko Haram. Mas isso não foi suficiente para controlar os protestos e o alto nível de suspeita que agora envolviam Evo Morales a uma tentativa de criminalizar o cristianismo na Bolívia.

Soma-se a isso o também polêmico artigo 153 do Novo Código Penal, que previa a legalização do aborto para adolescentes ou mulheres que fossem “estudantes ou tenham sob seus cuidados crianças, idosos ou pessoas deficientes”. Como reação, vários setores da sociedade civil, em especial a Ordem dos Médicos, fizeram forte oposição à mudança, seguindo coordenadamente com a atuação dos bispos católicos, sob a liderança do cardeal Sergio Gualberti.

Todos esses protestos fizeram com que Morales recuasse, informando no início do ano passado que enviaria uma carta à Assembleia Legislativa revogando as mudanças no Novo Código de Sistema Penal “para evitar confusões e que a direita deixe de conspirar com argumentos para gerar desestabilizações no país, com desinformação e mentiras”.

Nada disso foi capaz de arrefecer os ânimos dos religiosos conservadores contra Evo. Em meio ao forte clima de polarização, personagens histriônicos como Luis Fernando Camacho – o autoproclamado líder da mobilização popular que afastou Evo Morales da Presidência – ganhou protagonismo ao utilizar um forte discurso fundamentalista cristão, que mescla elementos do neopentecostalismo evangélico com o integrismo católico, formando assim um todo coerente na ofensiva racista contra a pluralidade religiosa e cultural dos povos andinos e na defesa da família tradicional baseada nas relações patriarcais de gênero. Esses fatores, além dos imbróglios políticos e eleitorais, certamente ajudam a explicar o combustível cristão que têm inflamado as manifestações populares favoráveis ao golpe de Estado boliviano.

(Rafael Rodrigues da Costa é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e bacharel em Sociologia pela FESPSP. Atualmente pesquisador-visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA))

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