Discurso de Lula em São Bernardo e a política da virtude
Ao companheiro e mestre Reginaldo Moraes
Eu estive em São Bernardo no dia 7 de abril de 2018. Naquele já longínquo sábado, havia muita gente ao redor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, mas muito menos gente do que esperávamos. Clima de derrota. Direção batendo cabeça. Gente achando que Lula não deveria se entregar para a Polícia Federal.
Vínhamos de uma enorme derrota nas eleições municipais de 2016. De derrota após derrota nas vãs tentativas de desviar de moros e dallagnois, com seus cúmplices das instâncias superiores dos tribunais federais.
Lula estava firme, como sempre. Mas, os manifestantes tinham dúvidas: Lula se entrega ou não se entrega? Lula teve dificuldades em persuadir dirigentes e manifestantes de que deveria enfrentar a dita Justiça de frente, sem fugas. Após o discurso, naquele 7 de abril, Lula volta ao prédio do Sindicato e após várias tentativas frustradas – sempre impedido pelos militantes mais apaixonados – finalmente entra no carro da PF e vai a Curitiba, num aviãozinho monomotor, naquela noite escura.
Lula iniciou sua fala, já neste outro sábado, 9 de novembro de 2019, relembrando este momento de dúvida na militância. “Quando um ser humano, um homem ou uma mulher, tem clareza do que quer na vida, tem clareza do que eles representam e tem clareza que os seus algozes estão mentindo… eu tomei a decisão de ir à Polícia Federal, porque eu precisava provar que Moro não era um juiz, era um canalha que iria me julgar”, já deixando, de passagem, muito claro seu sentimento sobre o caráter do atual ministro da Justiça.
Encarar o sistema de frente, sem fugir nem mentir em delações. Esta postura é fundamental para limparmos o terreno do diálogo com a sociedade. A busca da justiça e da verdade e a consciência tranquila. Não a consciência de classe dos teóricos. A consciência do povo, do direito de colocar a cabeça em cima do travesseiro e não ser atormentado por fantasmas. Nem Moro, nem Dallagnol, nem Bolsonaro ou Guedes têm esse direito. A consciência pesa. Lula, na solitária em Curitiba ou no seu velho apartamento em São Bernardo, dorme bem. Descansa para um novo dia de construção do país, com energias renovadas.
A menção a Marielle – a guerreira da esquerda, a grande vereadora do RJ, a defensora das mulheres, aquela que foi assassinada por suas ideias e ações – é a ponte para que cheguemos a Bolsonaro e ao governo dos milicianos, que nos cabe combater sem trégua. Lula se esquiva a discutir táticas para tira-lo do poder. Mas, o método está claro:
“Esse cidadão foi eleito. Democraticamente nós aceitamos sua vitória. Agora: ele foi eleito para governar para o povo brasileiro, e não para os milicianos do Rio de Janeiro”, diz Lula. O ataque a Bolsonaro é direto. Lula combate Bolsonaro como o mal encarnado, o protetor de milicianos, o criminoso que forja investigações e esconde provas. Não como um bobo, um energúmeno, como vez por outra fazemos, pelas imbecilidades que ele pronuncia diariamente. É também a oportunidade de relembrar o bem viver do consumo que marcou seu governo, contra o entreguismo, a subserviência aos EUA e o aprofundamento da pobreza e da desigualdade que tem marcado o período bolsonarista.
Trata-se de desmascarar o “mito”. Lula lembra do início de sua vida profissional nas metalúrgicas do ABC, antes do sindicato. Lembra de suas atividades como diretor da escola do sindicato, lembra das manhãs de porta de fábrica. Depois caracteriza Bolsonaro como o malandro que nunca trabalhou, e ainda – mau militar, como disse Geisel – se aposentou muito jovem porque fez uma bagunça no quartel. E passou os 28 anos de sua vida parlamentar perseguindo mulheres, negros e indígenas.
Não à toa, Lula lembra da visita de Bolsonaro ao príncipe da Arábia Saudita, e da frase segundo a qual “toda mulher gostaria de passar a tarde com um príncipe”. Um presidente machista, ridículo e que ainda tenta se engrandecer se vangloriando de ter estado com um príncipe assassino, que mandou matar o jornalista opositor na embaixada saudita, em Istambul.
O ataque ao bolsonarismo, porém, não pode nos rebaixar ao seu nível. Quando uma parte do público inicia os gritos de “Ei, Bolsonaro, vai tomar no…”, Lula repreende: “eu não gosto disso porque isso não pode ser falado por nós. Eu fui educado por uma mulher analfabeta, mas eu duvido que um filho da minha mãe falasse um palavrão como eles falaram para a Dilma na abertura da copa do mundo em 2014… a gente não tem que falar palavrão para o Bolsonaro não, ele já é o palavrão.”
O Lula que fez amigos e até companheiros na carceragem da PF, na experiência de seus 74 anos de idade, tem tesão de 20 e energia de 30 para correr o país denunciando a venda do país e a precariedade da vida dos mais pobres na era Bolsonaro. Mas, diz ele, “não tenho direito mais a ter ódio no meu coração”.
A lição de Lula, em seu discurso em São Bernardo, é a de que o bolsonarismo da apologia às armas, das fake news, do discurso de ódio e violência, vai ser derrotado com amor, com solidariedade, com empatia. Fazendo com que aqueles que apostaram no mau militar possam perceber o erro que cometeram. Sem bater cabeça, a linha política principal deve ser de enfrentamento ético com o bolsonarismo, com cabeça erguida! Com amor e coragem de lutar!
(Este artigo é uma homenagem ao companheiro e mestre Régis, professor de ciência política da Unicamp e militante das causas sociais, que esteve conosco em abril de 2018, mas não pode presenciar a linda tarde de ontem em São Bernardo).
Wagner Romão é professor de ciência política do IFCH-Unicamp e presidente da ADunicamp – Associação de Docentes da Unicamp