Democracia em Vertigem, novo documentário de Petra Costa
Em época de publicações do Intercept que revelam o esquema montado para prisão do ex-Presidente Lula que o tiraria das eleições 2018, é um alívio assistir ao novo documentário de Petra Costa. Um alívio que dói, mas que não deixa de ser um alívio. Dói, porque percebemos quão frágil foi a democracia que construímos e quão difícil será retomá-la. Golpe parlamentar, Lula preso, povo vivendo pior, um fascista presidente, sem muita perspectiva futura mais positiva. Como deixamos chegar até aqui? Dói. E é um alívio, porque a versão da história que contamos a nós mesmos desde 2013, finalmente, aparece completa legitimada pela tela. Como se ela materializada na narração da diretora se tornasse, finalmente, inconestável e com potencial de trascender as narrativas da esquerda. Os fatos se conectam, se organizam, se concatenam e geram a história concreta, aquela que estará nos livros de nossos netos. E é essa história que está ali estampada nas nossas caras, bem à nossa frente em forma coesa durante duas horas.
Pode parecer pouco, mas não é. E parece ser isso o que há de mais relevante no documentário Democracia em Vertigem: contar ao mundo e também a nós mesmos o que vivemos. Estar ali na plataforma do Netflix ao lado do O Mecanismo (série ficcional de José Padilha que constrói os procuradores da Lava Jato como heróis da nação).
A diretora diz não pretenter contar a história de maneira totalizante do tipo ‘trago aqui a verdade’. Ela parece saber que outras histórias podem ser contadas a partir de outras perspectivas: do povo preto, das/os trabalhadoras/es do Planalto, das periferias dos país, dos movimentos sociais… Mas, de maneira muito honesta, Petra Costa anuncia desde o início ‘esta é uma narrativa do meu ponto de vista’. E um ponto de vista bem peculiar. Filha da elite econômica brasileira, seu avó materno foi fundador da Andrade Gutierrez, uma das maiores construtoras do Brasil, também denunciada na Lava Jato. Sua mãe e seu pai eram militantes de esquerda ainda durante a ditadura civil militar (1964-1985). Sua mãe foi presa na mesma prisão que a ex-Presidenta Dilma. Petra é filha destes dois pólos opostos – ou não tão opostos assim, conforme ela sinaliza no documentário – que, na crise institucional que se instaurou na República no último período, tiveram seus papéis questionados: a esquerda e o empresariado brasileiro.
As relações entre o capital e o Estado são exploradas e tem seu auge na revelação do diálogo que ela narra entre um empresário (que sempre teve sua permanência nos salões do Estado garantida) e um político que reocupava o Planalto pós posse do Michel Temer: ‘Você por aqui?’, pergunta o político do golpe. ‘Nós estamos sempre por aqui, quem mudam são vocês’, responde o empresário. E é a esta relação promíscua que ela atribui a fragilidade da democracia. Alguém discorda? Assim, o título do filme não poderia ser mais oportuno. Vertigem no dicionário: ‘sensação de movimento oscilatório ou giratório do próprio corpo ou do entorno com relação ao corpo; tonteira, tontura, vágado. Sensação de desfalecimento, desmaio ou fraqueza’. De novo, alguém discorda?
O documentário emociona, é fato. A fala final da Dilma na ocasião do julgamento do Senado em agosto de 2016, ‘por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência. Hoje eu só temo a morte da democracia’ nos tira lágrimas. Assim como a fala de Lula na ocasião de sua prisão em São Bernardo do Campo em abril de 2017: ‘Os poderosos podem matar uma, duas ou cem rosas. Mas jamais conseguirão deter a chegada da primavera’. Mas para além da poesia já conhecida dos personagens, parece faltar algo de mais sensível, mais artístico por parte da narrativa do documentário como um todo.
A cenas iniciais apresentam dois tons distintos: o primeiro de perfil mais institucionalizado, e o segundo de tom mais pessoal com acervo da família. Esta combinação super potente cria uma expectativa no espectador que é apenas parcialmente atendida. E o parcial pode gerar frustração. Petra Costa logra em politizar a história, mas a impressão que fica é que faltou dar conta de poetizá-la, como ela insinua que fará no início (o que não significa romanceá-la ou suavizá-la, o que jamais caberia!).
Se a narrativa partiu do próprio ponto de vista de Petra Costa – como ela anuncia – esparava-se que ela tivesse levado isso à máxima dando mais espaço a insights mais pessoais como aquele em que ela lê a imagem desconfortável e fora de lugar de Temer no momento da posse de Dilma em janeiro de 2011 – ponto alto do filme, de uma sensibilidade sem tamanho. Ou tivesse lançado mão de mais momentos como aquele em que ela revela as imagens aéreas de Brasília, tentando extrair das veias da cidade outros significados, até então, ocultos. Esperava-se que ela se tivesse feito ainda mais presente com suas contradições, incompatibilidades, sutilezas e poesias aos moldes do fez em Elena (2012) ou em o Olmo e a Gaivota (2014), ambos também de sua direção.
De qualquer forma, espero que o bom e muito necessário documentário Democracia em Vertigem possa ser amplamente debatido, difundido e que abra espaço para outros filmes e contos a partir desta triste história que viveu o país.
Filme: Democracia em Vertigem
Direção: Petra Costa
Netflix 2019