O que os chilenos têm de fazer para exercer sua soberania?
Há três semanas o Chile vive a maior crise política desde a ditadura, que afeta gravemente a ordem pública. Iniciada com o aumento da tarifa dos transportes, a convocatória a saltar roletas do metrô, a partir da sexta-feira, 18 de outubro, transformou-se em uma mobilização social permanente com mais de 85% de apoio popular, segundo pesquisa.
Domingo, 20 de outubro, o presidente Sebastián Piñera declarou guerra em cadeia nacional, e com militares nas ruas, estendeu o toque de recolher a várias regiões. Mas, na sexta-feira seguinte, 25 de outubro, cerca de dois milhões de pessoas tomaram as ruas de todas as cidades, 1,2 milhão no centro de Santiago, a maior manifestação do país desde a ditadura.
Com somente 180 funcionárias e funcionários em todo o país, o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) não consegue cobrir todos os eventos, mas informa que seis mil pessoas foram detidas, sendo mais de seiscentas crianças e adolescentes, duas mil feridas e 22 mortas. O jornal The New York Times acusou a polícia de mutilar e cegar manifestantes.
De 1990 a 2017, houve 261 pessoas com lesões oculares no mundo devido a projéteis não letais de polícias e forças armadas, incluindo cifras do Iraque, Palestina e América Latina. Em três semanas de protestos, no Chile, 202 pessoas foram vítimas de trauma ocular. Pelo que o Conselho de Medicina chamou de epidemia e a ONU pediu o fim dos projéteis.
Desrespeitar toque de recolher não é delito na legislação, e reunião pacífica é um direito. A maioria das detenções foi arbitrária, o que indica uma violação grave e sistemática de direitos humanos. Em três semanas, o INDH apresentou mais de duzentas acusações de tortura, metade desse tipo de ação em toda sua história, sendo cinquenta por violência sexual.
As Forças Armadas e os policiais atacam civis, mas não conseguem proteger o metrô de incêndios criminosos e o comércio de saques massivos. O presidente alega que as violações são casos isolados e foi obrigado a cancelar a organização do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas.
Há uma missão de observação da Alta Comissionada de Direitos Humanos da ONU, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também pediu uma visita, entre outras missões de observação da sociedade civil, como a Anistia Internacional. Investiga-se se o presidente cometeu violações graves e sistemáticas e crimes de lesa humanidade.
Primeiro país a adotar o neoliberalismo, a ditadura civil-militar durou de 1973 a 1990. Privatizou a previdência social, a saúde, a educação e os serviços básicos como água e luz. Após o plebiscito de 1988, que retirou Augusto Pinochet da presidência, ele ainda comandou as Forças Armadas por oito anos, aposentou-se e seguiu por quatro anos como senador vitalício.
Os governos posteriores não reverteram os pilares neoliberais da ditadura e, inclusive, avançaram alguns pontos. No seu último mandato, Michele Bachelet realizou um processo constituinte com assembleias populares e apresentou um projeto de lei que ficou inconcluso. E, após a vitória nas urnas, Piñera ignorou o processo.
Hoje em dia, dados oficiais indicam que 20,9% da população chilena vivem na pobreza. Estudos apontam que a pobreza alcança 29,4% da população e chega ao extremo de afetar a 46,1% na região da Araucânia, território ancestral do povo indígena Mapuche.
O modelo de previdência que o ministro da Economia Paulo Guedes quer implatar no Brasil paga 80% das aposentadorias abaixo do salário mínimo e 50% abaixo da linha da pobreza. Acontece que, diferente do Brasil, no Chile não há cobertura de saúde pública universalizada, como Sistema Único de Saúde (SUS), e todas as universidades cobram taxas, portanto são pagas. São 50 anos de desigualdade extrema.
Pela primeira vez no Chile, 143 sindicatos, plataformas e movimentos sociais se juntaram na Unidad Social. São movimentos pelo direito à água, à assembleia constituinte, aos direitos das mulheres e migrantes, à educação e à saúde gratuitas, à moradia e à terra, à justiça e à memória para os crimes da ditadura; contra a previdência privada, os tratados de livre comércio e os pedágios.
Os partidos de oposição, que vão da esquerda até a centro-direita, incluindo comunistas, liberais e cristãos, apoiam as demandas por mudanças estruturais, e o Congresso chileno iniciou o trâmite de um projeto de plebiscito para que a população decida por uma nova Constituição. Setores da base do governo já admitem essa possibilidade.
Vários partidos apresentaram uma acusação constitucional contra o ex-ministro do Interior, Andrés Chadwick, primo do presidente, demitido após os protestos. Ainda assim, discute-se uma denúncia constitucional contra o próprio Piñera, como responsável pelas violações de direitos humanos ocorridas durante as manifestações.
Milhares de pessoas realizaram assembleias populares em bairros em várias cidades. Segundo pesquisa, as demandas mais importantes para a população são: 1) previdência e aposentadoria; 2) saúde; 3) educação; e 4) emprego e renda. Estão de acordo com a mudança da Constituição 83,9% da população, e 75,7% querem a mudança por intermédio de assembleia nacional constituinte.
Com um “recorde” de somente 9,1% de aprovação, o presidente insiste em criminalizar os protestos. Na última quinta-feira, 7 de novembro, convocou o Conselho de Segurança Nacional e anunciou um pacote de medidas de segurança com propostas como lei contra manifestantes que cobrem os rostos e reforço do sistema nacional de inteligência.
Enquanto isso, os partidos de oposição seguem divididos em acusar ou não o presidente e perdem apoio popular, conforme pesquisa. Mas prefeitas e prefeitos ganham apoio popular, e a Associação de Municípios do Chile, que reúne trezentos 345 municípios do país, convocou uma consulta nacional sobre uma nova Constituição.
O povo do Chile sofre com a desigualdade extrema e espera mudanças há trinta anos, realizou assembleias populares e está ao lado dos movimentos sociais que se uniram por mudanças estruturais. O Chile vive uma das maiores mobilizações da história. Mas o presidente Piñera não aceita a soberania do povo, prevista no artigo 5º da Constituição, através de eleições e plebiscito.
O que o povo chileno tem que fazer para exercer sua soberania?