Entre os dias 10 e 11 de agosto, assistimos a uma manifestação de apoio ao Presidente da República inusitada e criminosa: para demonstrar que o Brasil é uma nação soberana, e que não precisa da Alemanha e Noruega para proteger a nossa biodiversidade, “donos” de grandes terras realizaram o Dia do Fogo, aumentando a devastação na Amazônia. Essa manifestação gerou um efeito não intencional; comprovou de quem é de fato o dedo no gatilho do desmatamento, e o que acontece quando não há o contrapeso da ação do Estado na região; é, no mínimo, ingenuidade esperar uma ação voluntária de preservação ambiental em espaços de capital em expansão.

Esse episódio também permite encerrar uma narrativa perversa sobre o controle do desmatamento na Amazônia. Por um bom tempo, ruralistas, alguns ambientalistas, membros de órgãos de controle como o Ministério Público e Tribunal de Contas da União, formularam uma pactuação sobre esse desafio. Vaticinavam por meio da mídia corporativa que o maior responsável pela supressão das florestas seria a reforma agrária e seu órgão executor, o Incra, e pressionavam o próprio Governo Federal nessa linha. As terras indígenas e as Unidades de Conservação seriam as referências de proteção; o capital em expansão teria seu apetite controlado por acordos setoriais e fiscalização; como contrapartida, os mercados internacionais estariam de portas abertas para as commodities agrícolas brasileiras. Nesse tabuleiro amazônico, sobrava, justamente, uma parte para pesar a mão: as áreas de reforma agrária.

O Incra foi o órgão responsável pelo processo de ocupação da Amazônia durante a ditadura militar, e, por isso mesmo, sua ação moldou a região como a conhecemos: estados como Rondônia, por exemplo, podem ser considerados resultado de um “grande assentamento”; no entorno das rodovias federais nasceram centenas de municípios, oriundos de Agrópolis e Rurópolis criadas pelo Incra.

A partir dos anos 2000, no entanto, o Incra e o extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário mudaram o perfil da intervenção agrária na região. A destinação das terras públicas foi priorizada ao invés das desapropriações1. Ao mesmo tempo, foram criados projetos ambientalmente diferenciados em vez de projetos convencionais de assentamento. As famílias beneficiadas pela reforma agrária não eram mais deslocadas pela ação do Estado, e sim, retiradas da invisibilidade com a garantia do território onde vivem e usam, ou acolhidas nas mobilizações de luta pela terra, após viverem o desalento de falta de oportunidades de trabalho e renda na região. Experiências de assentamentos sustentáveis2 surgiram como referência de uma mudança de paradigma do Incra, que buscou associar a convergência entre as agendas de inclusão social, produtiva e ambiental. Entre 2011 e 2015, 37 mil famílias assentadas da região Norte saíram da extrema pobreza, e mais de 28 mil famílias ascenderam acima da linha da pobreza3, no mesmo período em que o desmatamento estava controlado.

A dinâmica de pressão sobre a natureza é muito diferente quando comparamos uma ocupação de base familiar, intensiva em trabalho, da exercida pelo capital em expansão. Os órgãos de meio ambiente estaduais estimam que a supressão de dois a três hectares por ano é típica do trabalho familiar. Quando os dados apontam queda no desmatamento como um todo, obviamente, aumenta a participação da atuação familiar, que é residual mas perene. Assim, é possível caracterizar o desmatamento ocorrido nos assentamentos por iniciativas das famílias4, atacar suas causas e propor alternativas a partir de pactuações específicas5. Mas, quando se observam grandes áreas abertas em assentamentos, ou mesmo uma quantidade acima do normal de pequenos desmates, é indício de que agentes externos estão atuando no espaço das famílias assentadas. No entanto, infelizmente, a escolha daqueles agentes da pactuação foi responsabilizar a reforma agrária e o Incra por ação ou omissão, e pressionar o Governo Federal para ser mais duro e dar o exemplo. No Dia do Fogo ficou transparente a essência do processo de desmatamento. Primeiro, ficou nítido, como o fogo, que quem tem o poder de apertar o gatilho, de acelerar ou desacelerar o desmatamento, não vive nos assentamentos, e não é beneficiário da reforma agrária. Segundo, não se deve esperar pela ação voluntária do capital em expansão para cumprimento de acordos que limitam… a sua expansão.

A fragilização do Incra serviu como laboratório para um ataque mais amplo à atuação do Estado, e agora os órgãos ambientais estão sentindo os efeitos de uma estratégia que enfraquece a ação regulatória, e desequilibra a relação que sustentava a própria pactuação. Um acordo desses somente funciona com pesos e contrapesos. E o atual governo já deu provas de que não tem interesse em limitar a ação devastadora.

No momento que voltam à mídia manifestações que apontam o Incra como maior responsável pelo desmatamento na Amazônia, usando como argumento diagnósticos de órgãos de controle6, pode-se ter certeza de que estamos tratando de uma retórica requentada que, ao fim e ao cabo, contava com aliados e que tinha um único objetivo: proteger o capital em expansão na Amazônia e, de quebra, vilanizar o Incra e a reforma agrária. Agora que rompeu-se a pactuação por parte de quem apertou o gatilho do desmatamento, espera-se que as entidades realmente preocupadas com a situação assumam sua parte de responsabilidade nessa narrativa, e revejam suas posturas antes que tudo saia do controle.

Serve como contribuição ao debate que se pressione o Governo do Brasil a aplicar internamente o Princípio das Responsabilidades Comuns porém Diferenciada, conforme as Capacidades,7 para tirar o dedo do gatilho de quem é o responsável de fato pelo desmatamento. A insanidade de atear fogo na vegetação nativa é crime. É abuso do direito de propriedade, descumprindo a função ambiental da propriedade preconizada pela Constituição Federal de 1988. Não há regulamentação? Que se aplique o novo Código Florestal8, pois tal crime gera efeitos negativos sobre toda sociedade. A morte de um casal carbonizado dentro de um assentamento tentando conter o fogo no seu lote é um episódio que fala por si9. Também seria necessário que o Incra reassumisse papel de protagonista na estratégia de conservação da Amazônia, sem negligenciar sua cota de responsabilidade, nem a mais e nem a menos. Vamos tratar de vez a questão como ela é: um crime contra a humanidade.

Carlos M. Guedes de Guedes, analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário, foi Presidente do Incra entre julho de 2012 e março de 2015. Economista, Mestre em Desenvolvimento Rural pela UFRGS

Notas

1-Dados do Incra apontam que a partir de 2003 apenas 10% da área destinada à reforma agrária na Amazônia se deu por meio de “desapropriações” ou “compra e venda” de grandes propriedades. Ver aqui. Acessado em 17 ago. 2019.

2- “Assentamentos Sustentáveis“. Acessado em 17 ago. 2019.

3- “Estratégias de superação da pobreza no brasil e impactos no meio rural.” Acessado em 19 ago. 2019.

4- “Desmatamento nos Assentamentos da Amazônia – Ipam.” Acessado em 17 ago. 2019.

5- “Programa Assentamentos Verdes (PAV) terá participação e controle ….” 9 dez. 2014, Acessado em 17 ago. 2019.

6- “Agronegócio vai ao ataque | | Edgar Lisboa.” 16 ago. 2019. Acessado em 17 ago. 2019.

7- “Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima“. Acessado em 17 ago. 2019.

8- “Lei 12.651, de 2012 – Planalto.” 25 mai. 2012. Acessado em 17 ago. 2019.

9- “Casal morre carbonizado dentro de casa em Machadinho D’Oeste ….” 15 ago. 2019. Acessado em 18 ago. 2019.

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