Durante a campanha presidencial de 2018 surgiram questões que os argumentos da sociologia e marketing político utilizados nos últimos processos eleitorais no Brasil pareciam não dar conta de responder. Para dar um exemplo: para avaliação de impacto do programa eleitoral no segundo turno reuniu-se, em um grupo focal, eleitores indecisos ou com voto não convicto em Bolsonaro ou Haddad (Grupo Focal é uma metodologia de pesquisa qualitativa: uma reunião de oito a dez pessoas com um perfil determinado, cuja conversa é mediada por uma profissional, a moderadora do grupo). Após exibição do programa na TV, a moderadora do grupo questionava: “Qual a proposta dos candidatos?”. Participantes iniciavam reproduzindo as propostas de Haddad: “valorização do salário mínimo, gás a 49 reais e retomada das obras públicas”. Do ponto de vista do marketing político, o programa atingia os objetivos, pois via-se que os participantes conseguiam reproduzir as propostas, e as valorizam, o que demonstrava potencial de fixação e envolvimento da mensagem petista. No entanto, as propostas tinham alto nível de descrédito e questionamento: “Ah, mas como ele vai fazer isso? Não dá para acreditar!”.

Por outro lado, as propostas de Bolsonaro tinham pouca fixação, quase ninguém se lembrava. Só após algum estímulo da moderadora, alguém dizia “Ah, ele disse que vai combater a corrupção”. A moderadora seguia: “E ele diz como vai fazer isso?”, e a resposta: “Não, mas se ele está dizendo que vai fazer é porque vai fazer”.

Como era possível critérios de avaliação tão díspares para os candidatos? Como Bolsonaro alcançou um nível de confiança tão inquestionável e inabalável por parte dos eleitores? Psicanalistas vão dizer que Bolsonaro foi construído para a maioria da população como um pai autoritário dentro do espaço doméstico. Dentro de casa, nem sempre sabe-se como o pai vai resolver determinado problema, mas sabe-se e confia-se que ele o fará. Simples assim.

A campanha bolsonarista também foi bem sucedida em mobilizar dois medos fundamentais das pessoas em geral, segundo Sigmund Freud (1856-1939): o medo do sexo e o medo da morte. O candidato do PSL apresentava respostas fáceis e diretas para isso. Sua plataforma girava em torno da segurança pública e da proteção da “moral e dos bons costumes”. O medo do kit gay e das feministas destruidoras da religião e da família, mesmo após um ano, ainda ronda as conversas nos centros urbanos e no interior do país.

Freud previu a chegada de um Hitler ainda na década de 1920 (portanto, ao menos, dez anos antes). O autor explicou que o fascismo opera de modo a reduzir a inteligência coletiva do povo e cria um líder medíocre para que esta inteligência possa com ele se identificar e nele se espelhar. Não é por acaso que Bolsonaro tira fotos almoçando sozinho num bandejão em encontros com líderes internacionais, faz vídeos caseiros de baixa qualidade, vai a reuniões com chinelo e meia, e utiliza um linguajar chulo. Há sim muita inteligência por trás das “trapalhadas” do Presidente.

E assim, cria-se condições para compartilhamento de qualquer mentira. O líder, assim como o pai autoritário dentro de casa, pode tudo e resolve tudo. Contróe-se, assim, uma espécie de delírio coletivo. O problema é que o método psicanalítico de desconstrução do delírio não pode utilizar da negação deste delírio, porque a tendência é que o delirante acabe por reafirmá-lo e reforçá-lo cada vez mais. Por isso, o psicanalista, em seu consultório com seu paciente, como método de “cura”, muitas vezes, “entra” no delírio, fingindo que nele acredita, apontando aos poucos uma contradição aqui, outra ali. Este processo de libertação da mentira pode durar anos até que o paciente “saia” do delírio. Agora, como romper com esse ciclo quando o delírio é coletivo? Negar a existência de ‘mamadeira de piroca’ para milhões de brasileiros que nela acreditam não resolve. Nada que perpasse por argumentos racionais, de retomada da razão resolve. O fascismo transgride com o pacto da racionalidade. E é este elemento de análise que escapou de sociólogos e analistas políticos no último período. Não é possível mais contar com a racionalidade.

E este fenômeno não é exclusividade do Brasil. Se olharmos para o que acontece no mundo, as perspectivas não são muito animadoras. Na Hungria, Orbán utiliza de desinformação contra a imprensa livre e imigrantes. Na Polônia, o mesmo. Nas eleições estaduais na Alemanha, a extrema-direita ganhou espaço que não tinha desde o período pré-Hitler. Na Espanha surgiu o Vox com chances de crescer no novo processo eleitoral que ocorrerá no próximo mês (já que PSOE não conseguiu formar maioria). Na Inglaterra, Brexit. África do Sul passou por atentados xenófobos que terminaram em toque de recolher no mês passado. Trump com sua visão de “imigrantes vem para a América para roubar os empregos e estuprar as mulheres dos americanos”. “Make America Great Again” – sem imigrantes. Tipo “Alemanha para os alemães”. E tem mais centenas de exemplos por aí.

Até aqui, o diagnóstico é meio que consensuado no nosso campo: a extrema-direita avança no mundo que passa por um processo de fascistização. O que não se entende é por que não se leva este diagnóstico às últimas consequências. Por que as saídas que a esquerda têm a oferecer são as mesmas de quando vivíamos no período em que os pilares que sustentavam a República e a Pacto Democrático de 1988 ainda estavam em pé?

O que vamos enfrentar pela frente? Economistas preveem para até o final da próxima década uma crise global do capitalismo. A Alemanha (locomotiva econômica da Europa) informou que seu PIB recuou 0,1% no segundo trimestre de 2019; o PIB da China tem o menor ritmo de crescimento dos últimos 27 anos; o FMI acaba de reduzir de 3,2% para 3% sua estimativa de crescimento global neste ano.

Dentro da direita parece existir duas propostas distintas: a primeira com mais austeridade e autoritarismo; e a segunda que aponta para uma aparente suavização neste sentido, uma “direita mais limpinha”. O próprio FMI tem recomendado usar as finanças públicas para reanimar as economias e evitar uma freada mais forte nos países centrais. “É hora de recorrer a estímulos fiscais”, disse chefe do Departamento de Assuntos Fiscais, Vítor Gaspar. No mesmo sentido, algumas figuras da classe dominante vêm apontando que “é necessário algum nível de distribuição de renda” – até porque, para sobreviver, o capitalismo precisa vender para os pobres que há uma perspectiva de ascensão econômica e social, percepção esta que não se sustenta: os medidores de desigualdade apontam empobrecimento da população em geral. No Brasil, desenha-se uma retomada desta “direita limpinha” com a reorganização de um campo (liderada por Armínio Fraga) ao redor de Luciano Huck que promete disputar com o bolsonarismo. É verdade. O problema é: no último período esta “direita que respeita o jogo democrático e as instituições” foi derrotada nas urnas. Por isso que o método de Steve Bannon foi necessário, porque o atual estágio do capitalismo deixou de ser compatível com a democracia liberal. Certo? Teriam eles condições, de fato, de se reorganizar e de vencer eleições?

É verdade que tem-se no mundo alguns exemplos de virada e possível processos de reorganização da resistência popular: a eleição de Portugal (onde os socialistas venceram) e, na América Latina, a vitória de Evo Morales neste final de semana, além do levante do Equador que derrubou as medidas do FMI, as manifestações no Chile contra Piñera e as boas perspectivas das eleições a se decidirem na Argentina e Uruguai ainda neste mês.

Mas é também exatamente por isso que temos que ficar ainda mais atentos. Se há perspectiva de derrotarmos a direita – e eles sabem a potência da força popular, sabem o potencial de Lula no Brasil – a aposta deles tende a ser ainda mais alta.

O Brasil é estratégico na América Latina. Devemos enfrentar nas eleições de 2020 e 2022 um método de estímulo a abstenções e produção de fakenews ainda mais sofisticados. Agora é deepfake. Então, não adianta muito ânimo com as pesquisas que mostram que a Lava Jato começa a se descredibilizar, que a rejeição ao PT diminuiu e que a de Bolsonaro aumentou. O jogo é duro e sujo. Eles trabalham em um duplo movimento, organizando sua base e desencorajando quem dela não faz parte a se abster de votar.

Por isso, não é suficiente seguir apostando num desgaste do governo a ponto do bolsonarismo se desidratar. E é bem verdade que o governo está instável. É crise dentro do PSL, é crise com o Congresso, com o Judiciário, entre os diferentes grupos de interesse (olavistas, lavajatistas, Forças Armadas, agronegócio, liberais…). Mas é bem verdade também que Eduardo Bolsonaro conseguiu se fazer líder da bancada do PSL da Câmara e que as agendas que, verdadeiramente, importam ao capital especulativo internacional estão passando: reforma da Previdência e privatizações. E ainda há mais privatizações por vir. Paulo Guedes enumerou dezessete. A menina dos olhos, a Petrobras.

E é este o objetivo e, para alcançá-lo não faltarão esforços da elite econômica. E, como elite econômica, entende-se não uma pequena burguesia nacional, mas os grandes especuladores do capitalismo global. E é por isso que Steve Bannon é um ator que se faz presente.

No discurso de abertura da ONU, no final de setembro, Bolsonaro mostrou que não se importa com a opinião pública internacional e falou para a base dele. Discurso de caráter muito ideológico, com muito subsídio para geração de conteúdo. Aposta no bolsonarismo nível hard. O discurso de Trump caminhou no mesmo sentido: construção de uma Guerra Fria do século 21 – o comunismo tem que ser eliminado.

A diferença entre os dois é que nos Estados Unidos – centro do capitalismo – a política de Trump promoveu uma das menores taxas de desemprego da história. Aqui no Brasil, o papo é diferente. Tem que esperar para ver como o governo vai lidar com a situação. Para o fim do ano, Bolsonaro promete 13º para o Bolsa Família e mais saques ao FGTS que deverão injetar 14,5 bi de reais para o natal. Nada que garanta crescimento a longo prazo. Mas, se a chegada de mais militares em cargos estratégicos significar aplicação de políticas mais pragmáticas e menos ideologicamente ultraliberais e houver retomada das obras públicas, talvez haja um respiro econômico que poderá dar mais fôlego a Bolsonaro. Se não, a impressão é que a saída será radicalizar ainda mais no discurso ideológico. A veiculação de notícia falsa sobre a relação do PCC com PT em um jornal da Record seguida de uma ação organizada dos maiores influenciadores de rede do campo bolsonarista pode indicar algo neste sentido. Relacionam o que constroem como os dois grandes inimigos do Brasil: os “comunistas/esquerdistas/petistas” e o crime organizado. A agenda de costumes e valores não é menos importante. Em um cenário em que não há perspectiva de crescimento econômico e geração de renda, é o que garante a sustentação do governo. O governo cria um inimigo coeso que precisa ser derrotado. Qual será o fôlego desta estratégia?

Talvez até tenha-se um respiro aqui ou ali com a vitória de um campo mais progressista em algum país ou em alguma cidade brasileira no próximo período. Mas a tendência geral parece ser a vitória da extrema-direita e o agravamento do processo de fascismo que já está em curso. Importante lembrar que a última vez que a história se deparou com fascismo constituído de fato em escala global, ele foi derrotado não com debates eleitorais com respaldo na racionalidade democrática, mas com uma guerra. O fascismo tem que ser levado a sério. A história já nos mostrou isso. O desafio é enorme. Diagnóstico radical e ação recuada não combinam. Não é apenas disputar eleições, vencer Bolsonaro. É derrotar a força do bolsonarismo (expressão máxima do fascismo no país), propondo saídas econômicas, políticas e sociais mais ousadas e conectadas com os anseios do povo. É reconstruir o que entendemos como democracia.

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